May 21, 2017

Um convite, um encontro e uma lista

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- Paula Mazzini

Recebi um convite: vou me encontrar com o rei.

O que fazer? Como me preparar? Não posso usar qualquer roupa, nem chegar de qualquer jeito.

Os preparativos tomam tempo e viram prioridade. Preciso levar um presente. Talvez cantar uma música. Vou me ajoelhar? Não sei...

Dizem que estar com o rei é uma ótima oportunidade para fazer pedidos. Começo uma lista. Acho que tenho chance de ser ouvida, já que fui convidada. Se não todos, pelo menos alguns ele atenderá. Afinal, nem todos são para mim. Alguns são de causa nobre.

Não é fácil se preparar para algo tão importante. É cansativo, exaustivo até. Ensaio uma música, compro um presente. Arrumo uma roupa decente. Refino minha lista tirando os pedidos ilegítimos.

Repasso as falas, me alegro com a oportunidade. Sei que nunca mais serei a mesma depois desse encontro.

O banho é mais demorado – preciso estar em minha melhor forma. Tento me purificar por dentro também, não quero que nada atrapalhe meu encontro com rei.

Reviso sentimentos, me livro de pesos e mágoas. Qualquer coisa pesada está descartada. Quero um rosto suave. Quero transpirar confiança. Ouço conselhos, tomo atitudes, faço as pazes com alguns inimigos. Limpo a mente e me encho de esperança.

Ouvi dizer que o rei é muito generoso – outras pessoas que estiveram com ele saíram com as mãos cheias. É o que quero também.

O momento chega. Estou pronta, dou meus passos em direção a porta. Presentes e lista em punho. Acho que o rei ficará orgulhoso de mim. Eu estou.

Quando, finalmente, chego a sua presença sou tomada pelo indescritível. Absolutamente nada poderia me preparar para o que meus olhos viram. Ouvi tanto sobre o rei, pesquisei tudo sobre ele, conheço seu castelo como a palma da minha mão. Estive com pessoas que estiveram com ele. Ensaiei esse encontro tantas vezes. Mas o rei... ah, o rei. É impossível se preparar para um encontro desses. O esplendor. A majestade. A pureza. A beleza incomparável. Seus olhos de amor. A misericórdia e a mansidão de suas palavras. Seu toque. Sua presença avassaladora.

E o que era surpresa, passa a ser constrangimento. Quero esconder meus presentes.

Quem sou eu para dar algo para este rei, tão completo em si mesmo? Não há no mundo um presente que seja digno.

Ele percebe meu constrangimento e ainda assim recebe meus presentes, com olhar compassivo de pai. Passo horas desfrutando desse encontro. Perco a timidez e falo um pouco. Agradeço. Também ouço o que ele diz e o admiro cada vez mais. Tomo coragem e canto as músicas que preparei, mas não quero que o momento acabe. Uma hora com ele valem mais do que mil em outro lugar. É perfeito, jamais me senti assim na presença de ninguém. Completa, aceita, curada, amada.

Ao sair me sinto outra pessoa. Junto com meus presentes ficaram também o medo, a ansiedade, a tristeza e outras coisas imperceptíveis em minha preparação.

Só então me dou conta de que me esqueci de algo. A lista. De tão absorta acabei me esquecendo de mencionar os pedidos. Como pude esquecer de algo que era tão importante para mim? Tiro do meu bolso um papel. Rasgo a lista e jogo na lixeira mais próxima. Não faz mais sentido pedir nada. O que realmente é importante eu já recebi: a oportunidade de estar com o rei. 

E depois de estar com ele, o resto já não importa mais.

http://www.ultimato.com.br/conteudo/um-convite-um-encontro-e-uma-lista

May 20, 2017

Vou contar tudo para Deus!

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- Shirlei Araújo Reis
Temos observado e ouvido as notícias sobre o desespero dos refugiados, a dor das famílias que perdem seus entes queridos; temos nos entristecido e até nos chocado com tanta violência que há ao redor do mundo, principalmente na Síria onde nos últimos anos a guerra não tem trégua.
Ao longo da história, sempre que acontece alguma calamidade ou guerras, as crianças são as que mais sofrem – perdem seus pais, ficam traumatizadas com o que veem e sentem; outras são vítimas de abusos, perdem partes de seus corpos indefesos. Quanta maldade! Quanta dor!
No entanto, é delas que surge o clamor mais comovente, mais alto, mais expressivo; o clamor que mais dói ouvir.
Em 2015 uma criança de 6 anos morreu afogada na costa de uma ilha grega. Seu corpo estendido na praia parecia ainda gritar por socorro. Talvez um grito de socorro não mais para ela, porém para outros milhares de crianças que continuam a lutar pela sobrevivência e a pedir paz.
Em 2016, outra criança síria, de apenas 3 anos, chamou a atenção mundial, dizendo que iria contar tudo para Deus. Depois de alguns dias essa criança veio a falecer.
Essas duas crianças já não podem mais clamar, no entanto, existem muitas outras que continuam enfrentando a cada dia um drama diferente: abusos, violência, maus tratos, abandono, exploração sexual, sequestros, guerras, solidão.
As crianças estão clamando! As crianças estão chorando! As crianças estão sofrendo!
Ninguém escuta seu clamor. Ninguém seca suas lágrimas. Ninguém se importa com seu sofrimento. Então, sabe o que elas fazem? 

Sim, elas contam tudo a Deus. 

É como se elas pensassem: “Ah! Vocês não vão nos ouvir? Vão ficar aí de braços cruzados? Vão continuar com sua loucura? Podem deixar, eu sei que tem Alguém que me ouve, que me entende; que me ama. Vou contar tudo para Ele!
Muitos ainda duvidam da fé de uma criança; criticam aqueles que lhes ensinam a Palavra de Deus. Mas, elas creem que há alguém que se importa com elas, que as amam; que é o único que pode socorrê-las. Então, elas contam tudo para Ele – contam tudo a Deus!
Diante disso, podemos aprender algumas lições para guardar no coração:
As crianças podem clamar a Deus. Ao contrário do que muitos pensam e até pregam, as crianças podem sim ter um relacionamento com Deus. Samuel, a pequena escrava na época de Eliseu, Rode, o menino do lanche, são exemplos de crianças que mostraram que confiavam no Deus todo-Poderoso.
Deus ouve o clamor das crianças. Deus se importa com elas e as ama muito. Ele salvou Moisés de ser morto ainda criança; ele ouviu o choro de Ismael no deserto; ele ressuscitou a filha de Jairo.
Deus quer que clamemos pelas crianças. Em Lamentações 2.19, lemos: “Levanta-te, clama de noite no princípio das vigílias; derrama como água, o coração perante o Senhor; levante a ele as mãos, pela vida de teus filhinhos, que desfalecem de fome à entrada de todas as ruas”. 

A verdade expressa nesse versículo, infelizmente é tão atual – quantas crianças desfalecem de fome a entrada de todas as ruas. Na Síria, no Brasil, na Índia, nos países da África, no Haiti.  

Será que estamos seguindo a ordem de Deus de derramarmos nosso coração perante o Senhor, clamando pelas crianças?
Fonte: http://apec.com.br/intercessao.php#.WSBNl9QrJkg

May 19, 2017

Conselhos aos jovens

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- Elben Cesar

Além das 9 cartas gerais aos romanos, coríntios, gálatas, efésios, filipenses, colossenses e tessalonicenses, e da carta pessoal a Filemom, Paulo escreveu três cartas pastorais, duas a Timóteo e uma a Tito. Ambos são tratados como verdadeiros filhos na fé (1 Tm 1.2; Tt 1.4).
Nessas cartas pastorais, há dezenas de exortações. 

Os verbos sempre estão no imperativo, como, por exemplo: “Combata o bom combate”, “Exercite-se na piedade”, “Fortifique-se na graça”, “Pregue a palavra”, “Seja moderado” etc. Se fizermos um arranjo desses imperativos, encontraremos oito exortações básicas:
1. Cuidado com a saúde
“Não continue a beber somente água; tome também um pouco de vinho, por causa do seu estômago e das suas frequentes enfermidades” (1 Tm 5.23).
2. Cuidado com a vida devocional
“Exercite-se na piedade. O exercício físico é de pouco proveito; a piedade, porém, para tudo é proveitosa porque tem promessa da vida presente e da vida futura” (1 Tm 4.7,8).
“Fortifique-se na graça que há em Cristo Jesus” (2 Tm 2.1).
3. Cuidado com a sexualidade
“[Trate] as moças como a irmãs, com toda a pureza” (1 Tm 5.2).
“Conserve-se puro” (1 Tm 5.22).
“Fuja dos desejos malignos da juventude…” (2 Tm 2.22).
4. Cuidado com o exemplo
“Ninguém o despreze pelo fato de você ser jovem, mas seja um exemplo para os fiéis na palavra, no procedimento, no amor, na fé e na pureza” (1 Tm 4.12).
“Em tudo seja você mesmo um exemplo para eles, fazendo boas obras. Em seu ensino, mostre integridade e seriedade” (Tt 2.7).
5. Cuidado com as atitudes
“Não repreenda asperamente o homem idoso, mas exorte-o como se ele fosse seu pai; trate os jovens como a irmãos; as mulheres idosas, como a mães” (1 Tm 5.1,2).
“Não aceite acusação contra um presbítero, se não for apoiada por duas ou três testemunhas” (1 Tm 5.19).
“Evite as controvérsias tolas e inúteis, pois você sabe que acabam em brigas. Ao servo do Senhor não convém brigar mas, sim, ser amável para com todos” (2 Tm 2.23,24).
6. Cuidado com a pregação
“Se você transmitir essas instruções aos irmãos, será um bom ministro de Cristo Jesus, nutrido com a verdade da fé e da boa doutrina que tem seguido” (1 Tm 4.6).
“Dedique-se à leitura pública da Escritura, à exortação e ao ensino” (1 Tm 4.13).
“Procure apresentar-se a Deus aprovado, como obreiro que não tem do que se envergonhar e que maneja corretamente a palavra da verdade” (2 Tm 2.15).
“Lembre-se de Jesus Cristo, ressuscitado dos mortos, descendente de Davi, conforme o meu evangelho” (2 Tm 2.8).
“Pregue a palavra, esteja preparado a tempo e fora de tempo, repreenda, corrija, exorte com toda a paciência e doutrina” (2 Tm 4.2).
7. Cuidado com a doutrina
“Rejeite […] as fábulas profanas e tolas” (1 Tm 4.7).
“Retenha, com fé e amor em Cristo Jesus, o modelo da sã doutrina que você ouviu de mim” (2 Tm 1.13).
“Permaneça nas coisas que aprendeu e das quais tem convicção, pois você sabe de quem o aprendeu” (2 Tm 3.14).
“Fale o que está de acordo com a sã doutrina” (Tt 2.1).
8. Cuidado com a moderação
“Seja moderado em tudo, suporte os sofrimentos, faça a obra de um evangelista, cumpra plenamente o seu ministério” (2 Tm 4.5).
“Não se precipite em impor as mãos sobre ninguém e não participe dos pecados dos outros” (1 Tm 5.22).
Fonte:http://ultimato.com.br/sites/elbencesar/2017/04/25/conselhos-de-paulo-aos-jovens-pastores/
PS- 2 admoestações:

May 18, 2017

Abatido e firme

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O salmista soube lidar com a má notícia e com o transtorno que causou. Ele declara o seu abatimento mas também a sua firmeza. Uma afirmação segue a outra.

- Élben Cesar

"Preparam armadilhas para os meus pés; fiquei muito abatido. (Sl 57.6)

O abatimento é uma experiência muito desagradável. Sobretudo quando não estamos acostumados com ele, quando é uma novidade para nós. É disso que se queixa o salmista: “Fiquei muito abatido” (Sl 57.6). Ele não estava abatido até que tomou conhecimento de uma investida da parte dos que não o queriam bem. De um degrau mais alto desceu para um degrau mais baixo. De uma situação mais confortável desceu para uma situação menos confortável. De uma condição de ânimo desceu para uma condição de desânimo. A queda afetou a saúde espiritual, a saúde emocional e a saúde física. Trouxe algum transtorno para o homem todo.
Essa não é a primeira nem a última vez que o salmista passa por esse desconforto. Ele já havia confessado: “Estou encurvado e muitíssimo abatido” (Sl 38.6). Já havia se questionado: “Por que você está assim tão triste, ó minha alma?” (Sl 42.5, 11; 43.5).
Naturalmente há muitos graus de abatimento, do brando ao pavoroso. A durabilidade também varia muito, daquele minutinho de desânimo ao desânimo crônico. O abatimento tem sinônimos leves (desalento, desânimo) e sinônimos assustadores (depressão).
No caso em foco, o salmista soube lidar com a má notícia e com o transtorno que ela causou. De tal modo que, no mesmo poema, ele declara não só o seu abatimento (“Fiquei muito abatido”), mas também a sua firmeza (“Meu coração está firme, ó Deus”).

Uma afirmação segue a outra.
Fonte: http://ultimato.com.br/sites/devocional-diaria/2017/04/28/autor/elben-cesar/abatido-e-firme/
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May 17, 2017

Muitos cristãos deveriam saber que há virtude na defesa das causas perdidas

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- João Pereira Coutinho

Tenho os meus momentos Elis Regina. Deitado no sofá, deprimido com a vida moderna, começo a imaginar uma casa no campo. Não para compor rocks rurais. Mas para plantar meus amigos, meus discos, meus livros. E nada mais.

Pessoas próximas sabem que não minto. Gosto de ler biografias de grandes eremitas. E, se não fossem as matérias carnais, o meu lugar era o mosteiro.

São momentos que duram pouco. O mesmo mundo que me deprime tem o condão de me divertir ou provocar - e eu pulo do sofá, como um gato subitamente acordado por um rato, e marcho para uma nova batalha. A casa no campo pode esperar.

Por isso li com interesse um dos livros do momento. Intitula-se "The Benedict Option" (a opção beneditina), foi escrito por Rod Dreher e o assunto é sério. Que lugar há para um cristão conservador numa América crescentemente anticristã e pós-cristã?

É uma pergunta que muitos cristãos podem formular em várias partes do Ocidente. Porque o cenário não é animador, escreve Dreher: os cristãos perderam todas as guerras. O materialismo vulgar triunfou. E, em matérias morais, há aborto livre e casamento gay.

Além disso, a juventude doméstica tem uma visão light da religião, sem compromisso ou seriedade. Porque a única religião que existe é um relativismo dogmático em que nada tem valor, exceto a satisfação imediata de desejos individuais. Perante isso, o que fazer?

A resposta de Rod Dreher é o momento-chave do seu livro: nada. 

Entender a derrota. Aceitá-la. E pensar em são Bento, que no século 6 lançou as bases da ordem monástica. O Império Romano fora tomado pelos bárbaros. Os cristãos deveriam recolher-se ao mosteiro e, pacientemente, cultivar os valores centrais da civilização sitiada.

A proposta de Dreher segue pelo mesmo caminho: o debate público e a disputa política são inúteis. 

O secularismo moderno triunfou, e qualquer participação no grande palco é um desperdício de tempo e energia. Os cristãos falam uma linguagem que o "espírito do tempo" não entende -ou, pior, ridiculariza.
Como são Bento, é preciso regressar ao mosteiro. Não em sentido literal. Metafórico. Cultivar as virtudes cristãs em pequenas comunidades. Quem sabe? Talvez um dia os bárbaros possam sofrer nova conversão.
Entendo a inquietação do autor. No essencial, e tal como o próprio reconhece, ele repete o diagnóstico que o filósofo Alasdair MacIntyre já tinha escrito em "Depois da Virtude".

Dizia MacIntyre, embora com outra profundidade, que o Ocidente abandonara a fé ou a razão como instrumentos de conhecimento ou diálogo. O "emotivismo" é a língua-franca da condição moderna. Penso, logo existo? Acredito, logo existo? Não. Sinto, logo quero.

Fatalmente, Rod Dreher parece cometer os mesmos erros de Mac-Intyre na defesa de um corte radical com a modernidade. Erros políticos e, no limite, suicidas.

O primeiro erro é uma insuficiente compreensão do que significa a liberdade religiosa na democracia liberal. Fato: os cristãos perderam várias guerras culturais. Mas a questão fulcral é saber se existe algum poder que interfira na liberdade de cada um professar o que entende.

A observação não é trivial. Os cristãos são perseguidos e mortos em várias latitudes da Ásia ou de África. Isso não acontece no Ocidente. Rod Dreher, no livro, chega a fazer uma comparação entre a "clandestinidade" dos cristãos americanos e a situação vivida pelos cristãos do leste da Europa sob o comunismo. É uma comparação excessiva, para usar um eufemismo.

Mas existe um segundo erro: se Dreher (e MacIntyre) entende que a ameaça secularista é realmente severa, então os cristãos precisam dos instrumentos típicos do liberalismo político para garantirem a sobrevivência dos seus valores. Por outras palavras: precisam de participar na esfera pública, e não de abandoná-la, para defenderem os seus pontos de vista.

Quem recua para o mosteiro sem lutar corre sérios riscos de ter os bárbaros a arrombar a porta. Pode ser uma luta condenada ao fracasso. Mas muitos cristãos deveriam saber que também existe beleza e virtude na defesa das causas perdidas.

O secularismo da modernidade pode ser um lugar inóspito para os homens de fé. Mas a tentação do mosteiro é como a minha casa no campo: uma vitória ilusória para o meu cansaço e a minha soberba. 

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2017/05/1882330-muitos-cristaos-deveriam-saber-que-ha-virtude-na-defesa-das-causas-perdidas.shtml

May 16, 2017

Talvez Deus tenha criado o mal para nos salvar do retardamento moral

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- Luiz Felipe Pondé

Existe uma tendência depressiva no mundo contemporâneo, com certeza. Esse viés depressivo já foi identificado há cerca de 2 séculos pelo filósofo alemão FWJ Schelling (1775-1854) quando disse que o fundo da personalidade era uma melancolia infinita e que nossa vida era a luta para sobreviver a ela, inclusive, negando sua existência. Sabemos que Schelling é o verdadeiro descobridor do inconsciente, mais tarde investigado por Freud, Jung e tantos outros. Devemos aos românticos idealistas, como Schelling, a invenção da psicologia profunda.

Um dos traços dessa síndrome é a tentativa de negação das dimensões sombrias que todo saber triste traz em si mesmo. Outro autor do período romântico, Soren Kierkegaard (1813-1855), dizia que todo verdadeiro autoconhecimento passa por um profundo entristecimento consigo mesmo.

O romantismo foi o grande mal-estar com a modernização cujos sintomas se faz sentir até hoje, mesmo que contaminados pelo mercado que vende tudo, até mal-estar chique em mosteiros no Vietnã.

Mas há outro sintoma nessa síndrome de negação de qualquer contradição e sofrimento que define nosso retardo mental contemporâneo: a negação de toda dimensão sombria em nosso ser, psicológico, social, político, moral, que se caracterize por algum traço de violência ou mal em nós mesmos.

O mal está sempre nos outros. E, se em mim existe algo que pode ser ou sempre foi índice de maldade, por exemplo, logo transformo esse traço em algo "legítimo" que exige seus "direitos".

Como se Freud nunca tivesse existido, passamos a acreditar mesmo que a pulsão de morte é uma invenção do capitalismo. Ou que a sombra da qual falava Jung não passa de formas políticas de opressão. Ao contrário do cristianismo, que pelo menos nos deixava ser um pecador, e, com isso, resguardava alguma dignidade do mal em nós, a tradição humanista de Rousseau a Marx e Foucault nos nega até isso: o mal são os outros, em mim habita apenas a doçura, os bons sentimentos e as boas intenções.

Quando esse mal exterior para de contaminar meus "afetos políticos alegres", torno-me um ser tão adorável que Jesus, ele mesmo, se sentiria humilhado diante de tão bons sentimentos.

Quando é retirada de nós toda forma de mal possível, perdemos nossa espinha dorsal. Não há dignidade em nós se em nós não existir nenhuma sombra intratável. Talvez seja por isso que Deus criou o mal: para nos salvar do retardamento mental e moral. Sem a dignidade do mal não há bem que não seja alguma forma de farsa.

O leitor, curioso, deve estar se perguntando: afinal, o que essa filosofia tão profunda teria a ver com algo tão prosaico como uma dominatrix vegana? E a leitora, em sua perspicácia feminina: seria essa dominatrix vegana uma forma de fantasia erótica do colunista? Esqueçamos a filosofia profunda, fiquemos com a dominatrix vegana.

Como todos sabem, dominatrix é uma mulher dominadora que faz você sentir dor num relacionamento sadomasoquista, hoje chamado de BDSM = bondage (escravidão), disciplina, dominação, submissão, sadismo e masoquismo. Normalmente representada vestida em couro, ela bate, humilha e realiza o sonho de uma mulher que domine você plenamente (claro que existem figuras assim em todos os gêneros e sexos, que ninguém fique ofendidinh@ porque não cito todos os 7 bilhões de gêneros que berram por aí).

Não vou fazer uma avaliação moral desse tipo de tara sexual, apesar de considerar todo perverso um monótono. O que me chama atenção é o fato de que em breve você encontrará uma mãe numa reunião de pais e mestres exigindo que a escola permita que ela traga sua dominatrix nas próximas reuniões. E que BDSM seja ensinado como uma forma de diversidade sexual legítima para menines. E, como as escolas estão mais perdidas do que cego em tiroteio, vítimas de modas baratas há décadas, provavelmente aceitarão. Logo bancos farão comerciais com dominatrix sonhando com a casa própria.

E a dominatrix, quando vier à escola, se apresentará como vegana, numa forma de atestar que é uma santa sobre a face da Terra.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/05/1881955-talvez-deus-tenha-criado-o-mal-para-nos-salvar-do-retardamento-moral.shtml

May 15, 2017

Olhos abertos, boca fechada

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- João Pereira Coutinho

A decadência da civilização é coisa divertida. Ainda me lembro do tempo em que a minha avó ensinava algumas regras de etiqueta. Coisas simples, como não comer com as mãos ou não olhar pasmado para as pessoas. "Menino, maneiras!" E o menino, com a dificuldade própria dos selvagens, tentou refinar-se.

Podemos dizer que usa talheres. E não tem por hábito imitar o personagem central de "Laranja Mecânica", com os olhos esbugalhados, a olhar em volta como um demente.

Pois bem: que diria a minha avó - que hoje faria 93 anos - sobre a mais recente recomendação da Universidade de Oxford aos seus estudantes?

Leio na imprensa britânica que a Unidade para a Igualdade e a Diversidade está preocupada com "microagressões racistas". Essa frase é todo um manicômio. "Unidade para a Igualdade e a Diversidade". "Microagressões racistas". Matem-me. Já. E depois enterrem-me: Oxford afirma que desviar o olhar quando se fala com "alguém" (leia-se: negro, asiático, talvez esquimó) pode ter consequências nefastas na saúde mental do outro.

Não pode, gente: se o outro se sente ofendido porque alguém desviou o olhar é porque já não tem grande saúde mental para preservar.

Além disso, Oxford também recomenda que ninguém seja inquirido sobre a sua origem. "De onde vem?" deixou de ser uma curiosidade normal entre gente normal - e internacional. É um ofensa que esconde, sei lá, um prazer perverso, colonialista, obviamente genocida. Presumo que, para a Unidade, o ideal é ninguém falar com ninguém - mas sempre de olhos abertos, como peixes no aquário.

Comecemos pelo óbvio: na sua ânsia paranóica de combater o "racismo", a Unidade comete uma "macroagressão racista". Porque parte sempre do pressuposto de que um branco que desvia o olhar perante um negro é um nazista em potência. Não existem outras razões: distração, cansaço, timidez, educação. Ou a velha e boa indiferença que é a base de uma sociedade tolerável.

A Unidade, como qualquer organismo totalitário, inverte a presunção de inocência. E, como qualquer organismo totalitário, condena com base em suposições. Pior: condena o que acredita existir na cabeça dos outros. O racismo já não é um crime objectivo, ou seja, identificável em palavras ou atos. Pode ser um delito de consciência. Socorro?

Felizmente, a Universidade de Oxford resolveu pedir desculpas pelo excesso de zelo. Mas não, obviamente, porque as recomendações da sua Unidade para a Igualdade e a Diversidade são uma aberração moral que só envergonha a instituição.

O problema, pelos vistos, é que os conselhos podem ser discriminatórios para autistas ou pessoas com transtornos ansiosos, que têm certa dificuldade em manter o contato visual.

O mundo caminha para o apocalipse quando só o pensamento politicamente correto é capaz de frear o pensamento politicamente correto. Teremos salvação?

Por favor, não olhem para mim.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2017/05/1881313-olhos-abertos-boca-fechada.shtml

May 12, 2017

Filosofia da mentira

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- Luiz Felipe Pondé


Se no futuro existir um medidor de mentiras, o início do século 21 ganhará o prêmio de era da mentira.
Uma filosofia da mentira é algo necessário para qualquer dossiê de temas urgentes. Sabe-se que a mentira foi duramente condenada pelo filósofo Immanuel Kant no século 18. Para ele, se ninguém mentisse, o mundo seria mais ético e mais "transparente". Se vivesse hoje, acreditaria, provavelmente, na gestão ética dos indivíduos através de uma espécie de sistema universal de compliance.

Contra essa ideia de um mundo perfeito da transparência, o russo Dostoiévski, no século 19, visitando feiras de ciência da Europa ocidental, já percebia a morte da privacidade pelas mãos de um "palácio de cristal" onde a vida seria um fato "claro e distinto".


No Brasil, nosso maior filósofo da moral, Nelson Rodrigues, em pleno século 20, clamava "mintam, mintam por misericórdia!". Nelson pensava que, sem a mentira, a vida em sociedade seria impossível. A mentira, nesse caso, era uma forma de doçura para com as fraquezas humanas. Aquele tipo de mentira misericordiosa que sustenta jantares em família, amizades, longos relacionamentos, silêncios honrosos em nome de um morto ou a piedade diante de uma feia.

Mas há formas de mentira que precisam ser mais analisadas por nossa vã filosofia. Refiro-me à mentira a serviço do marketing moral. Esse tipo de mentira visa vender a ideia de que somos uma época mais avançada em costumes, afetos e comportamentos. Se formos à tradição filosófica, veremos que a mentira contemporânea se encaixa no tipo de mentira que se chama mentiras da vaidade. Vejamos três casos.

A vaidade ferida, normalmente, se transforma em sua irmã ainda mais miserável, a inveja. A falsa afirmação do marketing moral de que todas as pessoas são iguais (uma corruptela da ideia justa de que todos devem ser iguais perante a lei, mentira essa evidente, na verdade) gera, no convívio interno a instituições, a mentira travestida de normas burocráticas.

Alguém sob forte inveja pode, facilmente, querer destruir a fonte de sua humilhação cotidiana (por exemplo, destruir alguém muito melhor do que você profissionalmente) lançando sobre essa fonte (uma pessoa, na maioria dos casos) um conjunto de normas que visa inviabilizar a vida dessa pessoa.

Se indagado acerca da causa desse conjunto de normas burocráticas asfixiantes, o mentiroso no exercício de sua função burocrática dirá que apenas exerce sua função, aplicando as normas.

Como muitas normas burocráticas visam mesmo à destruição da espontaneidade e criatividade, e riscos inerentes às duas, em nome da mediocridade segura, o mentiroso burocrático estará seguro no exercício de sua função. Não prestamos a devida atenção ao fato que a mediocridade é a forma mais segura de viver que existe.

Fala-se muito em "pensar fora da caixa", mas, na verdade, nunca o mundo corporativo investiu mais no seu contrário: as pessoas devem ser cada vez mais medíocres e respeitadoras dos limites dessa caixa.

O dinheiro acumulado sempre leva o seu dono à conclusão de que a melhor política é a covardia. Apesar de se falar o contrário disso, a verdade é que o acúmulo tende a tornar você uma formiga contida em seu formigueiro.

Falar em "pensar fora da caixa" é para o pensamento da "gestão de ideias" o que a punheta é para o sexo: uma atividade segura, sem riscos de engravidar alguém. Quando o risco de perda é muito alto, a melhor política é a mediocridade que paga pouco, mas sempre paga.

As relações entre homens e mulheres nunca foram tão ruins como hoje. O desinteresse pelo sexo é seu maior sintoma. Sexo suja, implica em riscos e precisa de um "outro" para ser realizado.

Aliás, uma das maiores mentiras contemporâneas é a masturbação ética ao redor da "alteridade"(o tal do "outro"). Fala-se muito dele, mas o eliminamos à nossa volta. Outros na África são mais seguros do que em casa. 

A ideia de que as pessoas evoluíram nos afetos é, talvez, a maior de todas as mentiras contemporâneas. Suspeito, na verdade, que "involuímos". 

Somos uns retardados do afeto.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2017/04/1876119-uma-filosofia-da-mentira.shtml

May 08, 2017

Pais e filhos

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- Carlos “Catito” e Dagmar Grybowski

Recentemente, ao fazer minha leitura devocional, me deparei com o texto de Mateus 12.46-50, o qual me deixou pensativa. As palavras de Jesus “quem é a minha mãe, e quem são meus irmãos?” sempre me soaram fortes; afinal, a família e, principalmente, o papel da mãe são muito importantes na cultura latino-americana.

Como entender a relação de Jesus com sua mãe neste texto e em João 2.4, no qual ele lhe diz: “Que temos nós em comum, mulher?”.

Ao lermos outros textos que falam sobre o relacionamento familiar de Jesus, percebemos um equilíbrio entre a submissão do filho aos pais e o desenvolvimento da identidade dele.

Já na adolescência de Jesus (Lc 2.41-52) verificamos este processo: após ficar em Jerusalém sem que os pais o soubessem, Jesus tem a liberdade de dar explicações. Seus pais o ouvem e, mesmo sem entender, respeitam suas colocações. Depois Jesus volta com eles para casa e lhes é submisso. Nós também temos que ter esta prática em nossa vida familiar: os filhos precisam fazer exercícios de independência, mas também saber respeitar e ser submissos. Os textos de João e Mateus, no entanto, nos contam de um Jesus adulto, que tem um ministério a cumprir.
Alguns pais permanecem demasiadamente ligados aos filhos adultos e esperam que eles continuem submissos, mesmo quando já são casados ou têm vida própria e independência financeira. Cria-se um relacionamento misturado e dependente, prejudicial ao processo de amadurecimento familiar. Pais acreditam que é necessário continuar vivendo de forma que os filhos lhes prestem contas de todos os aspectos de sua vida.

Jesus não agiu desta forma. Ele sabia qual era o seu ministério e, apesar de usar palavras duras para com a sua mãe, em vez de ficar ofendida, ela ordena que os empregados façam tudo o que ele mandar (Jo 2.5).

Nós pais temos muito a aprender com essa atitude de Maria -- observar como se processa a vida de nossos filhos; apoiá-los, sem achar que por termos mais experiência sempre sabemos o que é melhor para eles; aceitar que nem sempre poderemos fazer parte da vida deles, pois precisam de independência para cumprir os próprios mandatos.

É importante que os filhos desenvolvam suas habilidades pessoais, mesmo que estas não sigam os costumes familiares. Jesus era filho de um carpinteiro e, na cultura da época, o comum seria que ele seguisse a profissão do pai. Na minha prática terapêutica, vejo algumas famílias tão fusionadas que não existe espaço para que os jovens adultos busquem sua identidade profissional. Jesus teve esta liberdade de escolha e a família soube respeitar seu ministério.

Mesmo quando Jesus usou palavras duras para afirmar sua identidade adulta, ele não faltou com respeito e cuidado com os pais. Na hora do seu maior sofrimento, na cruz, ele não se esqueceu da mãe, então desamparada, mas voltou-se para ela e lhe apresentou um “novo filho”, que iria cuidar de suas necessidades. Jesus sabia manter o equilíbrio entre autonomia, pertencimento e cuidado.

Nos textos de Atos, lemos que Maria estava integrada no meio dos seguidores de Jesus. Ela certamente foi uma mulher sábia, que soube dar o espaço necessário ao desenvolvimento do filho. Não ficou magoada nas vezes em que ele não aceitou falar com ela e, por sua atitude, confirmou o ministério de Jesus.

Sejamos também pais sábios, que dão espaço aos filhos para que eles possam se desenvolver como adultos autônomos, respeitando-os como indivíduos responsáveis, mesmo quando não os entendemos.

Fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/339/filhos-obedecam-aos-seus-pais