.
A herança dos pais é o exemplo que deixam
- João Pereira Coutinho
Amigos que tem filhas vivem o drama dos pais-helicóptero.
Elas crescem,
namoram, casam. Mas o instinto do pai-macho é sempre o de proteger a
filha-fêmea das garras de outros machos. Não
os critico. Entendo. Primeiro, eles projetam nos outros o que eles próprios,
enquanto homens, são ou foram para as mulheres. Nada como um homem para
conhecer outro homem. E depois, consigo imaginar-me no lugar deles.
Tenho um filho. Durante 24 horas
por dia, tenho que me controlar para não remover todas as pedras do seu
caminho. Se
tivesse uma filha, e se ela por hipótese sofresse às mãos de um homem, eu seria
obrigado a espancá-lo com requintes de malvadez.Só depois do serviço feito, e
já com a polícia no meu encalço, perguntaria ao moribundo: "a propósito, é
mesmo verdade que você magoou a minha filha?"
Sofia
Coppola conhece homens desses e resolveu filmá-los no seu "On the Rocks" (disponível
na Apple TV). Dizer que é um filme perfeito seria um eufemismo. Qualquer filme
com Bill Murray corre esse risco. Se juntarmos ao programa a atriz Rashida
Jones, o prato está feito. É
a história de Laura, escritora, casada, com duas filhas. O casamento é feliz,
ou parece feliz, mas já os antigos diziam: mãos ociosas são a oficina do diabo. Laura,
em bloqueio criativo, começa a desconfiar do marido. Quando partilha essas
suspeitas com o pai, ele avança como um cavaleiro medieval, disposto a salvar a
sua donzela. Como? Seguindo os passos do suspeito.
A
primeira hora de "On the Rocks" é
Bill Murray "vintage". O pai, debitando sabedoria sobre as relações
entre os sexos, parece um cavalheiro da velha escola: no porte, nos gestos, nos
gostos. E no cuidado com a filha, deplorando as alegadas infidelidades do
genro.
Mas
existe uma dissonância no comportamento do pai: aquilo que ele exige do genro
não é propriamente o que praticou e pratica. Como exigir fidelidade e monogamia
a alguém quando essas duas virtudes não foram praticadas lá em casa? E
até que ponto a hiperproteção do pai não é uma forma, ainda que inconsciente,
de iludir o seu próprio currículo perante a filha?
"On
the Rocks" é uma fábula moral, em tom ligeiro, sobre as responsabilidades
últimas dos pais perante os filhos. Entre
essas responsabilidades, não está a atitude insana de tratar os filhos como se
fossem propriedade nossa. Muito menos protegê-los do mundo e dos outros com
paranoia asfixiante.
A
grande responsabilidade é o exemplo que deixamos. O resto é com eles e com a
vida que lhes pertence.
Joe Biden
é o novo presidente dos Estados Unidos. Não é destino que se inveje.
A América está dividida entre dois mundos que parecem irreconciliáveis. A
pandemia não acabou, nem ameaça acabar tão cedo. E
Biden terá ainda que controlar a ala mais radical do Partido Democrata, que
encara a sua vitória como uma espécie de tomada da Bastilha.
Seja
como for, sempre gostei de Biden. Não por razões políticas, embora a sua
moderação seja estimável para uma alma conservadora como a minha. Por razões
pessoais. O caráter de um homem se mede perante a tragédia. E
quando nessa tragédia existe a morte de dois filhos, o pior dos castigos
terrenos, é impossível não ver em Biden um dos últimos estoicos da vida pública
americana.
Aliás,
nessas semanas de campanha, não me limitei aos discursos de Biden (fracos) ou
ao seu programa eleitoral (vago, demasiado vago). Também li as memórias que o
próprio escreveu ("Promise Me, Dad: A Year of Hope, Hardship, and
Purpose", Macmillan) sobre a morte do filho Beau, vitimado aos 46 anos por
um câncer no cérebro. Melhor
dizendo: o livro não é apenas sobre o filho. É um relato sobre os 12 meses que
mediaram entre o diagnóstico e a morte de Beau, período em que
Biden foi obrigado a equilibrar a tragédia pessoal com a vice-presidência da
administração Obama.
Não
vou resumir aqui a experiência, porque ela é, em vários sentidos da palavra,
intransmissível. Digo apenas que, lendo o calvário do católico Joe, entendi
melhor o que Hemingway designava por "grace under pressure".
Sim,
é uma forma de coragem, mas é mais que isso: é atravessar o inferno e conseguir
sair vivo do outro lado. Respeito isso.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2020/11/on-the-rocks-e-uma-fabula-sobre-as-responsabilidades-dos-pais-perante-os-filhos.shtml