ESPIRITUALIDADE E TRANSFORMAÇÃO PESSOAL
- Isabelle Ludovico
Entendo “espiritualidade” como a busca de uma maior intimidade e amizade com Deus. O coração quebrantado, a alma apegada a Deus, o encontro em silêncio com a face amorosa de Deus no secreto, a leitura meditativa das escrituras, o mistério da comunhão com Deus no íntimo são dimensões da espiritualidade cristã que curam as nossas feridas e nos fazem desabrochar. “Contemplando, como por espelho, a glória do Senhor, somos transformados de glória em glória, na Sua própria imagem, como pelo Senhor, o Espírito” (2 Coríntios 3:18). “A contemplação não é um exercício de relaxamento... É acima de tudo um relacionamento... Não é uma técnica... é uma oração sem palavras que se fundamenta no chão da fé, esperança e amor... É o caminho mais seguro e garantido rumo à santidade”
[1]. No entanto, como ressalta Esly Carvalho
[2] “sem saúde emocional, não existe santidade... Não acredito que seja por acaso que a única diferença entre as palavras sanidade e santidade seja a letra t que representa a cruz do Messias”. De fato, a gente fere a si mesmo e ao outro à partir das nossas feridas. Somente o amor internalizado de Deus pode cicatrizá-las ao suprir nossa necessidade de aceitação incondicional.
O reconhecimento reverente do mistério de Deus Pai, Filho e Espírito Santo revela a nossa condição de pecadores e nossa verdadeira identidade de filhos criados à Sua imagem e semelhança. Nascer de novo significa construir nossa identidade não naquilo que temos ou fazemos, mas naquilo que somos em Cristo. Diante do olhar misericordioso de Deus, podemos reconhecer a verdade sobre nos mesmos: tanto a luz quanto a sombra. “O fato de sermos conhecidos e amados como somos nos liberta de ter que ser alguém e algo que não somos”
[3]. Encarar a realidade desmonta nossa auto-imagem idealizada ou obscurecida e nossas projeções, que nos levam a acusar o outro do mal que negamos em nós. A releitura da nossa história na perspectiva da Graça nos permite entender o nosso caminho e sarar as marcas do passado, transformando-nos de agressores em terapeutas. Paralelamente, somos convidados a escolher a vida e desenvolver o potencial de dons e talentos que Deus nos confiou.
A espiritualidade é autêntica se ela nos torna pessoas cada vez mais amorosas e mais voltadas para os outros com humildade, empatia e generosidade. A essência do Imago Dei reside na capacidade de amar, de se relacionar. A espiritualidade cristã diz respeito a este processo contínuo de transformação do caráter: a santificação, que resulta em serviço e engajamento maduro no mundo em que vivemos. Em 1994, Osmar Ludovico nos lembrava que “a verdadeira espiritualidade reside na santidade do gesto simples do quotidiano. Em Jesus Cristo, não há megalomania, grandiosidade, extravagância, há a simplicidade do gesto humano, há ternura e firmeza... a verdadeira vida cristã não significa sermos mais espirituais, mas sim mais humanos”
[4].
Ficar em silêncio, prestar atenção, estar alerta e presente diante de Deus, saborear a Palavra, nos permite discernir a ternura com a qual Deus nos ama. A experiência da Graça nos encoraja a reconhecer nossos medos, esconderijos, fantasias persecutórias ou onipotentes, nossa mentalidade de escravos. É a bondade de Deus que nos conduz à metanoia (Romanos 2:4). Ela nos ajuda a enfrentar as ambigüidades do nosso caráter, nossa instabilidade emocional, nosso narcisismo, nossa busca de reconhecimento e sucesso através de bens e do desempenho. Ela nos cura do isolamento, da rejeição, do desamor, do desencontro. A qualidade da nossa relação conosco e com o próximo depende da qualidade do nosso vínculo com Deus no secreto do nosso coração e isto só depende de nós, visto que Deus está sempre disposto a nos acolher. Nada pode nos separa do seu amor, a não ser nós mesmos.
1. DA SOLIDÃO À SOLITUDE E DA SOLITUDE À SOLIDARIEDADE
A Palavra nos lembra que este mundo “jaz no maligno” (1 João 5:19). Afastados de Deus, os homens construíram uma sociedade perversa que está em crise: crise econômica com recessão e desemprego, crise moral cujos sintomas principais são a corrupção e a violência, crise familiar que gera desencontros e separações. Além destas crises culturais, somos também afligidos por crises decorrentes do nosso processo de desenvolvimento: adolescência, crise de meia-idade, crise do ninho vazio... Neste contexto, somos tentados a lançar mão do famoso "Salve-se quem puder" ou "Cada um por si". A principal conseqüência desta atitude é a solidão: uma sensação de abandono e incompreensão que se transforma em desânimo, tristeza e mesmo angustia. O futuro parece sombrio. Não se enxerga nenhuma luz no fim do túnel. O mundo se tornou um ambiente hostil e ameaçador e não podemos contar com ninguém para enfrentá-lo. No entanto, a crise pode se tornar uma alavanca para o nosso amadurecimento. Aliás, o diagrama chinês para crise é formado de duas figuras, como as faces de uma mesma moeda: perigo e oportunidade. Existe, de fato, o perigo do desespero que nos leva a retroceder numa atitude defensiva, agressiva ou de auto-sabotagem que pode até conduzir ao suicídio. Mas existe igualmente a oportunidade de sair do nosso comodismo para descobrir caminhos novos e refazer o nosso projeto de vida.
O ser humano é um ser solitário na medida em que os momentos mais significativos de sua vida, como o nascimento e a morte, por exemplo, deverão ser enfrentados individualmente. Neste sentido, é importante que cada um saiba encontrar dentro de si, á partir da intimidade com Deus, os recursos para lidar com estas situações de forma a transformar o seu isolamento ou solidão em recolhimento e reabastecimento. É o teste da nossa fé. O psiquiatra argentino Carlos Hernandez aponta quatro estágios na nossa caminhada com Deus. O primeiro é o chamado e o paradigma é Abraão. Ouço Deus me chamar pelo meu nome. Percebo que Deus não é apenas uma energia, mas é pessoal. Rendo-me ao abraço do Pai através do sacrifício de Cristo e da revelação do Espírito. A segunda etapa é a missão e o paradigma é Moisés. Deus me vocaciona para servi-lo. O terceiro estágio é o deserto e o paradigma é Jó. Nesta hora, minha fé não pode se apoiar em nenhuma circunstância favorável. Na solidão, eu preciso lidar com o sentimento de abandono e encontrar Deus no silêncio. O silêncio revela a minha realidade interior. Deus lança luz nas minhas trevas. Meus ídolos são quebrados. Deus não é mais uma projeção de meus desejos muitas vezes onipotentes. É a hora da entrega incondicional. Á partir desta submissão à soberania de Deus, alcanço o último estágio de uma fé encarnada cujo paradigma é Maria. Dizer “sim” a Deus significa entregar até o meu útero. Assim posso ser fertilizada e gerar “as boas obras que Deus de antemão preparou”(Efésios 2:10).
O terceiro estágio é o mais delicado. No seu livro “Decepcionado com Deus”, Philip Yancey pontua os questionamentos que nos assaltam em momentos de provação e angustia. Diante do silêncio de Deus, de orações não respondidas, de sofrimentos injustos, podemos acumular pequenos desapontamentos ou entrar numa crise aguda. Negar as nossas emoções para preservar a imagem de Deus, ou negar a existência de Deus são dois atalhos a evitar. Na primeira via, ao inibir a nossa raiva, estaremos adoecendo através do mecanismo bem conhecido de somatização. O segundo caminho leva ao desespero, ou como escreveu Camus, à «náusea». A forma como Deus nos é apresentado contribui para a imagem que construímos. Muitas decepções dizem respeito à expectativas irreais geradas por um evangelho distorcido que apresenta Deus como o papai Noel ou o gênio da lâmpada: «Venha para Deus que ele vai te abençoar». A teologia da prosperidade coloca Deus a serviço do homem. Achamos, assim, que se Deus é amor ele deve nos paparicar e nos poupar do sofrimento. Mas a morte de Jesus na cruz mostra que, para Deus, amar significou estar disposto a sofrer. Assim, nosso contrato inicial com Deus precisa ser alterado para chegar à uma aliança fundamentada na Graça, na qual Deus já cumpriu a sua parte e nossa parte é apenas reconhecer a sua bondade e soberania, mesmo que a vida nos reserve aflições. Deus se declara apaixonado pelo homem e prova o seu amor. A fé é a melhor maneira de expressarmos nosso amor por ele.
No Antigo testamento, a Bíblia atesta que Deus forneceu sinais em abundância, mas nem por isto os israelitas se mostraram mais fieis. Assim, Philip Yancey conclui que «os sinais só conseguem nos tornar viciados em sinais, não em Deus»
[5]. Depois Deus mandou seus profetas que também não foram ouvidos. Na verdade, Deus tem mais motivos para estar decepcionado conosco que nos com ele. Ele, em Oséias, se compara a um marido traído. Mesmo assim continuou retendo a sua ira, perdoando e buscando o ser humano. Sua presença gloriosa é tão ameaçadora para nós, que ele se esvaziou e se encarnou numa manjedoura para nos reconquistar. Ele é um rei que não deseja a sujeição ao seu poder, mas a entrega ao seu amor. A judeus que nem pronunciavam o nome de Deus, Jesus ensinou uma nova maneira de dirigir-se a Deus: Abba, paizinho. Ele ainda nos confiou a missão de ser o seu corpo na terra e nos capacitou através do Espírito Santo. Ele, assim, se limitou novamente através de nós: um Deus perfeito vive agora dentro de seres humanos bem imperfeitos e o mundo julga Deus por aqueles que levam o seu nome. Por isto, uma segunda fonte de decepção é a imagem distorcida que transmitimos de Deus através de nossas vidas.
Jó não tem medo de ser honesto com Deus e expressar sua perplexidade, sua raiva, sua indignação, sua revolta. Suas tribulações representam o teste crucial da liberdade humana. Despojado de tudo, exceto sua liberdade, ele a exercitou para reafirmar sua fé num Deus que não podia ver, nem compreender. De fato, a vida é injusta. No entanto, somos chamados a desenvolver uma fé que não depende das circunstâncias nem dos benefícios de Deus, mas de um relacionamento afetivo que nos livra do desespero. A questão não é fugir do sofrimento, mas encontrar Deus no meio do sofrimento de forma que, uma vez consolados, esta experiência se torne uma alavanca para o nosso amadurecimento. Assim,“nossa esperança não está mais baseada em alguma coisa que acontecerá depois de terminados os nossos sofrimentos, mas na presença real do Espírito curador de Deus em meio a esses sofrimentos”
[6]. A cruz expôs toda a violência e injustiça deste mundo. Somente o abraço permanente de Deus pode transformar nossa dor em alegria. A experiência de Jó nos reafirma que jamais somos abandonados, não importa quão distante Deus pareça estar. Este discernimento leva Jó a se arrepender de sua revolta antes de receber em dobro tudo o que tinha perdido.
Nossa alternativa para a decepção com Deus parece ser a decepção sem Deus. Não existe vida humana sem sofrimento. Podemos escolher sofrer ao lado de Deus, confiando na sua soberania e vitória sobre o mal, ou sofrer sem Deus numa agonia inútil e desesperadora. Em Deus, podemos acolher o sofrimento sabendo que o mal já não tem a última palavra e que todas as coisas cooperam para o bem daqueles que O amam. Deus não deseja o mal, mas não nos livra sempre do mal. No entanto, ele reverte o mal em bem na vida daqueles que confiam nele. Assim podemos entrar em contato com a nossa dor, expressá-la e confessar inclusive nossas dúvidas, questionamentos e revoltas, pois Deus acolhe aqueles que são sinceros e os conforta. Porém, não nos cabe determinar de que forma Deus deve agir, apenas nos abrir e nos deixar surpreender pela expressão da sua graça. Esta graça pode nos atingir através de uma pessoa que nos oferece um ouvido atento, um olhar compassivo, um ombro aconchegante e nos encoraja a olhar de frente para as múltiplas emoções que nos invadem de modo a escolher vivê-las amparadas no seu amor.
Somente pessoas que sobreviveram à de fé e saíram vitoriosas podem ajudar outros a atravessar este deserto. Reafirmar a bondade de Deus sem ignorar nossa realidade objetiva e emocional requer muita maturidade. A maioria é tentada a negar sua própria verdade ou negar o amor de Deus. Ou projetamos em Deus as nossas angustias e concluímos que Ele nos abandonou, ou procuramos abafar a nossa dor, colocando uma máscara e fingindo que está tudo bem. Seguindo o exemplo de Bonhoeffer, somos chamados a assumir nossa verdade sem deixar de reconhecer que Deus a transcende. Assim, podemos orar com ele o fez no campo de concentração, em 1943:
Dentro de mim há trevas,
Mas contigo está a luz;
Eu me sinto solitário,
Mas tu não me desamparás;
Estou desanimado,
Em Ti, porém, está o meu auxílio;
Invade-me uma inquietude,
Tu, entretanto, és a paz;
Sinto-me tão amargurado,
Mas contigo está a paciência...
O silêncio e a solidão não são um fim em si mesmo, mas um meio para chegar mais perto de Deus e de nós. “Precisamos de disciplina para entrar em nós e ouvir, sobretudo quando o medo faz tanto barulho que nos empurra constantemente fora de nós mesmos. Se converter significa voltar para a casa, procurar nosso lar lá onde o Senhor edificou sua morada, na intimidade do nosso próprio coração”
[7]. Silenciamos para ouvir com o coração. Ouvir Deus nos chamar pelo nome e nos deixar abraçar como o filho pródigo voltando para a casa. Ouvir nossos muitos ruídos interiores e entregá-los um a um aos cuidados de Deus. Aguardar, em silêncio, a revelação do mistério de Deus e a sua direção. O silencio interior é a terra mais fértil para o amor divino criar raízes. O silêncio desmascara o nosso falso eu e revela nossa verdadeira identidade. “A solidão é o lugar da grande luta e do grande encontro – a luta contra as compulsões do falso eu e o encontro com o Deus zeloso que se oferece como substância da nova individualidade. É o lugar de conversão, onde o velho eu morre e o novo eu nasce... onde sou só eu – nu, vulnerável, fraco, pecador, carente, desalentado -, sem nada”
[8]. Ali, Cristo nos remodela à Sua imagem e nos liberta das enganosas compulsões do mundo. É no silêncio interior que podemos ouvir Deus perguntando: “Quem é você?” e “Onde você está?” Responder a estas duas perguntas é crucial para o nosso crescimento. Convertemos a solidão em recolhimento quando, em vez de fugir dela, a protegemos e transformamos em gestação frutífera. Ela se torna um início, em vez de um beco sem saída, um lugar de encontro em vez de um abismo. Ao escutar com muita atenção o nosso coração, “podemos começar a sentir que no meio da nossa tristeza existe alegria, que no meio dos nossos medos existe paz... no meio da nossa difícil solidão o início de um recolhimento sereno”
[9].
Cada pessoa é única. Não existe, nunca existiu e nunca existirá alguém igual a você. Por isto, somente você pode descobrir o potencial extraordinário que Deus te deu. Eis aqui um convite para explorar apaixonadamente este seu espaço interior, ir ao encontro de você e estender a mão para esta pessoa especial que é você. A crise irá se tornar uma fase de gestação, uma oportunidade de autodescoberta e crescimento, se você se dispuser a lançar um olhar acolhedor sobre você, se souber escutar as vozes que ressoam dentro de você, os rumores de medos, frustrações, expectativas, anseios que você trancou no porão de sua alma e que reclamam sua atenção. Você pode fugir deles através do ativismo, abafando estes seus anseios e se tornando um robô porque perdeu o contato com o seu coração. Esta atitude autodestrutiva é infelizmente uma opção freqüente que transforma indivíduos em fantoches facilmente manipulados pelos meios de comunicação que sustentam nossa sociedade de consumo. O ativismo nos impede de ter calma e sossego para avaliar se vale a pena pensar, dizer ou fazer as coisas que pensamos, dizemos ou fazemos. Nossa necessidade de afirmação contínua e crescente nos leva à compulsão por mais trabalho, mais dinheiro, mais relacionamentos.
“Quando nos sentimos sós e procuramos alguém para evitar a solidão, depressa experimentamos a desilusão. O outro que, durante algum tempo, talvez tenha sido ocasião de uma experiência de totalidade e paz interior, bem depressa se revela incapaz de nos dar a felicidade duradoura e, em vez de eliminar a nossa solidão, acaba apenas por nos confiar a sua profundidade. Quanto mais forte for a nossa expectativa de que um outro ser humano preencha os nossos mais profundos desejos, maior será o sofrimento quando tivermos que nos confrontar com os limites do relacionamento humano. E a nossa necessidade de intimidade depressa se torna em exigência. Mas, logo que começamos a exigir amor de uma outra pessoa, o amor converte-se em violência”
[10]. O caminho que gera amadurecimento é mais árduo. Você precisa ter a coragem de reconhecer seus próprios limites e encarar seus próprios fantasmas. Ao olhar dentro de você, você irá descobrir não somente tesouros escondidos, mas também algumas experiências frustradas e alguns desejos abortados. Será necessário abraçar esta criança frágil e medrosa que você traiu e abandonou no seu processo de crescimento para vestir a máscara de um adulto forte e decidido. Sua história poderá revelar aspectos novos até então negligenciados que irão traçar novos contornos no seu horizonte. Mas o novo é ameaçador e preferimos a mesmice de hábitos e esquemas estereotipados ao invés de nos aventurar em picadas ainda não exploradas. Este processo de autodescoberta pode ser regado com lágrimas porque irá permitir um contato com nossa dor em vez de negá-la, mas estas lágrimas são fecundadoras de restauração, são um bálsamo que gera cura e libertação. Após este reencontro com o nossa unicidade, este acolhimento da nossa inteireza, somos capacitados para ir ao encontro do outro e experimentar uma solidariedade genuína com ele nas suas dores e alegrias. O outro não é mais um meio de fugir da solidão, mas uma pessoa igualmente única, parceira e companheira de caminhada. Não é a toa que Jesus convida a "amar o outro como a si mesmo". Só podemos aceitar, respeitar, ouvir, acolher, consolar o outro se formos capazes de aceitar, respeitar, ouvir, acolher, consolar a nos mesmos. A prática da espiritualidade nos torna receptivos ao amor de Deus. Neste processo nossa solidão estéril se transforma em solitude e autodescoberta que nos impulsionam a sair ao encontro de outro para ser solidário com ele.
2. O RESGATE DO CORPO
Salvação inclui o nosso corpo, como afirma Paulo em Romanos 8:11: “Se habita em vós o Espírito daquele que ressuscitou a Jesus dentre os mortos, esse mesmo que ressuscitou a Cristo Jesus dentre os mortos, vivificará também os vossos corpos mortais, por meio do seu Espírito que em vós habita”. Por isto, Rubem Alves ora: “Ajuda-nos a sentir a beleza e a dignidade dos nossos corpos: as carícias das pessoas, dos animais, da natureza; o gosto bom da comida, o cheiro do capim gordura, dos jasmins, do feijão; o som do vento nas folhagens das árvores, o barulho do mar...Todas estas coisas são dádivas tuas através da dádiva do corpo... Por este corpo vivemos a fraternidade do amor”
[11]. Nosso corpo é o único templo construído por Deus (salmo 139), através do qual somos chamados a glorificá-lo. No entanto, a conseqüência da Queda é termos os sentidos embotados. O presente que Deus nos confiou tornou-se uma armadilha e uma prisão.
No livro “O corpo traído”, Alexander Lowen aponta a síndrome mais freqüente de nossos dias: a cisão entre corpo e alma como forma de se proteger da dor. Vivemos numa cultura que valoriza o conhecimento teórico em detrimento do sentimento, o poder em detrimento do amor, a ação em detrimento da emoção e a mente em detrimento do corpo ou valoriza o corpo apenas como um objeto de sedução. Mas, nossas emoções têm um registro corporal. “É o corpo que se funde no amor, que se arrepia de medo, que treme de raiva, que procura calor e contato”
[12]. A criança descobre logo como prender a respiração e amortecer o corpo para evitar o medo ou uma ansiedade muito forte. A emoção reprimida, através do autocontrole, se transforma em angustia e no medo de perder este controle. É como uma bomba que não explodiu. Sem a consciência do corpo e das emoções, a pessoa se torna um espírito desencarnado e um corpo desalmado. O corpo, com seus sentidos, é sacrificado e submetido ao controle da mente. Come-se porque é meio-dia e não porque se sente fome.
No indivíduo integrado, o desejo de prazer gera um impulso que desperta sentimento, pensamento e ação. Corpo e mente são ligados pela função integrativa do prazer. Ao suprimir o medo, suprime-se também o desejo e o prazer. A unidade mente/corpo passa a ser mantida artificialmente pela força de vontade. Alienada da sua identidade corporal, só resta à pessoa identificar-se com uma imagem compensatória e irreal de si mesma. O corpo se torna uma vitrine, um objeto moldado em função de critérios estéticos definidos pela sociedade. O sexo compulsivo se apresenta como uma forma de obter proximidade e calor. Pensamentos e fantasias substituem o sentimento e a ação destinada a satisfazer um desejo. O amor é romanceado para compensar sentimentos genuínos. A pessoa se torna escrava de papéis e desenvolve seu trabalho de forma mecânica. Ela se dedica a empreendimentos egoístas que possam alimentar o culto à imagem ideal de si mesma que ela sobrepôs à realidade e ao corpo.
Quando a criança é abusada sexualmente por um dos pais, ela se protege do sofrimento operando um corte entre emoções e sensações corporais. Por sua vez, a ausência de uma intimidade física prazerosa com a mãe é sentida como abandono. Por medo de se sentir abandonada, a criança suprime o sentimento e o desejo e passa a evitar a intimidade. Sem consciência corporal, ela duvida que suas pernas sejam capazes de sustentá-la. É condenada a viver suspensa entre a realidade e a ilusão, entre a infância e a maturidade, entre a vida e a morte. Ela rejeita seu passado, se sente insegura em relação ao seu futuro, e não possui presente já que não tem chão firme sob seus pés. Recuperar o corpo significa resgatar estas emoções contidas debaixo da máscara que esconde que a pessoa está "morta de pavor". Remover a máscara significa encarar o medo e a raiva. Abandonar a imagem ilusória de si mesmo pode parecer um mergulho no desespero, porém traz a surpresa de descobrir um chão seguro. A dor reprimida voltará logo que a pessoa restabelecer contato com seu corpo. Assim como o dedo congelado dói quando começa a esquentar, esta dor provém da luta que o corpo trava para ganhar vida. No caminho para a recuperação a pessoa irá passar por uma fase de profunda exaustão que pode durar semanas ou até meses. Neste processo, a dor será substituída progressivamente por prazer e o desespero por sentimentos positivos.
Nosso corpo não é apenas o receptáculo de emoções reprimidas, ele se manifesta através de doenças que, em geral, são somatizações da sombra não assumida. No salmo 32, Davi confessa que adoeceu enquanto negava o seu pecado. Precisamos entender pecado como tudo o que afeta a nossa dignidade de seres humanos criados à imagem de Deus. Não se trata apenas do mal que nos fizeram, mas do mal que fazemos a nos mesmo a partir do mal que nos fizeram. Saúde e doença se referem ao estado da pessoa e não a partes do corpo. O corpo não tem autonomia. Ele é movido pela alma e pelo espírito. Assim, o corpo apenas reflete o estado da consciência. A doença revela uma perda relativa de harmonia. Portanto não é o corpo que está doente, mas sim o ser humano. É a consciência que está desequilibrada. Quase toda doença é psicossomática. O sintoma exige nossa atenção. Ele é a forma física de expressão dos conflitos. É um sinal, assim como a luz que pisca no painel do carro. Seria absurdo desligar a luz sem resolver a sua causa. É bobagem zangar-se com a lâmpada, pois ela cumpre sua função.
O livro “A doença como caminho”
[13] aponta o sintoma como um aliado para ajudar a descobrir o que falta, um professor que nos atira na cara a verdade nua e crua da qual fugimos, por isto tentamos afastá-lo. A cura não é eliminar o sintoma, mas confessar o que negamos. Aquilo que excluímos continua a viver na sombra da nossa consciência e é projetado para fora. O mundo exterior é um espelho principalmente da nossa sombra. É a sombra que nos adoece. A pergunta terapêutica é: “O que escondo?” Confessar a nossa sombra nos faz sarar. E somente á partir desta confissão que podemos iniciar um processo de transformação. Todo sintoma é um aspecto da sombra que foi somatizado porque foi ignorado. É o substituto físico do que falta à nossa alma. Temos dificuldade de admitir nossa humanidade caída, por isto o combatemos. Nosso corpo é o espelho da nossa alma, mas de que adianta o melhor dos espelhos se não queremos enxergar. O sintoma expressa aquilo que queremos abafar. O ser humano fica a mercê da sua sombra enquanto tenta ocultá-la. A cura passa pela confissão da culpa.
O amor busca a unificação. A doença é a revelação que de fato somos falhos. O homem está doente porque lhe falta unidade. A doença é uma compensação para tentar re-equilibrar o que estava desequilibrado. Cada esforço bem sucedido para eliminar o sintoma apenas nos torna mais doentes. A doença pode ser um mestre se ouvimos o que ela tem para nos dizer. Trazer à consciência o que nos falta torna o sintoma supérfluo a ponto de desaparecer. A cura esta associada à ampliação da consciência. Para entender o sintoma, é importante prestar atenção à sua seqüência temporal e suas conseqüências. Precisamos aceitar a lição do sintoma, deixar que ele nos perturbe e renunciar de forma voluntária ao que ele nos impôs ou enfrentar nossas circunstâncias e construir um novo caminho. Precisamos responder às seguintes perguntas: “O que o sintoma me impede de fazer? Ao que ele me obriga?”. O sintoma oferece a oportunidade de entender o problema latente. Quanto maior a nossa resistência, maior será a pressão exercida pelo sintoma. O sintoma é o sinal vivo de algo que não é consciente.
Tudo o que se acumula um dia explode. Existe uma analogia entre inflamação e guerra. Ignorar as conseqüências nefastas do neoliberalismo, que é um sistema de exclusão, leva a explosões de ira como a do World Trade Center. No plano individual, qualquer infecção é um conflito que se manifesta em forma física. A reação imunológica depende do estado emocional. Abafar os conflitos interiores é tão ingênuo quanto achar que se torna invisível só porque fechou os olhos. O corpo é a expressão visível do ser. O conflito mobiliza todas as nossas energias. O desejo de poder e a sensação de impotência precisam tornar-se conscientes, assim como a agressividade, estar “prestes a explodir”, a dificuldade de assumir o lado sombrio, os mecanismos de fuga ou de ataque. Tornar-se inteiro significa assumir o que projetamos no outro. É na intimidade com Deus que aprendemos a confiar que Cristo veio para carregar nossas culpas na cruz e nos dar uma vida abundante. Este caminho é accessível a todos os que reconhecem a sua sombra em vez de escondê-la e adoecer. Todo sintoma oferece a oportunidade de descobrir e entender o conflito latente. A doença obriga o ser humano a permanecer na trilha rumo à unidade, por isso ela é um caminho para o crescimento.
Assim, o prazer só é acessível a quem não se desvia da dor e a trilha da alegria esbarra inevitavelmente na tristeza. A capacidade de sentir dor é também a capacidade de sentir prazer. Entregar-se ao cansaço é encontrar a paz do repouso. Querer poupar-se de emoções desagradáveis é condenar-se a viver num vácuo frio e sem vida. O sofrimento e a dor fazem parte da experiência humana assim como o amor e o prazer. Ao resgatar sua identidade corporal, a pessoa torna-se capaz de perceber o que quer, o que sente e de que necessita. Assim, ela pode assumir os seus desejos e avaliá-los à luz da Palavra. Este processo rumo a uma vida mais integrada é viabilizado pela intimidade com Deus que lança fora o medo e nos encoraja a enfrentar a nossa verdade. É no silencio e na presença misericordiosa de Deus que podemos entrar em contato com os sinais do nosso corpo, lidar com nossas feridas, confessar os nossos pecados e reconhecer os nossos anseios. Abrir mão da imagem de super-homem para se tornar um ser humano de carne e osso, com luz e sombra, com emoções e desejos, é o grande desafio da nossa época que cultiva o narcisismo, o ativismo e o consumismo em vez de reconhecer que o sentido da vida reside fundamentalmente no amor.
3. A JORNADA RUMO À CURA INTERIOR
A qualidade de amor pela qual ansiamos é humanamente impossível, pois nossa capacidade de amar é limitada. Assim, deste o ventre, nossa expectativa é frustrada e gera feridas que vão se acumulando e nos deformando. O primeiro passo para a cura é reconhecer o mal que nos fizeram. Isto significa ter a coragem de entrar em contato com esta dor. Pois nossa tendência é negar este mal para tentar nos proteger do sofrimento ou assumir a culpa por ele de forma a proteger os outros. Em vez de reconhecer as limitações dos nossos pais preferimos arcar com o ônus deste amor incompleto. Por não recebermos o amor que almejamos passamos a nos sentir indignos dele. Como comenta Lya Luft no seu livro “O Rio do Meio” ao lembrar a experiência de ter sido internada num colégio: “Se me castigaram tanto, e são pessoas boas, e me amam como dizem, com certeza devo ser muito má. Era o seu jeito de se consolar... A rejeição instalara-se nela: essa falha no chão de seus passos nunca mais se fechou”
[14]. A jornada rumo à cura passa pela própria dor. Enquanto negamos estas feridas, a criança dentro de nós não pode crescer, pois permanece aprisionada, à espera de alimento e consolo. Sem tomar consciência desta realidade, reagimos diante das situações da vida a partir da nossa sofrida e negligenciada criança interior. Buscamos confirmar as hipóteses que minam nossa auto-estima ou esperamos que alguém preencha os buracos aos quais só nós temos acesso.
O segundo passo é reconhecer o mal que fizemos a nós mesmos com o mal que nos fizeram. Como vimos no capítulo anterior, quando negamos a nossa dor, rejeitamos esta criança interior que irá tentar chamar nossa atenção através do mecanismo de somatização. A dor emocional que ignoramos irá se transformar em dor física, pois estaremos adoecendo. Ao assumir a falha do outro, vamos desenvolver uma auto-imagem deturpada ou nos punir sendo nosso próprio carrasco. O atalho oposto consiste em alimentar uma autocomiseração que nos transforma em vítima inocente e passiva. Na maturidade, percebe-se que não importa tanto o que fizeram conosco, mas o que fizemos com o que realmente nos aconteceu. Identificar os mecanismos de defesa que nos aprisionam é uma tarefa árdua. Com o intuito de nos proteger do sofrimento, acabamos provocando um mal maior, pois vamos limitando nosso espaço interior e exterior em vez de encarar a verdade e buscar cura em Deus. Adoecemos, fugimos através do ativismo que nos leva ao estresse, desenvolvemos armadilhas contra nós mesmos provenientes dos sentimentos de autodepreciação, autopunição e auto-sabotagem. Em vez de repetir este mal, alimentá-lo e multiplicá-lo, a Bíblia nos convida a “vencer o mal com o bem” (Romanos 12:21).
De fato, o amor de Deus é o único antídoto para o veneno do desamor. Este amor é manifesto e acessível aos homens em Cristo que se identificou conosco e levou sobre si nossas iniqüidades e nossas transgressões. Após a morte de Cristo, os discípulos voltando para Emaús demoraram em reconhecer o seu salvador ressureto caminhando ao lado deles. Como eles, nossas expectativas não preenchidas vão gerando frustrações que nos impedem de enxergar a realidade. Ao abrir mão da imagem ideal, mas irreal de nós mesmos e dos outros, podemos enxergar que a perfeição só existe em Deus e depositar todos os nossos anseios nele que nunca nos decepcionará. Às vezes precisamos que alguém seja porta-voz de Deus e nos acompanhe neste caminho, pois tememos encontrar monstros e sermos destruídos por descobertas avassaladoras ou emoções incontroláveis. Um terapeuta pode ser um guia seguro nesta empreitada. Encarar o nosso mundo interior, as nossas dores, mágoas, decepções, é o único caminho para nos reconciliarmos conosco e com a nossa história. Resgatar esta criança abandonada, dar-lhe colo, sendo pai e mãe de nos mesmos, nos liberta da dependência dos outros e nos capacita a construir relações maduras e equilibradas. É no recolhimento e no silêncio, diante da face amorosa de Deus, que este processo se aprofunda enquanto o nosso vínculo com Deus se consolida. Somente a experiência do amor incondicional de Deus pode curar nossas feridas de rejeição à medida que o enxergamos como um pai acolhedor que nos criou e resgatou para construir conosco um relacionamento tão íntimo quanto o que o une ao seu próprio filho. Esta verdade, quando assimilada no mais profundo do nosso ser, vai ao encontro do nosso desejo mais íntimo: o desejo de sermos amados de forma plena e irrestrita.
Provérbios de Salomão, na Bíblia, nos convidam a “entender o nosso próprio caminho” (Pv 14:8) e “estar atentos para os nossos passos” (Pv 14:15). De fato, a maturidade provém da capacidade de compreender a nossa história e integrar as peças esparsas do quebra cabeça que é a nossa existência para enxergar o quadro completo. As experiências marcantes da nossa vida precisam ser consideradas com reverência para encontrarmos o seu sentido mais profundo e aprendermos com elas. Tempo e atenção são necessários se queremos evitar a superficialidade. Fomos criados à imagem de Deus que é Luz. Assim, quanto mais nos aproximamos dele numa atitude contemplativa, mais enxergamos a nossa própria realidade. O olhar amoroso de Deus nos permite superar o medo da rejeição e tirar as nossas máscaras para confessar a nossa luz e a nossa sombra. Identificamos nossos limites, feridas, mecanismos de defesa e incoerências, mas também nossa aspiração por amor, alegria e paz, nossa capacidade criativa e relacional, nossa busca de sentido existencial. Admitimos, perplexos, a coexistência simultânea e sistêmica de alegria e tristeza, prazer e dor, sofrimento e paz, amor e solidão.
Perceber esta condição da nossa humanidade entra em choque com o desejo de nos apegar a um estado mental dominante e obsessivo como a busca da felicidade permanente. Nossa sociedade a define como a ausência de dor e, para isto, construímos um castelo forte onde estamos protegidos, mas também enclausurados. Poupar-nos do sofrimento acaba nos privando da alegria, pois estes dois sentimentos são parceiros inseparáveis nesta vida. Nossa cultura prega uma felicidade artificial mantida com pílulas que anestesiam a dor camuflando nossa inescapável condição de mortalidade e fragilidade. Solitários e carentes, buscamos compensar o nosso vazio interior mediante um consumismo compulsivo. Para outros é mais fácil sofrer do que ser feliz. O sentimento de culpa e o medo do castigo os levam a desconfiar da felicidade. Eles preferem um caminho de auto-sabotagem ao risco de perder. A felicidade em Deus não é merecida. Ela é de graça. Mas ela não nos poupa do sofrimento que é a conseqüência da nossa humanidade caída.
O desejo mais profundo de amar e ser amado requer a disposição de baixar as defesas e nos torna vulneráveis. Como diz uma música popular: “Quem quiser aprender a amar, vai ter que chorar, vai ter que sofrer...”. As feridas mais profundas e dolorosas não provêm de acidentes que nos aconteceram, mas do desamor. O amor transforma nossa personalidade e nossa percepção. Ele nos arranca de um mundo unidimensional em preto e branco para nos transportar num universo de cores brilhantes e paisagens sempre renovadas. Quando o amor se retrai, sofremos a dor da perda. A alegria do encontro é proporcional à dor do desencontro. Como diz o teólogo John Main, precisamos diferenciar feridas e machucados. Os machucados como o fracasso num teste, uma derrota financeira, uma expectativa frustrada, são sofrimentos provisórios e superáveis. As feridas nos marcam para sempre. Elas modificam nossa percepção íntima e o fundamento da nossa identidade. Uma ferida significa que nada será como antes. O tempo apaga os machucados, não cura as feridas. Somente a imersão no amor absoluto de Deus pode curar nossas feridas. É preciso mergulhar na morte de Cristo para experimentar a sua ressurreição. O significado das nossas feridas emerge quando as enxergamos à luz da graça e na sua relação com outros eventos e padrões da nossa vida.
Conforme a maneira como lidamos com as nossas feridas, podemos nos tornar feridos que ferem ou feridos que curam. A Bíblia fala de dois tipos de tristeza: uma tristeza ”mundana” que leva à autocomiseração nos faz assumir o papel de vítima e “produz morte”; uma tristeza na perspectiva de Deus que gera transformação e vida (2 Coríntios 7:10). Mergulhando na história da nossa vida, encontramos momentos dramáticos em que tivemos que fazer a escolha crucial de nos tornarmos amargurados por nossas feridas ou feridos que curam. O filme recente “Patch Adams: o amor é contagioso” fala de um homem que fez a escolha de ser um ferido que cura e quase desistiu quando uma nova ferida o empurrou na beira do precipício. Para seu próprio bem e o bem das pessoas à sua volta, ele finalmente escolheu seguir o princípio bíblico de “vencer o mal com o bem” (Romanos 12:21). Na maioria das vezes, optamos por uma solução intermediária mesclando sentimentos de magoa e desejo de superar, passando alternativamente de vítima à protagonista.
A única forma de ficarmos livres do mal que nos fizeram e que fizemos a nós mesmos é através do perdão. A palavra grega para “perdão” significa “libertar-se” enquanto ressentimento significa sentir de novo”. Sem o perdão continuamos presos àqueles que nos feriram. “Quando genuinamente perdoamos, libertamos um prisioneiro e então descobrimos que o prisioneiro que libertamos era nós”
[15]. Apenas o perdão nos liberta da injustiça do outro. O perdão imerecido de Deus nos capacita a exercer um perdão imerecido para aqueles que nos feriram. A partir da experiência restauradora de nos saber perdoados por Deus, somos chamados a ser despenseiros da Sua graça. A compaixão nos ajuda a nos identificar com todas as emoções humanas e perdoar, já que “o perdão somente é real para quem descobriu a fraqueza de seu amigo e os pecados de seu inimigo em seu próprio coração”
[16]. Há duas categorias de pessoas: as pessoas culpadas que reconhecem seus erros e as pessoas culpadas que não os reconhecem. Nossas feridas assim como nossas falhas confessadas são as fissuras através das quais a graça pode entrar.
A busca de felicidade fora de Deus alimenta o nosso falso self. Enquanto perseguimos nossa felicidade como prioridade absoluta, iremos fazer isto às custas do bem estar do outro. O anseio por segurança, afeto e reconhecimento também nos torna escravos da expectativas dos outros. O quarto interior é o lugar da cura da nossa baixa auto-estima, do desejo de aprovação que nos leva a construir um falso self. Mas quando buscarmos minorar a dor do nosso próximo, encontraremos a plenitude de alegria para a qual fomos criados. Ao acolher a realidade com todas as suas facetas, não podemos deixar de perceber o próprio Deus. Cristo é a Verdade e a Vida. Por isto, ao optarmos pela verdade encontraremos a Cristo, assim como através das coisas bonitas podemos enxergar a própria beleza. A cruz de Cristo proclama que a vida não se preserva negando a morte, mas acolhendo o ciclo de morte e renascimento. Por isto, somos chamados a “levar sempre nos corpo o morrer de Jesus para que também a sua vida se manifeste em nosso corpo”( 2 Coríntios 4:10). Assim, em vez de fugir do sofrimento através de uma vida artificial, podemos superá-lo com o bálsamo do amor de Deus que transforma o mal em bem. Precisamos olhar para os retalhos espalhados da nossa vida na perspectiva de Cristo que venceu o mal e a morte. Assim podemos costurá-los para formar uma colcha que reflete a obra de arte única que é a nossa existência à luz do amor de Deus e na dependência do Espírito Santo.
4. DESABROCHAR PARA A VIDA
Nunca é tarde para crescer. Permanecer jovem de espírito é manter a disposição de continuar aprendendo ao longo da vida. Com base neste critério, existem jovens velhos e velhos jovens. Depende da postura interior frente aos desafios do dia-a-dia. Desenvolver o próprio potencial requer o desejo de conhecer a si mesmo numa atitude receptiva e acolhedora em vez de crítica e cética. Temos a capacidade de estimular ou inibir as características que compõem a nossa personalidade. O primeiro passo para sair do casulo consiste em observar nossas atitudes e reações. Nosso corpo conta a história da nossa vida e fala das nossas alegrias e tristezas, sonhos e mágoas. Nossa voz, nosso olhar, nossos movimentos, nossa maneira de apertar a mão ou abraçar, de expressar afeto ou raiva, são formas peculiares de nos comunicar com o mundo externo. Quanto mais conscientes destes aspectos de nós mesmos, maior a possibilidade de selecionar e modificar aquilo que não condiz com a nossa fé.
Para transformar e aprimorar nossa identidade, precisamos primeiro aceitar-nos como somos, assumir nossa biografia, entender nossos mecanismos de defesa, respeitar nossa realidade interior. A partir daí podemos questionar nossas escolhas, rever alguns paradigmas que possivelmente nos foram ensinados à nossa revelia e não correspondem mais à nossa compreensão atual. Força de vontade e desejo de viver são essenciais para superar as barreiras que fomos construindo ao longo da nossa existência. Quando nos sentimos sobrecarregados, desanimados, cerceados pelos outros, tendemos a nos enxergar como vítimas, mas não podemos esquecer que somos nos que aceitamos carregar fardos que não são nossos, que nos deixamos usar, invadir, desrespeitar, maltratar, manipular e desvalorizar, que extrapolamos os nossos limites. Nesta hora podemos escolher entre a omissão ou resignação e a mudança, entre a revolta e a busca de uma solução criativa.
As mulheres acharam que o simples fato de trabalhar fora de casa garantiria sua emancipação, mas elas ganharam apenas uma dupla jornada de trabalho. A liberdade não se conquista apenas externamente. Ela começa dando-se a permissão de dizer "Sim" ou "Não", ou seja, deixando de atender às expectativas dos outros para ser coerente consigo mesmo. Isto significa assumir a responsabilidade por suas escolhas. Como pondera Fiorângela M. Desidério em seu livro "Acorde, Mulher!"
[17], às vezes dizer "Não" à ação é dizer "Sim" à pessoa. Se digamos "Sim" quando queremos dizer "Não" estamos desrespeitando a nos mesmos e mentindo para o outro. Nem sempre "Não" significa rejeição, pode expressar carinho, proteção, estímulo, como "Sim", em vez de amor, pode significar fuga, comodismo, hipocrisia. No Brasil, muitas pessoas dizem "Sim" em vez de "Talvez" e "Talvez" em vez de "Não".
Deixar de escolher é deixar que outros escolham no nosso lugar. Nossas relações são o que fazemos delas. Até quando não podemos mudar nossas circunstâncias, ainda assim somos livres para decidir como lidar com elas. O filme «A vida é bela» ilustra dramaticamente esta verdade mostrando um pai transformando o campo de concentração em acampamento para proteger seu filho. Victor Frankl também analisou a diversidade de atitudes num campo de concentração onde as pessoas estão submetidas às mesmas condições, mas reagem em função de seus valores. Assim, a Palavra nos exorta a escolher a vida, “amando ao Senhor nosso Deus, dando ouvidos à sua voz, e apegando-nos a ele” (Deuteronômio 30:20). A outra opção é escolher a morte, um caminho destrutivo para mim e para as pessoas com quem convivo. As magoas alimentadas se transformam em monstros. Ficar na fossa não leva a lugar nenhum. Fugir da realidade também. É preciso ter a coragem de sair da toca ou descer das nuvens. Em vez de procurar culpados, é melhor canalizar as energias para encontrar soluções para as situações que nos incomodam. O primeiro passo é mais difícil porque quebra padrões de comportamento já estabelecidos. Ser autêntica incomoda, provoca resistências. Mas você não está sozinho nesta luta por autonomia. Deus estará te capacitando e você pode encontrar pessoas que se identifiquem com você e sirvam de estímulo na sua caminhada. O corpo de Cristo é a forma escolhida por Deus para nossa edificação mútua. O Espírito Santo distribuiu a cada discípulo de Cristo dons para que possamos ser, uns para os outros, expressões da presença de Cristo entre nós.
A vida elabora um currículo para cada pessoa. Mas a realidade interna de cada um não depende das circunstâncias, é construção própria. Cada um dá o visto de entrada e saída do seu mundo interior. Viver significa estar presente, prestar atenção em si, nos outros, no mundo, perceber a unicidade de cada um. Voltar para si mesmo é essencial para não se perder nos outros. Ser o seu melhor amigo, transformar a solidão em solitude na companhia daquele que nos criou e nos salvou, curtir-se, gratificar-se, tomar-se nos braços, nos liberta da dependência dos outros e nos ajuda a seguir nosso caminho sendo fiéis a nos mesmos e honrando a Deus com os recursos, talentos e dons que ele nos confiou. Somente aqueles que se sentem amados são livres para amar, isto é, são capazes de “dar de acordo com a capacidade do outro de receber e receber de acordo com a capacidade do outro de dar”
[18]. Á medida que nos aceitamos como pessoas profundamente amadas por Deus, podemos estar com os outros de forma não possessiva.
5. AS EVIDÊNCIAS DA TRANSFORMAÇÃO
A primeira evidência da nossa transformação é um coração grato a Deus. A Bíblia, em Êxodo 23:19, nos convida a trazer as primícias da colheita para Deus. Trata-se de dar antecipadamente, incondicionalmente, expressando nossa confiança e dedicação. Esta oferta revela uma gratidão que não é circunstancial, mas existencial, movida por reconhecimento, não por medo ou barganha. Ela é fruto da consciência de quem Ele é e de quem somos. Em primeiro lugar «porque Deus é bom e a sua misericórdia dura para sempre»(Salmo 106:1). Esta premissa nos parece óbvia e natural, mas Deus poderia ser um tirano, sádico, cruel, que tivesse prazer em nos enganar como algumas divindades da antiguidade. Ele poderia nos controlar através do medo, mas ele deseja nos cativar e estabelecer conosco uma relação filial. No entanto, nossa maior tentação é duvidar da sua bondade. Foi esta dúvida, insuflada pela serpente, que provocou a Queda. Em seu livro «A Batalha da Cruz»
[19], Rubem Amorese comenta: «A estratégia de Satanás...consiste em produzir, por meio do sofrimento, um coração ingrato; portanto ressentido, rancoroso, amargurado, revoltado e rebelde». Achamos que, por nos amar, Deus deve nos livrar do sofrimento. Assim, quando o mal nos aflige, nos sentimos abandonados por Deus. Até Jesus questionou o Pai na cruz, mas morreu reafirmando sua comunhão com Ele.
Sim, Deus é fiel: seu amor é generoso e incondicional. Não depende de reciprocidade. Não é manipulativo como a maioria dos nossos relacionamentos. Ele não é uma incógnita. Pelo contrário, ele se revela em vez de se esconder e nos deixar tateando no escuro. Também não é um deus ausente, mas um Deus que intervém e, muitas vezes, através de nós, dando-nos o privilégio de sermos emissários, porta-vozes e expressão do seu amor. Tampouco é um deus distante ou autoritário, mas sim um Deus que nos ouve e interage conosco. Não se trata de uma energia impessoal, como acredita a Nova Era, pois ele seria menos do que nós já que temos consciência de existir. É um Deus pessoal que se relaciona e nos oferece sua intimidade. Finalmente, não é um deus solitário que estabeleceria conosco uma relação simbiótica e de co-dependência. É um Deus trino que nos convida a participar de uma comunidade, numa rede de relações inclusivas e diversificadas. Fomos criados à imagem de Deus e, por isto, somos capazes de amar, criar, sentir prazer através dos nossos sentidos, ter senso moral, ético e estético. Somos inteligentes e dotados de autonomia. O pecado nos deformou, mas, pela graça, podemos reconhecer a nossa sombra sem medo de ser rejeitados. Nossa gratidão é fruto do olhar amoroso e perdoador de Deus que nos liberta da culpa. Esta revelação, como está escrito em Zacarias 12:10, é dádiva do Espírito Santo. Ela nos liberta da armadilha do orgulho pela nossa luz e da autopunição ou do desespero por causa da nossa sombra. Encarar a verdade, sem amor, acerca de nos mesmos seria desestruturador. A verdade em amor é libertadora. Ela nos liberta da ilusão de perfeição, da onipotência, da auto-suficiência, e nos abre o caminho da humildade e da sabedoria, fruto do reconhecimento das nossas limitações e da soberania de Deus.
É mais fácil ser grato por benefícios concretos, materiais, visíveis. Mesmo assim, a gente tende a se acostumar à Graça. Só damos valor à saúde quando ficamos doentes. Só valorizamos as pessoas quando deixam saudades. Se somos ingratos em relação às bênçãos materiais mensuráveis e palpáveis, quanto mais com as bênçãos que dependem de revelação e discernimento! A gratidão nos renova, nos ajuda a enxergar além do sofrimento, além do mal (2 Coríntios 4:15-18), nos permite dar graças pelas provações (Tiago 1:2): não pelo sofrimento em si (que não é da vontade de Deus), mas pela capacidade de Deus de reverter o mal em bem. Deus nos alerta que, no mundo, teremos tribulações. Ele não nos livra sempre das dificuldades, mas ele muda o nosso olhar sobre elas. Ele está junto para nos capacitar a lidar com o sofrimento de forma que este não seja inútil. Ele nos ajuda a passar da revolta para a superação percebendo que o mal já foi vencido na cruz e visualizando a luz no fim do túnel. Gratidão é uma Graça que nos capacita a discernir quem é Deus e quem somos para viver a partir da nossa verdadeira identidade de filhos amados pelo pai, salvos pelo Filho e capacitados pelo Espírito Santo. Ela nos permite enxergar além do material para o que é eterno. Dar as primícias é um ato de fé incondicional, de esperança. Como diz Henri Nouwen, «esperar estando aberto a todas as possibilidades é uma atitude extremamente radical perante a vida... É desistir de exercer o controle sobre o nosso futuro e deixar que Deus defina a nossa vida. É viver com a convicção de que Deus nos molda de acordo com o seu amor e não de acordo com o nosso próprio medo»
[20]...Costumamos selecionar na nossa existência alguns momentos privilegiados para serem lembrados, mas somos chamados a abraçar com gratidão toda a nossa vida. Nela, alegria e sofrimento estão entrelaçados e cada experiência faz parte do caminho da cruz que leva a uma nova vida. Assim nosso passado inteiro pode tornar-se a fonte de energia que nos moverá para frente.
A segunda evidência é a esperança. A esperança é confiar no futuro porque “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus” (Romanos 8:28). Não é resignação passiva, mas fé pessoal e íntima naquele que já venceu a morte e o mal. “A comunidade cristã é o lugar onde mantemos a chama da esperança viva entre nós... É assim que teremos a coragem de dizer que Deus é um Deus de amor, mesmo quando à nossa volta vemos apenas rancor. É por isso que poderemos proclamar que Deus é um Deus de vida mesmo quando à nossa volta vemos morte, destruição e agonia... Esperar juntos, alimentar o que já começou, esperar pela sua completa realização. Esse é o significado do matrimônio, da amizade, da comunidade e da vida cristã”
[21]. Deus nos convida às bodas do cordeiro, um banquete eterno celebrando sua aliança conosco através do seu sangue. Ele deixa como lembrança a Ceia, uma refeição com gosto de intimidade e esperança.
Outra evidência é o desejo de agradar a Deus. Rubem Alves comentou numa crônica que os presentes que damos para Deus revelam a maneira como o enxergamos. Alguns vêem Deus como um sádico e o presenteiam com sacrifícios e auto-flagelos. Outros vêem Deus como um banqueiro que soma créditos e cobra débitos. Eles então tentam agradar a Deus com boas ações que possam compensar as suas dívidas. Outros ainda vêem Deus como um corrupto que tentam comprar através de barganhas para conseguir o que almejam. Mas Deus é um pai amoroso que se alegra com a nossa alegria e sofre com a nossa dor. Agradamos a Deus quando desfrutamos da vida abundante que Cristo veio nos dar. Podemos nos inspirar em alguns itens do poema do Carlos Drummond de Andrade: «Síntese da Felicidade» e construir nosso próprio roteiro do que vamos oferecer para Deus. Iremos perceber que agradar a Deus é, antes de tudo, saborear os presentes que ele nos deu e compartilhá-los com os outros.
Fruto do mato
Cheiro de jardim...
Viver sem inimigos...
Noite de lua cheia
Rever uma velha amizade
Ter fé em Deus...
Tomar banho de cachoeira...
Aprender uma nova canção
Esperar alguém na estação
Queijo com goiabada
Pôr-do-sol na roça
Uma festa
Um violão
Uma seresta...
O próprio Rubem Alves acrescentaria: « andar diariamente, sem obrigação de fazer exercício, por algum bosque ou jardim deste universo maravilhoso, por puro prazer,... gastar tempo observando o vôo dos pássaros, a forma das nuvens, a folhagem das árvores,... cultivar a solidão e o silêncio: um espaço sagrado,... ouvir canto gregoriano, Bach,... receber os amigos,... brincar »
[22]. Eu imagino que Deus também se alegra cada vez que estendemos a mão para o outro, temos uma palavra de apreço e incentivo, somos sensíveis às necessidades das pessoas que ele coloca no nosso caminho. Ele declarou que tudo o que fazemos em prol do outro, ele o recebe como se fosse para ele mesmo. Deus nos criou e deseja ver desabrochar todas as qualidades, talentos e dons que ele colocou em nós. Reconhecer estas dádivas e desenvolvê-las é uma forma prática de honrar a Deus. Amar, ser criativo, generoso, solidário, pacificador, cuidar bem de nós mesmos, do nosso próximo e da natureza que ele nos confiou são uma forma de expressar a nossa gratidão a Deus.
A parábola do Filho Pródigo é um roteiro espiritual. Voltar para casa é fazer nossa morada onde Deus escolheu morar. A casa é o centro do nosso ser onde podemos ouvir a voz que diz : « Você é meu filho/minha filha amada em quem me comprazo ». Há muitas outras vozes. Vozes que dizem : « Vá e prove que é alguém, prove que merece ser amado através do sucesso e do poder ! ». Deixamos a casa cada vez que deixamos de confiar nesta voz que nos chama de filhos amados para seguir vozes que nos oferecem maneiras diversas de ganhar este amor que desejamos tão intensamente. Enquanto perguntamos : « Você me ama? »
[23], damos ouvido às vozes do mundo e nos tornamos escravos porque o mundo é cheio de « se ». O mundo diz : « Sim, eu te amo se for bonito, inteligente e rico, se tiver uma boa educação, um bom emprego e for bem relacionado ». Precisamos escolher nos sujeitar ao mundo que nos aprisiona ou assumir a identidade de filhos de Deus que nos liberta. Seguir a Cristo, significa deixar Deus ser Deus. Deixá-lo operar toda a cura, restauração e renovação. Após identificar em nós características do filho pródigo e do seu irmão, somos chamados a tornar-nos como o pai : escolhendo o amor ao invés do poder, sendo acolhedores e perdoadores.
CONCLUSÃO
A espiritualidade reforça o nosso vínculo com o Deus-triuno que vai se revelando à medida que nos aproximamos com reverência e receptividade, pois « a intimidade do Senhor é para os que o temem »(salmo 25 :14). « A palavra de Deus conduz-nos ao silêncio ; o silêncio torna-nos atentos à palavra de Deus. A palavra de Deus penetra através da espessura da verbosidade humana até o centro silencioso do nosso coração ; o silêncio abre em nós o espaço onde a Palavra pode ser escutada. Sem ler a Palavra, o silêncio banaliza-se e sem silêncio a Palavra perde o seu poder recriativo. A Palavra conduz ao silêncio e o silêncio à Palavra. A Palavra nasceu em silêncio, e o silêncio è a resposta mais profunda à Palavra »
[24]. Através do silêncio fértil e da Palavra, podemos reconstruir nossa identidade em Deus, somos curados e transformados à Sua Imagem para ser sinal da Sua presença no mundo. Viver como cidadãos do Reino de Deus é reordenar nossas prioridades para estarmos enraizados nele que é o centro de todas as coisas. O Reino de Deus é a atitude interior que dá liberdade ao Espírito para se mover em nós e através de nós. Trata-se de um caminho de despojamento que nos leva a experimentar uma nova e inesperada liberdade. « Somente os pobres podem entrar no Reino de Deus. Não somos nada e não temos nada por nos mesmos...Tudo o que temos é fruto do amor divino. Mas tudo o que queremos possuir é arrancado do reino do Amor...Quando estamos conscientes de que não possuímos nada, então estamos ricos do amor de Deus... Na contemplação, aprendemos gradualmente a valorizar coisas e pessoas sem o desejo de possuí-las »
[25].« Vender o que se possui, deixar sua família e amigos e seguir a Jesus não é um acontecimento único na vida. É preciso fazer isto muitas vezes e de muitas maneiras diferentes»
[26]. Humildade e despojamento preparam-nos a morrer, sabendo que « a jornada da vida para a morte há de conduzir-nos, finalmente, da morte para a vida. Compreendemos « nossa vida como uma constante partida : do temporário para o eterno, do incompleto para o absoluto »
[27]. Pois «a vida é uma constante despedida de lugares bonitos, pessoas bondosas e maravilhosas experiências »
[28]. Quando caminhamos do reino do medo para o reino do amor, o Espírito nos liberta de nossas compulsões e nos fertiliza. « Os três principais aspectos de uma vida fecunda são a vulnerabilidade, a gratidão e a atenção... o gozo completo é a recompensa de uma vida de intimidade e fecundidade na casa de Deus... Somos invadidos pela alegria de Jesus que nos leva a celebrar a vida. Intimidade, fecundidade e gozo são os frutos de uma vida movida pelo amor de Deus e não pelo medo»
[29].
A Graça de Deus se manifesta fora dos nossos arraiais religiosos. Por isto, somos desafiados por alguém como Herbert de Souza, Betinho, que teve a coragem de encarar sua própria finitude. Ao lidar com sua crise pessoal, ele pôde ser luz para lidar com a crise da nossa sociedade. Sua fragilidade se tornou um símbolo de esperança e mobilizou milhares de pessoas que reagiram ao desânimo provocado pelo escândalo da corrupção institucionalizada e encontraram uma consciência nova de cidadania, resgatando a dignidade do ser humano através da solidariedade com aqueles que sofrem. Vida cristã é isto: Deus em nos servindo Deus no outro. Viver plenamente nossa humanidade é aceitar que « as pessoas que nos amam também nos desapontam, momentos de grande satisfação também revelam necessidades não satisfeitas, estar em casa mostra também nossa falta de um lar »
[30]. Estas tensões despertam em nós a saudade do paraíso e nos levam a aguardar a volta de Cristo. Maranata!
Isabelle Ludovico da Silva é psicóloga com especialização em Terapia Familiar Sistêmica. E-mail:
isabelle@ludovicosilva.com.br.
[1]Keating, Thomas, Open mind, open heart, Rockport USA: Element Inc., 1986, p.5 e 6.
[2]Carvalho, Esly Regina, Saúde emocional e vida cristã; curando as feridas do coração, Viçosa: Ultimato, 2002, p.11 e 13.
[3] Seamands, David, O poder curador da graça, São Paulo: Editora Vida, 1990, p.158.
[4] Ludovico da Silva, Osmar, Introdução à espiritualidade cristã: uma teologia do afeto, em A igreja evangélica na virada do milênio, Brasília: Comunicarte, 1995, p.157.
[5] Yancey, Philip, Decepcionado com Deus, São Paulo: Mundo Cristão, 1997, p.45.
[6] Nouwen, Henri, Renovando todas as coisas, São Paulo: Cultrix, 1981, p.52.
[7] Nouwen, Henri, Signes de vie, Bellarmin, 1997.
[8]Nouwen, Henri, A espiritualidade do deserto e o ministério contemporâneo, o caminho do coração, São Paulo: Ed. Loyola, 2000,p.23 e 24.
[9]Nouwen, Henri, Crescer: os três movimentos da vida espiritual, Lisboa: Ed. Paulinas, 2001, p.39.
[10]Nouwen, Henri, Mosaicos do presente, São Paulo: Ed. Paulinas, 1998, p.122.
[11] Alves, Rubem, Creio na ressurreição do corpo: meditações, Rio de janeiro: CEDI: Tempo e Presença, 1982, p.52.
[12] Lowen, Alexander, O corpo traído, São Paulo: Summus, 1979, p.19.
[13]Dethlefsen, T. & Dahlke, R., A doença como caminho, São Paulo: Cultrix, 1997.
[14] Luft, Lya, O rio do meio, São Paulo: E. Mandarim, 1996.
[15]Yancey, Philip, Maravilhosa graça, São Paulo: Editora Vida, 1999, p.104.
[16] Nouwen, Henri, O sofrimento que cura, São Paulo: Ed. Paulinas, 2001, p.68.
[17]Desidério, Fiorângela, Acorde, Mulher! São Paulo: Ed. Paulinas, 1988.
[18]Nouwen, Henri, A voz interior do amor, São Paulo: Ed. Paulinas, 1999, p.71.
[19]Amorese, Rubem, A batalha da cruz, Brasília: Comunicarte, 1993.
[20]Nouwen, Henri, O caminho da esperança, São Paulo: Ed. Paulinas, 1998, p.19 e 20.
[21]Nouwen, Henri, O caminho da esperança, São Paulo: Ed. Paulinas, 1998, p.24,26 e 27.
[22]Alves, Rubem, A festa de Maria, Campinas: Papirus, 1996, p.97.
[23] Nouwen, Henri, A volta do Filho Pródigo, São Paulo: Ed. Paulinas, 2003, p. 47.
[24] Nouwen, Henri, Crescer: os três movimentos da vida espiritual, Lisboa: Ed. Paulinas, 2001, p.169.
[25] Bloom, Antony, L’école de la prière, Paris: ed. du Seuil, 1972.
[26] Nouwen, Henri, O caminho do amanhecer, São Paulo: Ed. Paulinas, 1999, p.61.
[27] Nouwen, Henri, Transforma o meu pranto em dança,Rio de Janeiro: Textus, 2002, p.103 e 104.
[28] Nouwen, Henri, Uma carta de consolação, São Paulo: Cultrix, 1882, p.34 e 35.
[29] Nouwen, Henri, Signes de vie, Bellarmin, 1997.
[30] Nouwen, Henri, Podeis beber o cálice? São Paulo:Ed. Loyola, 2002, p.75.