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- Marcelo Gleiser
Passado o Natal, entramos naquela estranha fase de transição, o fim de um ano
e o começo de outro. É o período do inevitável balanço do que passou, dos
projetos para o futuro, das promessas de não repetir erros, de impor novos
desafios. Numa vida em que não temos o privilégio do recomeço - a vida que temos é
essa só - a passagem de ano vem cheia de significado. É quando abrimos
espaço para
nos reinventar, mesmo que apenas um pouco.
Existe uma tensão, até mesmo um aparente paradoxo, entre como vemos a
natureza, com seus ciclos que se repetem, e como vemos a passagem do tempo,
avançando sempre, resolutamente. Afinal, desde os primórdios da humanidade
sabemos da repetição do dia e da noite, das fases da Lua, das estações do ano.
Para os que prestam mais atenção aos céus, sabemos que os planetas também têm
órbitas periódicas e que alguns cometas, como o famoso Halley, retornam
periodicamente. A natureza parece funcionar em ciclos que se repetem ao longo
dos anos, sem um início e um fim. Por que não nós?
Muitas culturas creem num tempo cíclico, no qual tudo se repete, incluindo
nossa existência. Talvez os detalhes de cada ciclo sejam diferentes, como no
caso da reencarnação dos hindus, mas não existe um início e um fim, apenas
ciclos e mais ciclos, o tempo como uma roda, o mito do eterno retorno, como
dizia Nietzsche. Se tudo se repete infinitas vezes, o imperfeito pode vir a ser
perfeito.
Tudo mudou com a descoberta do tempo linear, que tem um começo e um fim. Os
ciclos existem, mas localmente, dentro de um tempo global que avança sempre. Se
cada novo ciclo é ligeiramente diferente de seu antecessor, o tempo deixa de ser
uma roda. A metáfora muda para um rio, fluindo inexoravelmente, além do nosso
controle.
A ciência moderna confirma a ideia do tempo linear. Até mesmo o próprio
Universo tem uma história, com um começo, um meio e um fim. Não sabemos os
detalhes do começo ou os do fim, mas temos várias hipóteses a respeito. Sabemos
muito sobre o meio, sobre como os átomos, as galáxias, as estrelas e os planetas
surgiram e como se transformam. Sabemos que os ciclos de criação e destruição
ocorrem por todo o Cosmo, novas estrelas nascendo enquanto outras morrem, nenhum
ciclo exatamente igual ao anterior, mas todos parte do tempo cósmico que avança
sempre, pouco interessado no que ocorre aqui ou acolá.
Essa visão muitas vezes inspira uma certa angústia nas pessoas, que sentem-se
pequenas perante todo esse espaço, todo esse tempo tão mais vasto do que podemos
compreender. Estranha essa nossa condição de podermos entender tanto e mudar tão
pouco do que ocorre nessas escalas gigantescas.
Mas esse é o foco errado, destrutivo, o foco do medo, o medo que vem de
querer controlar tudo e não poder. Existe um outro olhar, voltado ao nosso
planeta, à raridade e à beleza da vida, ao privilégio de nós, máquinas
moleculares evoluídas após bilhões de anos de história cósmica, sermos capazes
de refletir sobre a existência.
O foco criativo olha para o mistério da vida, da
consciência, da origem cósmica, olha para a nossa raridade e respira fundo,
inspirado, deixando o medo para trás, para o ano que passou. O novo existe a
cada momento; basta olharmos para o mundo com o encantamento que merece.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/marcelogleiser/2013/12/1390952-o-fim-e-o-comeco.shtml
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