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- Guilherme de Carvalho
“Árvore da Vida” (
The Tree of Life, 2011) não é uma unanimidade. Em
Cannes foi criticado por metade da plateia e aplaudido pela outra
metade. Levou a
Palme D’Or em Cannes (2011) e não levou nada no Oscar
(2012), a despeito das indicações. Foi assistido quatro, cinco, seis vezes pelos
fãs, e abandonado na metade ou antes por quase a metade do publico (ao menos na
sala de cinema aonde eu estava). Pelo que ouvi, quase sempre no mesmo ponto (a
parte do “dinossauro”).
Pessoalmente, considero este filme como uma das grandes obras-primas da
história do cinema, e como uma das maiores peças de arte religiosa desde que a
sétima arte foi inventada. E muita gente diria amém, seja pela sua qualidade
técnica e artística, seja por sua profundidade espiritual.
Que tipo de filme poderia levar cristãos e não cristãos a “cuspir” sobre ele
e ao mesmo tempo em que um ateu professo como o apresentador da Globo
Zeca
Camargo chega a reconhecer publicamente que seu ateísmo foi abalado pela
película? (Veja o seu artigo,
“O Cômico e o Cósmico”).
PORQUE MUITA GENTE NÃO ENTENDEU MALICK
Com a licença dos leitores, vou agora ferir nervos sensíveis: exceto, talvez,
por uma estreita faixa da assistência que não gostou do filme por razões
genuinamente técnicas ou ideológicas, suspeito que a maior parte dos cristãos e
não cristãos que viram e não gostaram
não souberam ver
o filme, devido aos longos anos de condicionamento televisivo e
hollywoodiano.
Ou melhor: não sabemos ver cinema como arte. Uma das observações mais duras
do cineasta russo
Andrei Tarkovski sobre o cinema é exatamente essa:
que o cinema deixou de ser uma arte relacionada à imagem e à imagem no tempo e
se tornou teatro filmado.
"… os filmes de Lumière foram os primeiros a
conter a semente de um novo princípio estético. Logo a seguir, porém, o cinema
distanciou-se da arte e empenhou-se em seguir o caminho mais seguro dos
interesses medíocres e lucrativos. Nas duas décadas seguintes, filmou-se
praticamente toda a literatura mundial, além de um grande número de obras
teatrais. O cinema foi explorado com o objetivo direto e sedutor de registrar o
desempenho teatral; tomou o caminho errado…”
Andrei Tarkovski, Esculpir o Tempo, Martins
Fontes, p. 71.
Não é preciso ser purista nem gostar dos filmes de Tarkovski (o que, na
verdade, é difícil) para reconhecer que há algo verdadeiro aí. Se o cinema for
apenas teatro filmado, não é uma forma de arte distinta. Se for apenas
tecnologia de efeitos especiais, o cinema e o
game poderiam ser a mesma
coisa.
Não há pecado em assistir a um filme por pura diversão – é para isso que
serve o filme “pipoca” – e ninguém tem a obrigação de gostar e de aprender a
gozar de cada forma de arte criada pelo homem. Mas não é inteligente utilizar o
entretenimento como critério final de julgamento da arte.
Mais do que isso, talvez possamos até dizer que se
Blaise Pascal
estiver certo, e o entretenimento for uma forma do homem evitar a consciência de
sua ruína espiritual e de sua necessidade de Deus, é
subecristão
considerar o poder de entretenimento um critério final para qualquer coisa, e
muito menos para a arte.
A questão é que o último filme de Malick não é,
definitivamente, uma peça de entretenimento. Vou aqui tentar interpretá-la como
uma obra de arte no sentido Tarkovskiano, que gira em torno do princípio
estético próprio do cinema, da criação de “esculturas” temporais; e que evita
perder-se no teatro, ou no recurso tecnológico.
Não se pode assistir
The
Tree of Life como se assiste “O Homem Aranha”. Não é que não se possa
assistir “O Homem Aranha”, mas que não se pode assistir aos dois filmes com o
mesmo espírito.
Assistir “A Árvore da Vida” é mais como ir a um museu de arte, para ter a
chance de ver um
Rembrandt: prende-se a respiração e gastam se
pensamentos e emoções na busca de uma experiência estética
intencional.
Não se trata de uma “distração”, de buscar algo para “rir um pouco”, nem do
estímulo de uma história aventuresca. Se alguém nunca foi a um museu de arte e
jamais quis ir a um; se a única música que ele escuta é a do rádio (para não se
sentir sozinho em casa) ou aquela música que evoca as sensações da última
balada, é evidente que tal pessoa não está preparada para avaliar o cinema de
Malick.
Repito: se você sabe ver um filme como arte e não gostou de
Tree of
Life, isso não se aplica a você. É perfeitamente adequado desaprovar de
forma inteligente uma obra de arte. Mas infelizmente isso não se aplica à
maioria do público brasileiro; de modo que uma leve e saudável suspeita de si
mesmo pode ajudar bastante ao cinéfilo.
Mas há algo mais em jogo. Segundo minha percepção, o filme de Malick não é
apenas uma obra de arte, mas uma obra de arte
religiosa. E isso
acrescenta uma segunda complexidade: é que assistir “A Árvore da Vida” é um
pouco como ir à Igreja; ou, para aqueles com uma espiritualidade mais ampla, ter
uma visão espiritual de uma paisagem natural grandiosa.
De fato “Terry” chega à
ousadia de transformar a sala de cinema em uma igreja ao botar o público para
ouvir o sermão de um padre, dentro de uma capela, baseado no livro de Jó; e um
sermão de arrancar o couro (veja o texto
AQUI). Quem, hoje, teria a coragem, a capacidade, e a autoridade para fazer
uma coisa dessas? Uns poucos… e
Terrence Malick.
E daí a dúvida: a igreja estava em Cannes? Ou será que Cannes foi à igreja?
Uma coisa é certa: se você não sentiu essa fusão religiosa ao ver o filme, então
você ainda não viu o filme.
E essa é a outra razão, creio, porque muita
gente não entendeu Malick: é que lhes faltavam categorias espirituais e até
mesmo teológicas para assistir ao filme.
Posso citar uma:
A Árvore da
Vida é inacessível sem uma categoria teológica básica, um
teosofema que é enunciado explicitamente por Malick no princípio do
filme como sua subestrutura fundamental: a distinção de
Natureza e
Graça, que tem uma longa história no ocidente desde suas raízes
bíblicas, passando por Agostinho, Tomás de Aquino, Calvino, Pascal, até o
pensamento cristão do século XX (Tillich, Barth, Dooyeweerd, de Lubac, entre
outros).
A completa ignorância sobre a profundidade e a importância dessas categorias
bloquearam a compreensão do filme para uma miríade de críticos de cinema –
alguns até experientes – que tentaram reduzi-lo a uma leitura psicológica
edipiana, ou a uma crítica da sociedade americana dos anos 50, ou a um
experimento surrealista, ou uma imitação de
Kubrick em “2001″ (absurdo
dos absurdos), ou a mais ridícula de todas: uma coleção sem propósito de imagens
e sons na esteira dos documentários da
NatGeo.
E quando esse
secularismo raso se misturava com a falta de educação artística, os resultados
só poderiam ser catastróficos.
Ao que parece esses críticos simplesmente assumem
que as categorias teológicas cristãs (que, a propósito, foram essenciais para a
própria constituição das categorias filosóficas modernas) “não podem” ser
essenciais para compreender uma obra-prima contemporânea.
Não podem porque isso
seria anacrônico, porque seria kitsch, porque “ninguém usa isso mais”, porque
isso não é coisa de gente “inteligente”, porque seria “propaganda religiosa”… E
assim eles prosseguem, arrancando os próprios olhos bem diante da evidência.
De novo, preciso observar que alguns espectadores e críticos realmente
entenderam a carga religiosa e existencial do filme, e não gostaram exatamente
disso.
Ao que se sabe essa foi a motivação de parte das vaias em Cannes; mas não
deveríamos esperar algo diferente de um filme que pretende atingir o espectador
em sua raiz espiritual. Isso dói tanto quanto tocar na raiz de um dente.
Assim, sugiro àqueles que viram o filme e não o entenderam, ou não gostaram
dele, que
tentem de novo.
Tentem diferente, com outra atitude. Mais do
que isso: orem (ou meditem, se não forem cristãos) antes e depois de ver o
filme.
Não dá pra assistir
A Árvore da Vida só com os olhos.
Tem que
ser com a alma.
MALICK E O FILME
Não temos espaço para uma sinopse aqui, então recomendo
a
sinopse da Wikipédia, onde há detalhes sobre o enredo.
Quanto ao diretor, também não faltam websites com informações, embora faltem,
efetivamente, informações! Terrence Malick é uma das figuras mais enigmáticas do
cinema contemporâneo. Avesso a fotografias, a entrevistas, ausentou-se até mesmo
de Cannes para evitar publicidade.
Malick nasceu em Waco, Texas, em 30 de Novembro de 1943, cresceu num contexto
rural, estudou filosofia em Harvard (aluno de
Stanley Cavell,
importante estudioso de Heidegger, Kierkegaard e Wittgenstein, e filósofo do
cinema) e no Madgalen College de Oxford (sem completar sua tese). Entre seus
maiores interesses, a filosofia de
Martin Heidegger, o qual ele
conheceu pessoalmente. Tornou-se jornalista freelance e chegou a ensinar
filosofia no M.I.T. quando se voltou para estudos de cinema, já em 1969.
Desde
então realizou poucos filmes que o projetaram como um dos maiores diretores
americanos contemporâneos (Lanton Mills, 1969; Badlands, 1973; Dias do Paraíso,
1978; Além da Linha Vermelha, 1988; Novo Mundo, 2005; A Árvore da Vida,
2011).
Vale mencionar que suas origens espirituais são cristãs; o pai era cristão
maronita de origem assíria-libanesa, e o próprio Malick foi educado em uma
escola episcopal em Austin, Texas. Atualmente ele frequenta uma Igreja Episcopal
em Austin (especula-se que seria a Igreja Episcopal “Good Shepherd”) com sua
esposa Ecky Wallace, que é filha de um pastor episcopal, estudou teologia e é
descrita como “muito devota” (mais do que o marido, talvez!). Até onde vai a fé
pessoal de Malick, no entanto, é difícil dizer já que ele não parece interessado
em anuncia-la publicamente. No momento o melhor que temos é, provavelmente, a
própria obra de Malick.
TEMA E MÉTODO
O tema do filme é a “árvore da vida”, uma imagem bíblica que representa a
Vida Eterna no Éden. Malick associa essa imagem a outro tema bíblico
tradicional: a dos “dois caminhos” (de fato o endereço oficial do filme na
internet é “dois caminhos através da vida”,
http://www.twowaysthroughlife.com).
Há dois caminhos possíveis
para responder à árvore, segundo se anuncia logo nas primeiras cenas do filme:
um é o caminho da Natureza, que rejeita desapegar-se de si e alimentar-se da
árvore, que insiste em sua rigidez e por isso se quebra, e o caminho da Graça,
que aceita a dor com esperança e que vê na Árvore tanto a fonte última da
Natureza como a única capaz de leva-la à Vida Eterna.
O símbolo da árvore
aparece do início ao fim do filme, e em todos os seus momentos cruciais. Às
vezes como uma pequena planta, às vezes como uma árvore frondosa.
O filme é aparentemente irregular, descontínuo, ignorando a demanda intuitiva
que todos nós temos pela linearidade temporal e por conexões lógicas de
causalidade. Mas não é que elas sejam negadas no filme; é que sua apresentação é
organizada em uma
estrutura poética.
Na poesia as relações
entre as coisas são captadas de forma estética, por meio de associações
imagéticas, rítmicas, sonoras, e conceituais, mas sem afirmações diretas e
rigores silogísticos. Isso é possível em um filme porque poesia não é apenas um
gênero, mas “uma consciência do mundo, uma forma específica de relacionamento
com a realidade” (Tarkovski, 18) e assim o artista
“… é capaz de perceber as características que regem a organização poética
da existência. Ele é capaz de ir além dos limites da lógica linear, para poder
exprimir a verdade e a complexidade profundas das ligações imponderáveis e dos
fenômenos ocultos da vida.” (Tarkovski, 19).
Para superar o incômodo da ausência de linearidade o espectador precisa
saltar da atitude naturalista para uma atitude poética, e explorar as analogias
e conexões estéticas entre as partes aparentemente “soltas” do filme, exatamente
como na poesia escrita. A diferença é que a poesia agora é feita de imagens e
narrativas.
E na verdade a vida é muito mais poética do que “naturalista”
(Tarkovski, 20); a mesma intuição necessária para ver o sentido das nossas vidas
concretas é a atitude necessária para ver esse sentido no filme de Malick;
quando ela está ausente em um, estará ausente no outro e vice versa.
Nesse
sentido o filme se torna uma
pedagogia do significado da vida; a
imaginação poética que vê o sentido espiritual da vida no universo do filme
ganha a capacidade de imaginá-lo em sua própria existência.
Outro ponto importante é que o filme é completamente
autoral. Quase sempre, quando vemos um filme, ficamos
impressionados (ou não) com a atuação dos atores. Mas em nosso filme a
experiência é completamente diferente. Apesar das grandes atuações e dos grandes
nomes, o que vem à mente é o diretor, não os atores. Nisso Malick é fiel ao
programa Tarkovskiano de “cinema de autor”. O filme não pretende pôr à frente o
ator, a atuação, nem ser fiel a uma narrativa escrita anterior, mas exprime a
interioridade do diretor, sua experiência do mundo e sua percepção poética das
coisas.
“Só em presença de sua visão pessoal, quando ele se torna uma espécie de
filósofo, é que o diretor emerge como artista – e o cinema como arte”
(Tarkovski, 68).
Quem acompanhou as notícias sobre o filme deve ter topado com a crítica de
Sean Penn – o “subjecto” principal do filme, embora não o papel principal – a
Malick numa entrevista do
jornal francês Le Figaro:
“eu não encontrei na tela a emoção
do roteiro, que é o mais magnificente que jamais li. Uma narrativa mais clara e
convencional teria ajudado o filme sem, na minha opinião, reduzir sua beleza e
seu impacto … Francamente, ainda estou tentando descobrir o que é que estou
fazendo ali e o que eu deveria adicionar naquele contexto … Terry nunca
conseguiu me explicar isso claramente”. O filme foi por outro lado defendido
incondicionalmente por Brad Pitt, que faz outro papel central.
Na verdade tudo faz sentido quando o filme é visto como um filme completa e
radicalmente autoral. Mas além disso, Jack (representado a vida adulta por Penn)
tem uma presença múltipla no filme, como criança, adulto, e mente
auto-reflexiva; ele claramente não poderia estar contido na atuação de Penn. É
claro que pode ter havido uma falha de Malick em relação ao seu próprio roteiro
(ainda mais grandioso que o filme?), mas o resultado final não diz respeito à
atuação de Penn, e sim à poesia de Malick, e é sobre ele que nos perguntamos
assim que pisamos fora da sala de cinema: quem é esse poeta, filósofo e –
segundo vou alegar ao final do artigo – esse teólogo?
ORGANIZAÇÃO NARRATIVA
Quero sugerir, sem nenhuma prova incontestável (exceto a intuição do próprio
espectador, quando assistir ao filme munido dos meus palpites) que temos
quatro níveis poéticos/narrativos/temporais no filme, e é de grande
ajuda identificar os quatro níveis e o que é contado em cada um deles, pois
Malick salta repetidamente de um nível ao outro sem aviso, mas sempre para
estabelecer conexões poéticas entre esses diferentes níveis narrativos.
E a
mesma história é contada em todos os níveis, embora com recursos distintos, de
forma que é preciso interpretar um nível temporal a partir do outro, discernindo
como a mesma noção é apresentada de um jeito em nível, e de outro em outro
nível.
Meus alegados “níveis narrativos” são os seguintes:
(1) O
tempo interno, que acontece dentro de Jack O’Brian
(
Sean Penn). É o tempo da autorreflexão de Jack, um homem adulto e “bem
sucedido” do ponto de vista secular, trabalhando em Nova Iorque. Toda a história
do filme acontece dentro da autorreflexão de Jack, iniciada com a notícia da
morte do irmão. No encontro com a família O’Brian (mais para o fim do filme) ele
se pergunta como é que a mãe, a senhora O’Brian (
Jessica Chastain)
suportou a perda do irmão. Essa pergunta reflete o que deixa Jack intrigado: o
mistério da graça na vida de sua mãe. Ele encontrará a resposta no final do
filme.
(2) O
tempo histórico é repassado na memória de Jack, mas é
contado de uma forma mais completa, de um ponto de vista narrativamente
privilegiado, como um diálogo entre a mãe e Deus. Esse tempo é também iniciado
com a perda do filho pela mãe, e pelas perguntas que a mãe faz a Deus (ou seja,
a resposta à pergunta de Jack depende da relação entre a mãe e Deus). Essas
perguntas introduzem a apresentação do terceiro e do quarto nível temporal, de
que falaremos mais adiante.
A perda do filho leva a mãe a uma crise profunda, que a faz perguntar a Deus
“por que”. A sogra, numa conversa particular, sugere a ela que não devemos nos
prender a nada temporal, e que ela deveria esquecer o filho para evitar a dor. A
mãe é submetida à mais terrível tentação quando a sogra diz que o Senhor “envia
moscas às feridas que deveria curar” (e a sogra desaparece na cena final do
filme). Enquanto ela e Jack fazem essas perguntas, somos levados ao terceiro
nível temporal. Mas o fato é que a mãe supera essa tentação; mais ao final do
filme ela é representada entre muitas árvores, caminhando e confessando a sua fé
em Deus.
Mas voltemos ao segundo nível: o tempo histórico é o
tempo da família, no interior da qual o problema da relação entre Natureza e
Graça se desdobra. Esse problema é anunciado verbalmente na abertura do filme
pela senhora O’Brien, a mãe, ao mesmo tempo em que as imagens revelam como ela
foi ensinada sobre isso por seu próprio pai, cuja face não aparece. Com ele ela
aprende a recorrer à graça diante da dor na natureza (na cena do contato com uma
vaca).
A dualidade de natureza e graça é mostrada no conflito progressivamente
revelado entre o patriarca da família O’Brian (
Brad Pitt), que existe
de forma contraditória e cega, negando a Graça, mas dependendo dela em todos os
momentos, e a mãe, que escolheu viver pela Graça e, por assim dizer, “dançar em
torno da árvore da vida” (a “dança no ar”, quando a mãe flutua em torno da
árvore, é a propósito um tema característico de Andrei Tarkovski). O Pai ensina
aos filhos o caminho da Natureza, e a Mãe o da Graça. Por isso eles entram em
conflito constante.
[2]
Um interessante exemplo da tolice espiritual do pai é o momento do sermão,
quando o Padre explica na igreja a mensagem de Jó, de que não existe ponto de
estabilidade e garantias de felicidade dentro do tempo, e que ninguém pode impor
condições a Deus, nem negar sua presença em razão do sofrimento. Logo depois o
pai tenta ensinar aos filhos que a mãe é ingênua, e que o caminho da natureza,
em sua busca egoísta por segurança, é o melhor caminho. Mas a mãe também ensina.
Ela comunica a necessidade do amor para alcançar a felicidade.
[3]
Dentro de si mesmo Jack (representado na infância pela atuação esplêndida
de
Hunter McCracken) incorpora esse conflito, tendo dificuldades para
ser consistente, e sofrendo com grandes dúvidas sobre a existência e a bondade
de Deus. Ele passa por momentos de graça e também por momentos de “Queda”,
quando se torna perverso e pensa até em matar o pai (na cena em que ele está
debaixo do carro consertando-o). Mas ele é “resgatado” através de sua mãe e
principalmente de seu irmão, reconciliando-se por causa deles com seu pai
[4].
Ao final da narrativa da família o pai, depois de perder o emprego e ver o
fracasso de seus projetos temporais, confessa que a glória já estava em torno
dele sem que ele o soubesse. E eles precisam deixar a casa onde cresceram num
processo de grande luto, encerrando-se assim o relato do tempo histórico.
(3) O
tempo cósmico é o tempo do universo natural, de sua
origem até o seu fim. Após a pergunta da mãe sobre o porquê da perda de seu
filho, Malick nos leva para uma viagem até a origem de todas as coisas, quando
Deus criou o universo, desde o Big Bang, passando pela origem das galáxias, do
sistema solar, da terra, dos continentes, a evolução biológica, incluindo tanto
o sofrimento como a graça como estando presentes desde o princípio. Tudo sendo
contextualizado pelas orações da mãe, inspiradas no livro de Jó.
Depois que a narrativa da história da família é encerrada, com a perda da
casa, o luto profundo dos irmãos, e a cena da casa se afastando a partir do
interior do carro, o tempo cósmico é retomado, contando a história do fim do
mundo.
O fim do mundo é representado com categorias científicas, como o
crescimento do Sol para se tornar uma estrela gigante-vermelha (previsto para
alguns bilhões de anos no futuro), o que levará à destruição total da vida na
terra, seguido pelo colapso do sol, que se tornará uma estrela anã-branca.
Essa
parte do filme representa a mortalidade e efetivamente a morte de tudo o que é
Natural. Com isso Malick quer dizer que
a Natureza, por si só, não tem um
futuro. É vaidade.
(4) O quarto nível é o
tempo escatológico, ou seja, o tempo
da ação redentiva de Deus, que se consumará no futuro. É o tempo da Fé. Depois
do luto da família e do luto do universo, Malick viaja para a realidade além do
tempo cósmico atual, e faz Jack imaginar sua própria passagem pela morte (uma
pequena porta), enquanto segue uma mulher (um símbolo da Graça?) por um caminho
deserto (que possivelmente representa a incerteza e a necessidade de
esperança).
Segue-se uma série de metáforas da ressurreição, com corpos mortos no campo,
e em seguida com a mulher (a graça?) aproximando-se com a vela acesa e acendendo
a vela de outra pessoa (ou seja, ressuscitando-a), uma noiva morta que de
repente é vista viva novamente, alguém dentro de um buraco que olha para cima e
vê a mão (da graça) estendendo-se para tirá-lo de lá, uma escada para cima, que
convida à subida.
Mais à frente, a direção da morte e esfriamento do cosmo (com a terra devastada ocultando a
luz azul do sol-anã-branca) é revertida com um reaparecimento e um súbito
resplandecer do sol – cena que aparece de forma muito rápida e de relance.
Então Jack chega a um lugar na beira do mar (signo do infinito?), onde os
seres humanos se encontram, reconciliados. Ali ele vê seus familiares, e vê a
sua Mãe (mas os pais de seu pai, o Sr. O’Brian, não aparecem ali, o que
possivelmente significa o seu desaparecimento). A própria árvore da vida aparece
ali, como a única árvore restante, mas surge como um pequenino arbusto na beira
d’agua, plantado na areia.
Acompanhando sua mãe Jack é levado ao passado novamente, embora de forma
simbólica, e vê o momento em que ela entrega o irmão que morreu, quando ele
ainda era criança, nas mãos de Deus, deixando-o passar por uma porta onde se vê
apenas a planície e o Sol atrás dele.
Nessa hora a entrega que a mãe faz é
representada como uma dança em que a mãe abre suas mãos, enquanto é ajudada por
duas outras figuras femininas
[5].
A escolha da mãe é a resposta para a pergunta de Jack, sobre como a mãe foi
capaz de superar a perda do filho – muito embora a própria mãe não tenha
recebido uma resposta clara sobre a razão do seu sofrimento (o que é indicado,
inclusive, pela citação de Jó na abertura do filme: “Onde estavas tu, quando eu
fundava a terra? … Quando as estrelas da alva juntas alegremente cantavam, e
todos os filhos de Deus jubilavam?”).
O “milagre” do filme é, portanto, mostrar
como a fé e a vida na Graça tornam-se elas mesmas sinais divinos no mundo; a mãe
e o irmão levam Jack de volta para Deus.
Depois disso o filme retorna para o nível 1, com Jack refletindo e sorrindo
levemente com a compreensão da Graça, enquanto ao fundo a imagem da árvore se
contrapõe à dos edifícios e aparentemente poderosos projetos humanos.
Sutilmente
se sugere que a árvore pequena e os edifícios enormes não reflete a proporção
verdadeira das coisas. É preciso intuição poética e
insight religioso
para descobrir a verdade sobre o mundo.
(5) Acima de todos os níveis narrativos está o
eterno. Ele é representado pela
chama. A chama de onde o mundo
veio é apresentada no início do filme e no final, e também aparece durante o
filme duas vezes, em momentos de mudança de nível narrativo (como Vanessa
Belmonte do L’Abri observou).
O eterno aparece dentro do temporal principalmente
representado pelo Sol, que surge atrás da mãe ou dominando sutilmente a cena em
momentos importantes.
No Quarto nível temporal (o “escatológico”) há uma espécie
de encontro do eterno com o temporal, de modo que o papel do Sol fica bem claro.
Ele representa Deus como a fonte da Graça, que existe antes da Natureza, na
Natureza, e depois da Natureza. Por isso no final do filme a chama não apaga
progressivamente; o filme termina subitamente com a chama ainda acesa, para
indicar sua eternidade.
ESTRUTURAS METAFÓRICAS
É preciso dar muita atenção aos símbolos visuais. Tenho algumas sugestões
sobre os principais e seus possíveis significados: a
árvore (vida
eterna); as
danças/brincadeiras (a pericorese trinitária
[6], amor, alegria); a
violência e
possessividade do pai; a mediação da graça (por exemplo, quando a
mãe
enrola o filho em uma cortina e o beija através dela, indicando que
Deus
está presente, embora de forma misteriosamente oculta); a
luz do sol e das velas; o
vôo da mãe em torno da árvore; o
movimento em direção à
janela do sótão (em um momento Jack, cheio de
dúvidas, para de andar e fica brincando de bicicleta no meio do caminho), o
vitral com a imagem de Cristo, num momento crítico do sermão do padre,
e as
mãos, que se repetem
ad infinitum como expressões não
apenas afetivas e espirituais.
Particularmente bela é a representação simbólica
da fecundação e do nascimento de Jack.
Entre todas as metáforas visuais, a que representa mais
diretamente o tema do diretor, e minha opinião, são os
girassóis. Eles aparecem no início do filme, quando a mãe
compreende o caminho da Graça, e no final da narrativa do tempo da Fé, que é
encerrada com o campo de girassóis. Os girassóis representam de forma indireta a
visão de Deus (pois eles estão sempre virados para o Sol), e o campo de
Girassóis simboliza a “Visio Dei”, ou
visão beatífica, a visão final da
face de Deus profetizada em Apocalipse (o que é exatamente o tema da música de
fundo, nessa cena).
A mãe, possivelmente, representa também
Maria (o que é bem
plausível, considerando as origens espirituais de Malick); ela é o paradigma de
como o ser humano deve viver em relação à natureza e à graça, e ao tornar-se
paradigma torna-se também veículo de graça e iluminação para os que a observam.
Descontando o uso idólatra potencial dessa figuração, é preciso dizer que
considerar Maria um paradigma de santidade cristã e incorporação da graça, capaz
de desafiar e desmascarar a escolha do caminho da natureza é algo perfeitamente
compatível com a fé protestante.
RECURSOS DE CINEMATOGRAFIA E FUNDAMENTAÇÃO
CIENTÍFICA
O filme usa a não-linearidade para criar uma
instabilidade, forçando uma transcendência em relação ao tempo. Não porque
Malick queira desestabilizar num sentido pós-moderno (negar que exista sentido),
mas porque deseja sugerir a relatividade do tempo em relação ao eterno. e sua
presença não-linear dentro da consciência humana (e não é nesse
vai-e-vem que cada um de nós vivencia o tempo?).
Essa quebra da
linearidade é assim um
recurso poético, um modo de comunicação estética
que vai além da lógica (embora não esteja em contradição com ela) para nos
atingir diretamente na alma.
Malick evita a computação gráfica sempre que possível. Assim, por exemplo,
toda a representação inicial da criação do universo é feita usando filmagens em
alta definição e reproduções em
slow-motion de manipulação de líquidos
e substâncias químicas.
Aqui ocorreu uma óbvia semelhança com
Stanley
Kubrick em
2001: A Space Odyssey (1968), até porque Malick
recorreu ao amigo Douglas Trumbull, que trabalhou nos efeitos especiais de 2001.
Além disso, houve recurso até mesmo a experts da NASA para realizar as
simulações sobre a origem do cosmo. A teoria da evolução bem como os estudos
mais recentes sobre as origens do
altruísmo animal são empregados nas
polêmicas sequências com os “dinossauros”. O filme é assim simultaneamente
artesanal e cientificamente
up-to-date.
Isso é, por sinal, uma das muitas evidências contra as
interpretações surrealistas ou puramente psicanalíticas: essa figuração precisa
e informada da história natural não é meramente simbólica ou para produzir uma
impressão visual, mas para colocar a sentido da graça contra o fundo realístico
da ciência moderna e vice versa. Que outra razão haveria para introduzir
dinossauros no meio do filme?
Cada imagem com seus detalhes é uma obra intencional; o filme é menos produto
de acasos interessantes enquanto a captura de imagens era feita
[7], e mais uma sequência de pinturas.
O cinema de Malick é
completamente “autoral”, como observamos antes: cada sequência é quadro, e o
diretor aparece mais do que os atores.
A imagem é sempre metafórica – não só as
coisas que aparecem, mas os diálogos, os eventos, etc.
Um exemplo disso é o
movimento ascendente da câmera, que se repete
insistentemente. A câmera sobe até mostrar o céu, quase sempre em conexão com a
árvore. Com isso Malick quer reproduzir a experiência que a Catedral Gótica
pretendia produzir no passado, oferecendo ao fiel uma experiência de grandeza,
transcendência e ascensão, apontando para Deus. Isso fica evidente quando a
própria mãe diz que Deus mora lá em cima, “no céu”.
Outro exemplo é o insistente
posicionamento da câmera contra o Sol, que é mostrado atrás da árvore (como que
apontando para ela), ou quando Jack retorna à sua mãe, após o roubo do lingerie
da vizinha, é mostrado sempre atrás da cabeça da mãe, emulando o halo de
santidade que vemos na pintura medieval.
O realismo fantástico de Tarkovski aparece no voo da mãe, na representação
metafórica do ato sexual e do nascimento de Jack, e assim por diante. Nisso ele
lembra a arte medieval que usava a fantasia para falar da realidade.
TRILHA SONORA
Por último, atenção para a trilha sonora organizada por Alexandre Desplat
(pode ser adquirida
AQUI).
Além de outras peças clássicas, há um emprego
intencional do
minimalismo sacro (
Arvo Part, Gorecki, Tavener,
e outros) que talvez revele a paridade entre o projeto de Malick e o desses
compositores sacros contemporâneos, de representar o eterno na arte. (Veja um
exemplo de
Gorecki que aparece no filme AQUI e uma entrevista de
Björk com Arvo
Part AQUI).
Particularmente significativo é o recurso ao “Requiem”, a missa fúnebre. O
texto do Requiem é sempre o mesmo (com origens Medievais), mas cada compositor
cria uma música diferente para ele (o mais famoso de todos é, naturalmente, o de
Mozart, mas muita gente não sabe que há vários Requiems).
De forma absolutamente
reveladora, a criação da Natureza já é iniciada com a
“Lacrimosa 2” de
Zbigniew Preisner (dedicada ao grande cineasta Krzysztof Kieślowski), que é
um lamento pela perdição do homem e uma oração pedindo misericórdia.
Como isso
se sugere que a Natureza está desde o princípio limitada e que o homem que nela
se fia está condenado.
E no final de tudo, quando chegamos ao tempo da fé e a
sequência da “praia”, são executadas as últimas duas peças do Requiem, a
primeira (
Agnus Dei de Berlioz) dizendo “cordeiro de Deus, que tira o
pecado do mundo, dê a eles descanso” (
Agnus Dei qui tollis peccata mundi,
dona eis requiem) e a segunda (
Communion) sobre o descanso final
do servos de Deus, quando eles verão a luz eterna brilhando sobre eles e
encontrarão o descanso eterno
(Lux aeterna, luceat eis, Domine, cum sanctis
tuis in aeternum, quia pius es. Requiem aeternam dona eis, Domine, et lux
perpetua luceat eis).
A composição da imagem do campo de girassóis com o
tema da
Communion representa a Visão Beatífica final.
MINHA INTERPRETAÇÃO…
Quem teve a paciência de ler todo o artigo pode estar
pensando agora sobre a fonte dessa interpretação. Plágio? Informação
privilegiada?
Nonsense absoluto? Nesse ponto preciso lembrar a todos
que a despeito da tonalidade de convicção do meu texto, trata-se apenas da minha
hipótese sobre o filme. Pode estar certa, meio-certa, ou errada – muito embora
eu, naturalmente, defenda que ela está em algum lugar entre “certa” e
“meio-certa”!
Mas realmente penso que o centro do filme é a escolha da mãe pela Graça,
mesmo diante da confusão do sofrimento, e o impacto revelador que isso tem sobre
o sentido do mundo, como evidência divina, como sinal e caminho da Vida Eterna.
Isso é
a Árvore da Vida.
E Jack, o personagem principal, representa o homem moderno, esquecido de suas
origens (cristãs), que mergulhou na “Natureza” e que já não compreende o caminho
da Graça.
O itinerário autorreflexivo de Jack é o ponto de identificação e de
contato pedagógico com o expectador secularizado contemporâneo, para que sua
imaginação poética seja reaberta e ele próprio reconsidere o seu caminho.
Certamente Terrence Malick emerge da obra como poeta e filósofo; mas minha
hipótese pessoal é que ele emerge também como teólogo natural.
Para mim,
“A
Árvore da Vida” é uma peça de teologia natural, que aponta o sentido divino
do mundo para o homem moderno (de fato, ele pergunta e discursa sobre o problema
do mal, sobre o bem, sobre a Graça e sobre o destino do mundo), mas o faz
transformando a experiência visual-temporal em algo quase sacramental.
Deus é
incessantemente revelado diante do espectador, de forma consistentemente
indireta e sutil; mas você reconhecerá a sua presença, se já tiver escolhido o
caminho da Graça.
[1] guilherme.religion@gmail.com.
[2] Curiosamente, a mãe aprendeu o caminho
da Graça com seu o seu Pai, no princípio do filme; mas os pais da mãe não tem
identidade temporal definida, ao contrário dos avós paternos de Jack, que
aparecem com identidades humanas, desaparecem na narrativa e nunca mais
reaparecem – nem mesmo na cena final da praia. Creio que eles representam a
vaidade da natureza e também a perdição de todo o que nela se fixa.
[3] Quando a mãe ensina as primeiras lições
a Jack, temos uma interessantíssima sequência na brincadeira com o cavalo de
brinquedo em que ela diz três vezes a Jack “jump, jump, jump”, sendo que na
terceira vez a palavra é pronunciada no escuro – e no momento seguinte, passamos
à cena em que pela primeira vez Jack vê seu irmão, no colo.
[4] Por isso o filme abre com Jack dizendo
“mother, brother” e reconhecendo que eles lhe mostraram o caminho.
[5] Talvez Malick tenha se referido à
tradição mitológica antiga das “três graças”, sendo a graça central a deusa
“charitas” (termo latino, do grego “Charis”, “Graça”). Essa imagem surge na
tradição literária e iconográfica medieval, renascentista e barroca das com
vários exemplos interessantes. Uma busca de imagens na internet revelará
exemplos emblemáticos como as “três graças” de Botticelli. No fundo
mitológico, a graça tem a ver com a beleza humana, a criatividade e a
fertilidade. Mas Malick as transforma em símbolos teológicos com Mãe
tornando-se o novo paradigma do verdadeiro significado e “graça”, relacionando-o
com a fé e o amor cristão.
[6] O termo “pericorese” foi empregado pelos
pais da igreja para se referir à mútua habitação das pessoas da trindade,
unindo-as no que foi descrito por Santo Atanásio como uma “dança”.
[7] Com notáveis exceções como a cena da
borboleta pousando nas mãos da senhora O’Brien, que foi não intencional e
certamente uma dádiva providencial – eu diria
Fonte: http://ultimato.com.br/sites/guilhermedecarvalho/2012/03/30/como-assistir-a-arvore-da-vida-de-terrence-malick-3/