September 19, 2022

A sarça ardente

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- pr. Ronaldo Perrini

Na minha vida me deparei com pessoas que possuem um senso tão aguçado de perfeição que não conseguem se alegrar com nada. O parâmetro que elas se impõem é inatingível. Outras acreditam que podem mudar ou modificar o que está à sua volta usando apenas o rigor da disciplina. Mas geralmente esse é um processo que carrega em si certa dose de violência, consigo e com os outros.

É verdade que muitas coisas não podem continuar como estão. Por isso a Bíblia nos propõe a fé como caminho de transformação. Transformar é uma atuação essencialmente mais suave e sem violência. Jesus nos propõe uma espiritualidade de transformação.

O primeiro passo da transformação é reconhecer meus pecados, minhas debilidades, meus conflitos, meus problemas. Foi aceitando suas fraquezas que os personagens bíblicos atravessaram suas crises e viram nelas uma oportunidade de Deus despertar neles uma nova e verdadeira pessoa.

Para Anselm Grün, “transformação é um conceito chave de uma espiritualidade que não deseja eliminar todas as falhas e fraquezas que há em nós, mas reconhece que tudo tem um sentido e Deus pode transformar tudo para que sua luz brilhe mais em nós e através de nós”.

Nossa espiritualidade sempre foi dominada por características masculinas, ligadas à necessidade de reprimir, dominar, afastar, controlar. Ela sempre foi baseada na vontade própria, no esforço e gerou violência contra si e contra os outros ou hipocrisia. Porém, nossa espiritualidade deveria ter características mais femininas. Abrir o espaço necessário para a transformação.

Quando estabeleço um diálogo com minhas paixões, fraquezas, doenças, conflitos e até meus pecados, eles podem ser transformados em algo valioso em mim, como a mulher que achou a dracma no lixo varrido de casa. Há um conto alemão onde um rei guardou seus tesouros na torre do seu castelo, e lá colocou cães ferozes para guardá-los. Certo dia, ao hospedar um viajante, colocou-o para dormir na torre, certo de que os cães ferozes guardariam seus tesouros. Como não conseguia dormir, o viajante estabeleceu um contato com os cães, aprendem sua linguagem, e estes lhe revelaram o lugar do tesouro escondido. Dai nasceu um ditado popular que diz: “onde os cães ladram está seu maior tesouro”.

Se quisermos ter experiências espirituais profundas e verdadeiras precisamos nos familiarizar com nossas paixões, fraquezas e debilidades. A Bíblia está cheia de exemplos de transformação daquilo que é vil em algo capaz de manifestar a glória e a presença de Deus no meio dos homens. Um desses exemplos é a Sarça Ardente. A sarça não tem valor algum. É um arbusto seco e imprestável, cheio de espinhos e usado apenas para a fogueira. Se comparada a nós a sarça representa tudo aquilo que em nós está árido, vazio, que foi deixado à margem e foi desprezado; tudo o que em nós não deu certo e se tornou lastimável.

Moisés viu a sarça se queimar sem se consumir e contemplou nesse fato a presença de Deus. Um dia, Moisés, tomado pela fúria, matou um egípcio e o escondeu na areia. Bastou o primeiro vento forte e o resultado de sua ira estava lá, exposto para quem quisesse ver. Nós também, agindo pela nossa própria força e fúria, somos impelidos, pela ilusão que podemos controlar tudo, a esconder as consequências de nossas atitudes na areia. Mas isso só é possível até a primeira ventania. Por causa do homicídio que cometeu, Moisés teve de fugir do Egito.

Ele tentou resolver a injustiça contra os hebreus de sua maneira e acabou se tornando um fugitivo numa terra estrangeira. Sua vida se tornou tão árida como aquele deserto em que vivia. Ele pôde se ver naquela sarça. Ele próprio estava à margem do deserto. Tornou-se inútil, desprezado, sem valor. Sua ocupação era cuidar do rebanho do sogro. Seu sentimento foi expresso no nome de seu único filho: Gerson, hóspede no deserto.

A sarça representa a experiência de muitas pessoas que possuem a impressão de sua vida foi um fracasso. Deixaram escapar muitas oportunidades; não viveram o que gostariam de ter vivido; abriram mão de seus sonhos; E agora se sentem desprezados, cansados, inúteis, como a sarça de espinhos. Sentem que para eles não há outra chance. Outros sentem que não estão vivendo suas próprias vidas. Sentem-se condenados a viverem a expectativa dos outros e a realizar o sonho de outros. Não passam de hóspede no deserto cuidando do rebanho de outro.

Chama-me a atenção justamente essa sarça de espinhos onde Deus se manifestou a Moisés. Deus se manifestou como um fogo no meio da sarça, mas não a consumiu. Justamente o que é vazio, aquilo que fracassou em mim, aquilo que foi deixado de lado e desprezado, o que foi ferido e machucado, Deus transforma em lugar de sua presença. Olhar para a imagem da sarça ardendo pode nos encher de fé porque nos revela que Deus pode transformar nossa fraqueza em um lugar onde seu poder se aperfeiçoa; Deus pode transformar em nós o que é vil e desprezível em lugar de honra.

Se há um lugar que Deus habita em mim, esse lugar é o vazio, o deserto que há em mim. Nesse deserto, Deus não divide sua glória com a minha soberba. Quando consigo olhar para a minha vida com esses olhos, vejo que tudo tem seu próprio sentido. Minhas crises, meus fracassos, tudo o que em mim está paralisado, tudo o que está enfermo, pode ser transformado por Deus. É justamente ai que Deus quer se manifestar em minha vida.

Por isso, diante da sarça que existe em mim eu preciso tirar as sandálias. Para olhar para a minha sarça e ver nela a manifestação de Deus eu preciso tocar com meus pés o húmus da terra. Eu preciso de humildade. A soberba impede muitos de ver Deus na sarça que está em seu coração, pois jamais olham para a sua fraqueza. Descalçar as sandálias pode ainda representar despir-se simbolicamente. Indica que ali, em solo sagrado, diante de Deus que se manifesta em nossa fraqueza, posso assumir minha nudez. Posso me desfazer de meus trapos de justiça.

Outra coisa que a sarça ardente me ensina é que mesmo Deus se manifestando em mim, através de minhas fraquezas, eu vou continuar humano. Essas fraquezas não vão desaparecer num passe de mágica. Minha vida não será transformada da noite para o dia, vou continuar sendo fraco e cheio de limites. Não vou encontrar sentido para muitas coisas na minha vida. A sarça continuou a ser uma sarça, mas se transformou também em um lugar onde Deus se manifesta.

Olhar para a nossa sarça ardente pode nos libertar do medo de que nossa vida tenha fracassado e que tudo esteja perdido. Olhar para a nossa sarça ardente nos permite crer que Deus atua em nós, silenciosamente, para tudo transformar, a fim de que tudo em nós anuncie a sua glória, até aquilo que inclusive é fraco e desprezível.

Olhar para a nossa sarça nos livra da paranóia de condicionar a presença de Deus com a nossa perfeição. Sua presença se manifestará em nós não quando formos perfeitos, mas quando, mesmo dilacerados e vazios, fracos e derrotados, nos entregarmos a Ele. Quando tirarmos nossas sandálias e com os pés no húmus da terra, humildemente aceitarmos nossa humanidade, então nosso vazio se encherá de sua presença e nossa angustia se transformará em paz.

Misteriosamente, da sarça ardente, Deus chamou Moisés para ser o libertador de Israel. Ele, que em outra oportunidade fracassou em libertar Israel, justamente agora, que assumiu a sua fraqueza, vai realizar o que sua própria força não conseguiu. E o Moisés furioso, voluntarioso, cheio de ira? Foi transformado no homem mais manso da terra.

Que Deus nos dê a graça de olhar para tudo o que é desprezado em nós e ver ali a manifestação de Deus em nossa vida.
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September 11, 2022

Abre os meus olhos, Senhor!

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Quero ver-te, Senhor, do outro lado da lama, do outro lado dos montões de lixo, do outro lado da fome, do outro lado das guerras, do outro lado do sofrimento, do outro lado da doença, do outro lado da morte.
Quero ver-te como tu és e não como os outros dizem que és.
Quero ver-te na imensidão e na ordem do universo, na mais distante galáxia e na mais próxima estrela. Quero ver-te na cachoeira, na gruta, na floresta, no deserto, na praia, nas alturas dos montes e nas profundezas dos mares, na desembocadura dos rios, nas campinas e nos vales.
Quero ver-te no amanhecer e no entardecer, ao meio-dia e à meia-noite, no vento, na chuva, nos relâmpagos, no trovão.
Quero ver-te no botão de rosa, no ipê-amarelo, no girassol, no jardim, no pomar, na horta, nos bosques, na grama, nos pastos e no matagal.
Quero ver-te no meu corpo, na parte de fora e na parte de dentro, no mais visível e no mais escondido, no mais simples e no mais complexo. Quero ver-te na biologia, no DNA, nas células-tronco, na substância ainda informe, no crescimento, na reprodução e no envelhecimento.
Quero ver-te nos mistérios da vida, nos mistérios da mente, nos mistérios do amor, nos mistérios da alma, nos mistérios da criação.
Quero ver-te na vaga lembrança, na saudade, na sede, na fome e no temor que eu tenho de ti, no desassossego de minha alma enquanto ela não repousa em ti.
Senhor, abre os meus olhos, pois quero ver a lama, os montões de lixo, a fome, as guerras, o sofrimento, a doença e a morte sob outra perspectiva, sob a perspectiva cristã.
Abre os meus olhos para eu ver o que está acima das nuvens mais baixas.
Abre os meus olhos para eu ver o Senhor assentado num trono alto e exaltado.
Abre os meus olhos para eu ver os céus abertos e o Filho do homem em pé, à direita de Deus.
Abre os meus olhos para eu ver o Cordeiro — que parecia ter estado morto — em pé, no centro do trono, pronto para abrir o livro fechado por dentro e por fora e dar prosseguimento à história.
Abre os meus olhos para eu ver a destruição, a morte e o enterro da morte.
Abre os meus olhos para eu ver a transformação dos vivos e a ressurreição dos mortos.
Abre os meus olhos para eu ver novos céus e nova terra, onde habita a tão procurada justiça.
Abre os meus olhos para eu ver a plenitude da salvação!
Amém.

Fonte: https://ultimato.com.br/sites/elbencesar/2021/02/05/abre-os-meus-olhos-senhor/
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