July 29, 2017

Deixando de ser vítima

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- João Pereira Coutinho

Era inevitável: todo mundo falava de "13 Reasons Why" a série do momento. Respeitei o clamor, sentei-me no sofá e assisti aos 13 episódios com diligência. Opinião pessoal?

Um pouco de paciência. Primeiro, e para quem vive em Marte, uma breve apresentação do produto. "13 Reasons Why", baseado no livro de Jay Asher, é o relato da vida de Hannah Baker. Da vida e da morte, melhor dizendo: Hannah, 17, estudante do ensino médio, comete suicídio. Ninguém sabe por quê.

Mas Hannah sabe e deixa para a posteridade gravações áudio nas quais vai identificando os responsáveis pelo seu trágico fim. Os responsáveis são, sem surpresas, os coleguinhas da escola que foram cometendo bullying (e um crime particularmente grave) contra Hannah. Cansada da vida, da impunidade dos seus carrascos e da inoperância dos "adultos", Hannah despede-se do mundo.

Segundo a crítica, a série colocou o bullying e o suicídio adolescente na agenda. "Despertou consciências", como diz a propaganda, e eu admito que sim. Nesse sentido, a série não é propriamente uma obra de ficção, muito menos uma obra de arte de ficção. É uma espécie de documentário fictício, ou talvez uma novela de adolescentes, muito semelhante a outras novelas que valem pela sua mensagem "social".

Lembro-me de assistir a algumas, quando passei pela calvário da menoridade: novelas sobre o sexo desprotegido, a gravidez inesperada, as doenças sexualmente transmissíveis e, claro, a importância salvífica da abstinência – ou, no limite, da camisinha.

"13 Reasons Why" opera na mesma lógica ao mostrar as agressões (ou, como hoje se diz, as "microagressões") que são cometidas todos os dias nas escolas dos Estados Unidos (ou do Brasil, ou de Portugal, ou...): insultos, calúnias, maldades sobre estudantes mais vulneráveis, que provocam danos físicos ou psicológicos consideráveis.

Quem vê o primeiro episódio adivinha todos os episódios seguintes: uma escalada de insensibilidades contra Hannah Baker – e nós, que assistimos às investidas, vamos interiorizando a mensagem dos criadores. Isso não se faz. Isso é errado. Isso poderia acontecer com a minha filha. É preciso estar atento. As escolas devem estar atentas. Os pais também. E etc. etc.

"13 Reasons Why" é pobre como drama porque é literal e "pedagógico". Mas a questão fundamental é saber se, mesmo como "pedagogia", a badalada série merece tanto aplauso.

Tenho dúvidas e, mais, desconfio que "13 Reasons..." é um belo retrato da nossa decadência moral e do "heroísmo vitimário" que tomou conta do homem ocidental.

Em pequeno e luminoso livro já publicado no Brasil, intitulado "Crítica da Vítima" (editora Âyiné, 177 págs., R$ 39,90), o filósofo Daniele Giglioli procura entender como as vítimas se tornaram o exemplo moral por excelência, dotadas de uma virtude e de uma "santidade" (no sentido prosaico da palavra) que antigamente só concedíamos a outra espécie de agentes morais.

Porque esse é o problema central da "ideologia vitimária": o sujeito renuncia ao seu estatuto como agente moral e algumas das virtudes que sempre fizeram parte da nossa gramática laudatória (coragem, prudência, temperança, justiça) são substituídas pelo endeusamento da impotência, da fraqueza, da passividade – e da irresponsabilidade.

Ponto importante: Giglioli não nega a existência de vítimas; o que ele condena é a cultura parasitária que se alimenta da "vitimização" para mutilar o que de mais importante existe no ser humano: a capacidade de pensar criticamente a sua conduta e a conduta de terceiros.

"13 Reasons Why" é apenas o reflexo dessa moda. Hannah Baker é, sem dúvidas, vítima de um ambiente hostil, embora o adjectivo correto talvez fosse "adolescente": quem já passou por esses terrenos infectos sabe que a estupidez, a inconsciência e até a crueldade fazem parte do pacote.

Porém, Hannah Baker assume-se desde o início como uma sofredora impenitente e a principal consequência desse estatuto é que ela será incapaz de reagir à intrínseca iniquidade do mundo. Ela não racionaliza, não denuncia, não confronta, não se afasta. Quando assistia aos episódios, a minha pergunta não lidava com a maldade dos seus colegas; lidava com o estado "sonâmbulo" da personagem central.

Os fãs da série transformaram Hannah Baker em heroína de coisa nenhuma. Seria mais proveitoso que eles olhassem para Hannah Baker como o exemplo trágico do que acontece quando há uma rendição interior. Porque o mundo nem sempre é justo. E a estupidez humana está democraticamente distribuída. A única forma de viver neste mundo é não esperar que os outros se curvem à perfeição – mas ter em nós os recursos morais necessários para identificar, evitar e em, certos casos, punir a conduta dos brutos.

Essa deveria ter sido a mensagem de "13 Reasons Why". Mas acredito que o sucesso da série não seria o mesmo.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2017/08/1908828-13-reasons-why-e-pobre-como-drama-porque-e-literal-e-pedagogico.shtml

July 20, 2017

'Direitos das minorias' nem sempre respeitam os 'direitos das maiorias'

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- João Pereira Coutinho

E pronto: acabou o tratamento "ladies and gentlemen" no metrô de Londres. Razões? A comunidade LGBT não se encontra representada na formulação e protestou. Com sucesso. A partir de agora, haverá anúncios sonoros devidamente neutros –"Olá a todos!"– para não ofender ninguém. Ninguém?

Eu pasmo. Para começar, nunca pensei que um homem (gay) se sentisse ofendido pela palavra "cavalheiro". Pelo contrário: sempre vi no termo uma altíssima distinção de caráter, independentemente do sexo ou das preferências sexuais. Um cavalheiro é um "gentil homem", ponto final.

O mesmo vale para "senhora". É indiferente o que ela faz na alcova, com quem, quantas vezes por dia e em que posições: ela será uma "senhora" pelas mesmas razões de educação e caráter.

Quando as patrulhas LGBT eliminam "ladies and gentlemen" por alegadas ofensas aos membros do clube, elas afirmam que gays, lésbicas, bissexuais ou transexuais não possuem certas propriedades morais. Francamente, não conheço maior insulto.

Mas existe outro. Nos últimos 20 ou 30 anos, os "direitos das minorias" passaram a ocupar todo o espaço da teoria liberal ("liberal" no sentido "progressista" do termo). Nada contra – até certo ponto.

Sou um pluralista por formação e convicção. Diferentes concepções de vida fazem parte da própria natureza humana. Uma ordem política será tão mais civilizada quanto maior for o espaço para que diferentes culturas ou sensibilidades possam coexistir em paz. Quem quer uma Arábia Saudita no Ocidente? Eu não.

O problema é que os "direitos das minorias" nem sempre respeitam os "direitos das maiorias". A noção pode soar bizarra: as maiorias, por definição, não precisam de defesa. Argumentar o contrário é um insulto à lógica comum.

Infelizmente, não é. E, para ficarmos no caso anedótico do metrô de Londres, alguém pensou nas maiorias que se reconhecem naquele tratamento clássico? Que lhe atribuem valor social, cultural, histórico, simbólico? Que direito assiste a uma minoria para determinar a forma como toda a comunidade será tratada no futuro?
A reflexão filosófica tem sido omissa nessa matéria. Existem exceções, como sempre. Uma delas é o cientista político Liav Orgad e o seu magistral "The Cultural Defense of Nations: A Liberal Theory of Majority Rights" (Oxford University Press). Recomendo.

O livro trata uma questão específica: a imigração. Defende Orgad que, nos debates contemporâneos, concede-se uma espécie de prioridade instintiva aos "direitos das minorias". Mas quem escuta as maiorias? Quem as defende? Quem leva a sério as suas preocupações? Quem reconhece, pelo menos, que a imigração incontrolável pode ter consequências dramáticas na vida de milhões de seres humanos nativos?

Dito de outra forma: por que motivo partimos sempre do pressuposto de que os "direitos das minorias" devem ter precedência sobre os valores de quem vive e sempre viveu em determinadas sociedades, nações ou culturas?

Não se trata de excluir o Outro, como defendem autoritários e boçais. Muito menos ignorar, ou desprezar, interesses legítimos de quem é diferente da maioria. Trata-se de saber por que razão o Outro tem sempre mais importância do que a primeira pessoa do plural.

Em dezembro, o Ocidente festeja o Natal: por que motivo devemos omitir a palavra "Natal" para respeitar certas religiões? Por que motivo devemos eliminar a carne de porco do cardápio por razões similares? E que legitimidade tem uma minoria qualquer para determinar o que os professores podem ensinar, os alunos aprender, as editoras publicar etc. etc.?

As questões podem ser aplicadas ao próprio processo democrático. Basta imaginar uma eleição. E basta imaginar um pequeno partido que exige governar contra o voto majoritário. Devemos tolerar esse desejo para não frustrar o pequeno partido?

Uma sociedade democrática e pluralista reconhece a variedade de culturas e formas de vida que existem no seu seio. Não garante que a vida em comum será determinada pela vontade exclusiva de uma minoria, ou de várias minorias, contra os direitos da maioria.

No fundo, só concebo um cenário em que "ladies and gentlemen" seria abolido do espaço público: pela conclusão melancólica de que "senhoras" e "cavalheiros" são artigos cada vez mais raros em qualquer cidade.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2017/07/1902100-os-direitos-das-maiorias.shtml 

July 10, 2017

A fé que eu preciso

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Joyce Hencklein

A fé descrita em Hebreus 11 é “a certeza de coisas que se esperam, a convicção de fatos que se não vêem”. Essa ideia sobre a natureza da fé me surpreende muito, porque muitas vezes utilizamos a palavra fé em nosso cotidiano de forma corriqueira, mas não nos aprofundamos no sentido dela em nossas vidas.

Quando passamos por situações difíceis, sempre falamos ou ouvimos alguém dizer: “Tenho fé  de que tudo dará certo”. Mas me pergunto: Será que realmente temos fé? Se a fé é a certeza de coisas que esperamos tendo a convicção dos fatos que não vimos, acredito que nem sempre é fácil ter fé.

Infelizmente, vivemos em um mundo muito visual e palpável, que prega o ditado do “preciso ver para crer”, a ideia de que tudo precisa de comprovações e fatos consumados. No entanto, na Bíblia a história é outra. E graças a Deus, porque Ele nos mostra que é necessário e possível ter fé.

Quando pensei na minha dificuldade em ter fé em relação a algumas questões, li em Hebreus 11 o histórico de pessoas de fé como Abel, Enoque, Noé, Abraão, Sara, Isaque, José, Moisés, Raabe e outros. Com a leitura, percebi que se era para alguém ter dificuldade em ter fé, eram eles, não eu, já que os desafios enfrentados por eles são inimagináveis para mim.

Olhe a vida de Abraão, por exemplo, que começou saindo de sua terra e do meio de seus parentes para ir a um lugar que Deus ainda iria mostrar. Deus prometeu a Abraão que ele teria uma descendência muito grande, comparando-a aos grãos de areia. Porém a realidade indicava que Sara, sua mulher, era velha e não podia ter filhos.

Mesmo assim Abraão e Sara acreditaram que a palavra de Deus iria se cumprir. Depois disso, a fé de Abraão foi testada de forma ainda mais difícil, tendo que dar seu filho Isaque como sacrifício, conforme Deus havia ordenado. A fé de Abraão era tamanha, que ele acreditava que Deus poderia ressuscitar seu filho mesmo depois de morto.

Hoje não construo uma arca como Noé, não escondo espiões na minha casa como Raabe e nem andei entre o Mar Vermelho como Moisés, mas devo acreditar que se for preciso que algo como esses fatos aconteça novamente, desejo estar pronta para crer mesmo sem ver, sabendo que Deus sempre estará no controle e pode realizar muito mais do que pedimos ou pensamos.

Muitas vezes precisamos plantar um semente de fé para que então ela floresça. Pode ser que tenhamos iniciativa para plantar e acabemos sem ver a árvore florescendo, como foi o caso de Moisés que andou com fé em sua trajetória mas não entrou na Terra Prometida, ou ainda como Abraão que não viu sua descendência ser incontável como as areias da praia.

Mas “pela fé, os antigos obtiveram bom testemunho” (Hb 11-2). Se eu conseguir ter um bom testemunho de fé perante Deus, não precisarei necessariamente ver os frutos da árvore, porque o mais legal é que essa mesma árvore foi plantada pelas mãos de Deus, juntamente com as minhas.

Finalizo com as mesmas palavras direcionadas aos Hebreus “De fato, sem fé é impossível agradar a Deus, porquanto é necessário que aquele que se aproxima de Deus creia que Ele existe e que se torna galardoador dos que o buscam” (v 11:6). 

Deus nos abençoe.

Fonte: http://ultimato.com.br/sites/jovem/2017/02/01/a-fe-que-eu-preciso/

July 07, 2017

O tempo e o Senhor do tempo

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- Joyce Hencklein

Todos os dias penso sobre o tempo. Penso em tudo que vi e vivi em meu passado, em tudo o que vejo e vivo em meu presente e no que posso viver futuramente. Umas das verdades cruciais sobre o tempo é que ele pode ser entendido em três perspectivas: passado, presente e futuro. A questão é que o passado já foi e não posso mudá-lo, o presente é minha realidade e o futuro é o que não vejo. Posso planejar e sonhar, mas não tenho controle para a determinar a forma como o esse futuro será.
Devemos aprender que Deus é atemporal. Enquanto nós vivemos por “etapas”, Deus nos vê como um todo. Para Ele não existe passado, presente e futuro, pois afinal Ele estava no começo e estará no fim. Podemos aprender também que há tempo pra tudo debaixo do céu, como está escrito em Eclesiastes 3.1-8. Lá aprendemos exatamente sobre o tempo e sobre como não teremos somente fases de alegria, de amor e paz, mas épocas difíceis também. Como podemos entender nossas vidas em meio a tempos difíceis? Às vezes podemos pensar demais no passado e esquecer o presente, como lidar com isso?
Bem, se acreditamos que Deus é atemporal, podemos afirmar que Ele é o mesmo Deus, Ele não mudou. Tudo que Ele fez no tempo das passagens bíblicas, pode fazer ainda hoje. Ele continua sendo bom e fiel. Se sabemos que Deus nos ama e essa realidade não muda, podemos crer que Ele nos ouve, não nos abandona e sempre nos responde. Mas as respostas vêm no tempo dEle, e sempre as respostas de acordo com Sua vontade.
Com relação ao pensamento constantemente preso ao passado, devemos entender que isso provavelmente ocorre porque o presente momento da vida pode não estar tão bom a ponto de apresentar perspectivas promissoras para o futuro, restando somente o passado a ser lembrado – e às vezes remoído. Mas o que temos é o presente, e o passado deve ficar guardado em nossa memória.
Esse presente deve ser vivido da melhor forma possível, e para saber que forma é essa devemos investir tempo em relacionamento com Jesus. Devemos ler sua palavra, meditar nela e perseverar em oração para entendermos o caminho a seguir rumo ao futuro planejado por Deus para nós. Jesus nos ajuda a entender nossa vocação e os alvos a serem atingidos por nós através da ação transformadora dEle.
Paulo fala sobre isso aos filipenses. No capítulo 3 da carta, instrui a deixarem para trás o que ficou e seguirem para o alvo. Se conseguirmos viver de acordo com os valores da vida de Cristo, poderemos saber que o tempo de nossas vidas será bem usado, e que refletiremos esses valores para os que estão a nossa volta. Deixemos Deus ser a nossa linha do tempo e o nosso relógio, e certamente viveremos de forma completa e preenchida por aquele que nos criou.
Fonte: http://ultimato.com.br/sites/jovem/2017/06/28/o-tempo-e-o-senhor-do-tempo/

July 04, 2017

Uma ponte entre teologia, literatura, fantasia e realidade

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Maurício Avoletta Junior

O diretor de cinema Terrence Malick inicia seu (espetacular) A Árvore da Vida (2011) com a ideia de que existem dois caminhos na vida: o da natureza e o da graça. Nós devemos decidir em qual deles vamos andar, pois um nos faz viver para nós mesmos e o outro nos faz viver para o próximo. Concordo com Malick, porém, acredito também que existam dois mundos. Sim, dois mundos!

Não, eu não estou louco, acredito que exista um mundo real: esse que conhecemos e que está cercado por uma realidade material e outra espiritual. Mas também acredito em um mundo imaginativo que seria um reflexo imperfeito de um mundo perfeito, e por vezes, talvez, um reflexo do nosso próprio mundo. Tolkien chamou de Faërie, Chesterton de Elfolândia, e você pode chamar do que quiser. Esse mundo imaginativo nada mais é do que o ponto de encontro entre a realidade e o desejo, ou seja, a fantasia.

Mas qual é a importância da fantasia? Chesterton, em seu livro Ortodoxia, entende que a fantasia é a responsável por impedir que o homem seja destruído pela lógica, e por fim, se afunde na loucura. Concordo com ele. A fantasia nos permite chegar a lugares impossíveis ou até mesmo inexistentes. Na verdade, será que esses lugares são completamente inexistentes mesmo? Bom, acredito que não. Acredito que esses lugares, embora não totalmente reais, são completamente possíveis.

Isso quer dizer que acredito em fadas, gnomos e Papai Noel? Obviamente não. Mas não me surpreenderia se existissem, afinal, como sabiamente afirmou Santo Agostinho, de todos os absurdos, acreditei no maior de todos eles. Isso quer dizer que por acreditarmos no Cristianismo, logicamente estamos suscetíveis a acreditar em toda e qualquer fantasia humana? Sim! E não… Calma, vou explicar.

Ao acreditarmos que o Cristianismo é verdadeiro, acreditamos em um Deus atemporal que sustenta toda sua criação. Acreditamos também que esse Deus, ao criar o ser humano, colocou nele sua própria Imagem e Semelhança, o que significa que temos aspectos semelhantes aos do nosso criador e que apontam para ele.

Por exemplo: Ele é o próprio amor, nós amamos; Ele é a própria esperança e nós temos esperança; Ele é o próprio criador, e nós, segundo Tolkien, somos Sub-criadores. Sendo assim, devemos entender que todas as nossas criações, assim como Platão, Aristóteles, Campbell, Girard e muitos outros já disseram antes de mim, são reflexos dos nossos desejos e anseios. Olhando de um ponto de vista mais teológico, nossas criações são reflexos de verdades.

Os monstros não existem como nos contos de fadas ou histórias de terror, eles não são verdades, mas o que sentimos quando estes aparecem, isso é verdadeiro. Assim como muitos dos personagens de ficção também não existem na vida real, mas apontam para verdades reais, como Aragorn, Frodo e Gandalf, da célebre trilogia de O Senhor dos Anéis. Separados, cada um destes três personagens tem sua devida importância para o desenrolar da história, mas juntos apontam para um personagem histórico, Cristo, que, segundo Lewis, foi o mito perfeito que se fez fato e interferiu na realidade, na própria verdade.

Cada uma das personagens de Tolkien representa um ofício real do Cristo que libertou a humanidade. Enquanto Aragorn é a figura do Rei que guia seus súditos, Gandalf é a figura do profeta que exorta o povo e Frodo o servo fiel que dá a sua vida pelos seus amigos. Embora estas três personagens sejam fictícias, elas representam verdades, fazendo com que esse mundo não seja real, mas possível, pois dialoga com a realidade. A possibilidade destes mundos é o que faz com que nos apaixonemos por eles.

Não é por acaso que livros como Harry Potter, Nárnia, O Senhor dos Anéis, A História sem Fim e tantos outros façam tanto sucesso. Essas histórias mexem com os desejos mais íntimos do ser humano. Como diria Tolkien, elas despertam a desejabilidade, e é isso que as tornam reais. Não uma realidade material, mas uma realidade metafísica.

Onde a verdade e a mentira se fundem? No desejo do ser humano. Desejamos conhecer o Totalmente Outro de Karl Barth, o Logos do Evangelho de João, o grande Eu Sou de Abraão, Isaque e Jacó, o Deus da salvação de Davi e o Deus que virou a vida de Jó de cabeça para baixo.

Embora tenhamos as Escrituras Sagradas para nos guiar diante desta empreitada de conhecer o Deus que se revela, ainda temos a Imagem e Semelhança dele impressa em nós – ainda que agora embaçada devido à nossa catástrofe, a Queda –, para nos auxiliar nesta busca. Nós fomos criados para buscar a esse Deus que é ao mesmo tempo Totalmente Outro, mas também é totalmente o mesmo ontem, hoje e sempre. Nós buscamos constantemente conhecer o Deus desconhecido que se fez conhecer plenamente em Cristo, embora nós não consigamos entende-lo de forma plena.

A fantasia é nossa válvula de escape. Somos exilados em uma terra desconhecida esperando o dia em que voltaremos para nosso lar. Até lá, falaremos do que conhecemos e do que temos visto. Conhecemos o desconhecido e vimos o que ninguém mais viu. Somos reféns do paradoxo máximo da existência, que segundo Chesterton, é o próprio Cristianismo, o mito que se fez fato.

Um dia nossos contos de fadas não farão mais sentido, pois não precisaremos mais do reflexo para entender o todo. Não veremos mais como por um espelho. Um dia estaremos diante do Criador de todas as fantasias e de toda a realidade. Mas enquanto este dia não chega, continuaremos a contar histórias e subvertendo a realidade com a fantasia.

Fonte: http://ultimato.com.br/sites/jovem/2017/06/23/uma-ponte-entre-teologia-e-literatura-fantasia-e-realidade/

July 03, 2017

A luta é grande, mas não confie em seus sentimentos

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Rafaela Senfft

Lemos a Bíblia todos os dias, mas o conteúdo é incutido em nós por Deus quando perseveramos em buscá-lo. O aprendizado e a relação estreita com o Espírito Santo vai nos conformando à palavra do Senhor, até que aqueles versos deixam de ser algo poético e passem a ser vividos.  Quantas vezes lemos os mesmos versículos, repetidamente, mas um dia eles fazem um sentido diferente e entendemos como nunca, numa perspectiva completamente pessoal? Como é viva e preciosa a palavra de Deus!

“Somos transformados de glória em glória na mesma imagem, como pelo Espírito do Senhor” 2 Co 3:18

Estou num ponto do aprendizado com Deus de não confiar em meus sentimentos, e nunca imaginei que fosse uma luta tão travada. Tenho pensado em como nossos sentimentos solicitam energia, no tanto que nos ocupam e exigem do nosso tempo. Mas as solicitações dos sentimentos vão muito além.

Vivemos num tempo em que os sentimentos têm mandado no homem, nos tornamos reféns deles. Queremos nos sentir confortáveis, amados e compreendidos e estamos sempre defendendo qualquer causa, a todo custo, para que as coisas cooperem e atendam nossa demanda de conforto e bem-estar emocional. Mas na Bíblia não há vários alertas quanto ao que sentimos e pensamos?

“Quem confia em si mesmo é insensato, mas quem anda segundo a sabedoria não corre perigo” Pv 28:26

“Enganoso é o coração, mais do que todas as coisas, e perverso; quem o conhecerá?” Jr 17:9

Devemos raciocinar que nossos sentimentos fazem parte do nosso eu, da nossa carne, e essa está fadada ao fracasso e prejudicada pela queda, portando não é confiável. Aprendemos também pela palavra que o único ser confiável é Deus, e que quando nos convertemos passamos a crer nisso sobre todas as coisas. Só que fazemos o contrário, pois estamos confiando mais na carne que em Deus quando queremos adequar tudo à nossa maneira para ficarmos emocionalmente confortáveis.

Hoje não aguentamos mais uma oposição pessoal, ficamos emocionalmente instáveis por qualquer motivo, queremos ser reconhecidos de qualquer forma em nome do bem-estar e com isso negociamos valores inegociáveis.

Estamos carregando nosso ressentimento do passado conosco e tentando adequar a fé cristã a ele. 

Precisamos parar de alimentar nossa carne e não nos deixar curvar aos sentimentos. Isso é algo tão serio que não deve ter sido à toa que Jesus tratou certas questões com tanta radicalidade. Nos nossos tempos essa pode parecer uma mensagem  pesada demais, mas vamos nos lembrar que Jesus não economizou na metáfora e não usou eufemismos para falar sobre essas questões da carne:

“Se a sua mão ou o seu pé o fizerem tropeçar, corte-os e jogue-os fora. É melhor entrar na vida mutilado ou aleijado do que, tendo as duas mãos ou os dois pés, ser lançado no fogo eterno. E se o seu olho o fizer tropeçar, arranque-o e jogue-o fora. É melhor entrar na vida com um só olho do que, tendo os dois olhos, ser lançado no fogo do inferno” – Mt 18:8,9

Vivemos tempos em que estamos ficando fracos, pois sempre queremos nos preservar demais, nos incomodamos demais com a maneira como nos sentimos, com nosso lugar ao sol deste mundo, enquanto Jesus propõe que sigamos adiante, matando a carne diariamente e ficando até sem um olho ou sem perna para isso, se preciso for.

Podemos tomar uma decisão todas as manhãs, de não confiar em nossos sentimentos, deixar nossas solicitações de lado, parar de alimentar nosso eu e confiar na palavra de Deus, pedir ao Espírito Santo que solte um acervo de versículos em nossa memória, e que nossos sentimentos, mais tarde, que se adequem à verdade da palavra e não ao contrário.

Tenho aprendido a acordar e tomar a decisão de confiar no que a Bíblia diz mesmo que eu me sinta péssima, mesmo que eu acorde deprimida e ressentida. Tenho lembrado todas as manhãs de Hebreus 13:5, que diz “De maneira alguma te deixarei, nunca jamais te abandonarei”.

Ainda que tudo pareça ao contrário, ainda que me seja difícil crer, ainda que minha fé pareça ter esvanecido, Deus nos deixou a Bíblia, e Sua palavra é mais confiável do que qualquer coisa que eu sinta, bem como todas as circunstâncias. Pois não andamos por vista!

“Pois vivemos por fé e não pelo que nos é possível ver. Sendo assim, caminhamos em confiança” 2 Co 7,8

Fonte: http://ultimato.com.br/sites/jovem/2017/06/21/a-luta-e-grande-mas-nao-confie-em-seus-sentimentos/

July 02, 2017

Como orar nos dias atuais

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- Durvalina Bezerra

É parte da nossa missão estarmos informados acerca da realidade mundial, discernindo os tempos e as épocas. Está Deus agindo hoje? Ele é o controlador do universo, o Senhor da história, o rei das nações? O intercessor precisa se manter atento à intervenção de Deus na história das nações, conhecer seus feitos entre os povos.

Era calamitosa a situação política e religiosa de Israel, na época da morte do rei Uzias, provavelmente no ano 740 a.C. Isaías, entretanto, entra no templo e vê o Senhor assentado no alto e sublime trono (Is 6). Isso demonstra que não há circunstância, por mais desalentadora que seja, que possa ofuscar a glória da majestade divina. Ele está no trono!

O intercessor não é aquele santo que se enclausura para orar, alheio à sua realidade. Antes, é aquele que se coloca em sua torre de vigia (Hc 2.3), em seu lugar secreto de oração, mas ao mesmo tempo está atento ao progresso científico e tecnológico, ao processo de acordos de paz entre as nações, à atuação dos governantes, que têm dever de reduzir a fome e a miséria, aos programas de desarmamento, à luta contra a corrupção etc. Está atento porque conhece seu Deus e pode identificar as marcas da atuação divina. Estas marcas podem ser: ruína, reconhecida como expressão da justiça divina para as nações opressoras – como ocorreu no Egito, quando os próprios magos confessaram: “Isto é o dedo de Deus” (Êx 8.19) – e, outras vezes, prosperidade para as nações – como aconteceu no reino da Babilônia, quando este reconheceu que o Céu reina (Dn 4.26, 32)! Nosso Deus julga e redime as nações.

Assim, o intercessor deve ser um bom observador, pois “[...] oração consiste em atenção; a qualidade da atenção conta na qualidade da oração”.1 Deus intervém nos acontecimentos mundiais e espera que seus servos interajam nesse contexto e, com sua vida e atitudes, influenciem sua época, isto é, que o povo de Deus faça história. Os reinos do Egito, da Babilônia e da Pérsia sofreram sensíveis transformações pela presença do povo judeu no meio deles.

Se crermos que nosso Deus é o Senhor da História e que nós somos seu instrumento de operação neste mundo, faremos diferença na comunidade onde estamos inseridos.

O rei Davi, preocupado em saber os sinais dos tempos e o que Israel deveria fazer, designou a tribo de Issacar para “estudar as épocas” (1Cr 12.32). É necessário conhecermos as épocas para distinguir o kairós de Deus (em grego, kairós quer dizer época ou ocasião não mensurável, tempo oportuno). Só assim seremos capazes de seguir seus sinais e atuar em nossa realidade, cooperando com ele em seus planos eternos.

Se não procurarmos perceber Deus em nossa realidade contextual, não seremos capazes para agir em nosso tempo e acabaremos secularizando-nos, como tem acontecido com cristãos de alguns países europeus que foram o berço da Reforma protestante.

Precisamos estar atentos a alguns sinais surpreendentes, tais como o avanço tecnocientífico e os diversos indicadores de crise. Conquistas como as tecnologias da reprodução humana, o mapeamento genético e a clonagem têm levado muitos ao descrédito de um Deus soberano, de modo que o ateísmo tem crescido na era pós-moderna.

Segundo observou Bill Taylor, o mundo a ser alcançado é “um mundo em crise”. Basta acompanhar os noticiários! As guerras do século XX, as barbaridades cometidas pelos poderosos que dizimaram nações, as catástrofes, a corrupção humana e tantos males que vêm assolando o Planeta, nas últimas décadas, têm levado muitos a negar a existência do Deus justo. Violência, domínio do tráfico de drogas, sequestros, assaltos etc., tudo isso leva as pessoas a precisar desesperadamente de segurança e qualidade de vida para vencer o medo e o estresse. 

Além disso, as dificuldades econômicas tornam o ser humano mais receptivo à mensagem de esperança, principalmente quando esta vem seguida de ação social. Este é o lado positivo das crises, o qual leva populações do mundo emergente (os países em desenvolvimento) a estarem mais abertas para uma mensagem que corresponda aos seus anseios de ascensão social. 

É nesse contexto que se entende o avanço das igrejas carismáticas (um fenômeno social comprovado através da sua crescente membresia nas comunidades mais carentes), cuja abordagem religiosa enfatiza os conteúdos que alcançam as necessidades emocionais e materiais imediatas. 

É considerável o crescimento do número de cristãos evangélicos no sul global (América Latina, África, Ásia e Pacífico). 

Os protestantes já representam 10% ou mais da população latino-americana, pelo menos 50 milhões de pessoas. [...] dos protestantes latino-americanos, aproximadamente dois terços são pentecostais, um movimento que nessa região está ligado aos pobres, aos negros e aos que têm menos instrução.2

Por outro lado, nos países ricos e desenvolvidos, a mensagem do Evangelho vem tornando-se obsoleta. As pessoas, sem nenhum escrúpulo, declaram não precisar de Deus, enquanto as igrejas lutam contra o nominalismo e contra a apatia espiritual.

Precisamos, portanto, observar acontecimentos, tendências e pressupostos do mundo pós-moderno para discernir o desencadear da ação mundial de Deus, apesar da rejeição e do descrédito das pessoas – “[...] quando o Filho do homem vier, encontrará fé na terra?” (Lc 18.8).

A ação de Deus, entretanto, não se limita às nações ricas ou pobres, aos povos receptivos ou resistentes ao Evangelho. “Quem não te temerá, ó Rei das nações?” (Jr 10.7). Deus é livre para agir em todo o mundo. Jesus afirmou: “O campo é o mundo”. Procuremos então ver as nações como campos prontos para a colheita na tarefa missional da Igreja.

A ordem de Cristo à Igreja é esta: “Levantai os olhos e vede os campos já prontos para a colheita” (Jo 4.35, Almeida século 21). Vivemos um tempo de grandes transformações mundiais e de grandes colheitas missionárias.

Oremos por cada pastor, cada líder na Igreja brasileira e cada missionário, para que sigam o exemplo do grande missionário do primeiro século, o apóstolo Paulo, e possam dizer como ele: “Sempre fiz questão de pregar o evangelho onde Cristo ainda não era conhecido, de forma que não estivesse edificando sobre alicerce de outro” (Rm 15.20). 

Paulo tinha os olhos abertos para ver os desafios das nações, mas sua maior atenção estava naqueles que nunca ouviram o Evangelho; ele tinha visão e prontidão para ir aonde Cristo ainda não fora anunciado. 

Intercedamos, portanto, para fazer cumprida a palavra profética: “Hão de vê-lo aqueles que não tinham ouvido falar dele, e o entenderão aqueles que não o haviam escutado” (Rm 15.21).

Evangelizemos o mundo em nossa geração: “E este evangelho do reino será pregado em todo o mundo como testemunho a todas as nações, e então virá o fim” (Mt 24.14). A responsabilidade é nossa!

Para tanto, enfatizamos nossa necessidade de orar

[...] O empreendimento missionário avança por meio da oração. A finalidade principal de Deus é glorificar-se. Ele fará isso no triunfo soberano do seu propósito missionário de que as nações o adorem. Ele garantirá esse triunfo entrando na batalha e tornando-se o principal combatente.3

Líderes cristãos, ao redor do mundo, reconhecem a necessidade de intercessão para a conquista de povos para Cristo. O Relatório Lausanne III (2010) indicou os seguintes objetivos comuns no âmbito da oração e missões:

Estabelecer oração 24 horas por dia, todos os dias, em todos os segmentos de pessoas alcançadas pelo evangelho; orações por todos os pastores e missionários individual-mente, pelo nome; orar para que pastores transformem suas igrejas em casas de oração pelas nações; orar para que cada igreja e ministério entre em uma parceria e esforço cooperativo com outra parte do Corpo de Cristo.4

Quem está atento às promessas de Deus reveladas em sua Palavra compreende sua ação na história mundial, de modo que promove o estabelecimento do seu reino. Cumprir a tarefa de intercessor é pedir o que Jesus nos mandou pedir: “Venha o teu reino!” Um antigo provérbio judeu diz: “Aquele cujas orações não mencionam o reino de Deus não está orando.”5 

Como cristãos, mais do que qualquer judeu que anseia pelo seu Messias, aguardamos com firme convicção a vinda do reino eterno. Tudo o que empreendermos em missões deve estar na expectativa da concreta, plena e definitiva vinda do reino. 

Façamos de todas as nossas orações uma invocação para a vinda do reino do nosso Senhor Jesus Cristo. Os indicadores de oração, que vamos expor a seguir, apontam este alvo: a vinda do reino de Deus entre todos os povos!

Notas
1 SCHALLER, Cathy. Learning to stand in the council of the Lord. Dawn Ministries, 1992.
2 Paul Freston, “A maré evangélica”, em Revista Ultimato (ed. 302, setembro/outubro 2006), p. 24-29.
3 PIPER, John. Alegrem-se os povos. São Paulo: Cultura Cristã, 2001, p. 61.
4 ESHLEMAN, Paul. A evangelização mundial no século 21: priorizando os elementos essenciais da Grande Comissão. Relatório Lausanne III, 2010, p. 14.
5 STOTT, John R. “A responsabilidade dos jovens pela evangelização do mundo”, em: Missões Transculturais – uma perspectiva histórica. São Paulo: Mundo Cristão, 1987, p. 326.

Fonte: http://www.ultimato.com.br/conteudo/como-orar-nos-dias-atuais