Eu era cego, mas agora vejo
- Ricardo Barbosa de Sousa
Segundo Garber, John Newton, mesmo depois de sua conversão, continuou trabalhando como capitão de navio por vários anos, transportando escravos e, ironicamente, conduzindo estudos bíblicos com sua tripulação no deque do navio. Ao que parece, ele era incapaz de conectar sua fé com seu trabalho. Ele só deixou o trabalho de capitão de navio escravo cinco anos após a sua primeira experiência de conversão. Somente trinta anos depois fez sua primeira declaração pública de arrependimento. Ele disse: “Será sempre um assunto de reflexão humilhante para mim lembrar que eu já fui um instrumento ativo em um negócio sobre o qual meu coração hoje treme”. Estes detalhes de sua biografia não mudam a grande contribuição dele para a abolição da escravidão nem, de modo particular, o maravilhoso testemunho pessoal que cantamos no hino Amazing Grace.
O que me chama a atenção neste relato é a mesma dificuldade que encontramos de conectar nossa fé com as demais realidades do dia a dia e viver de forma coerente. Separamos o domingo do resto da semana, o secular do religioso, o espiritual do mundano. A herança grega do dualismo é mais presente entre nós do que imaginamos. Alguns cristãos chegam a dizer que a religião nada tem a ver com o “mercado”, que os princípios que regem a fé não valem para os negócios.
O comportamento de John Newton não é diferente do nosso. Integrar a fé com todas as dimensões da vida não é natural para nenhum cristão. É mais fácil e seguro viver a fé num ambiente onde nos sentimos confortáveis. A igreja ou a família nos proporcionam um ambiente favorável para viver a fé. Porém, quando deixamos este espaço seguro e entramos no ambiente do trabalho, onde a fé não é compreendida e nossos valores são questionados, recolhemo-nos e, muitas vezes, agimos de forma incoerente.
Escrevo este artigo a pouco menos de duas semanas para o primeiro turno das eleições. Impressiona-me como a fé e o chamado para sermos discípulos de Cristo pouco ou nada têm a ver com as nossas escolhas políticas. A identidade de muitos é determinada em primeiro lugar por sua opção ideológica, e não por sua fé. Salomão, em sua oração de consagração do templo, termina dizendo: “Seja perfeito [íntegro] o vosso coração para com o Senhor, nosso Deus, para andardes nos seus estatutos e guardardes os seus mandamentos, como hoje o fazeis” (1Rs 8.61). O povo de Deus é chamado para ter um coração inteiro, não dividido.
Como Newton, demoramos para compreender a graça maravilhosa de Deus. Éramos cegos, mas ainda vemos muito pouco como aquele cego que Jesus curou e, num primeiro momento, via homens como se fossem árvores. Desejamos ser íntegros, mas ainda lutamos com nossas ambiguidades. A graça que John Newton experimentou atuou em toda a sua vida e, por fim, ele pôde dizer com toda a clareza: “Eu era cego e agora vejo”.