Estamos todos cegos?
Data: Tue, 25 Oct 2005
Chérie, bonjour!
Estou correndo muito, mas muito mesmo. Ontem terminei uns jobs ref. final de ano, hoje preciso apresentar um planejamento de ações para 2006 e até quinta preciso finalizar um relatório de pós-venda (ninguém merece) rs! Hoje à noite tenho reunião de conselho consultivo (aliás, vc foi assistir Doutores da Alegria? Não perca!) - amanhã "teoricamente" tenho 2 compromissos e na quinta faço a mala porque sim, na sexta estou em Salvador para cobrir a última prova do circuito (ufa, só de escrever fiquei cansada).
Mesmo nesta correria, sempre lembro de vc em minhas orações. Espero que esteja tudo bem contigo (principalmente a parte espiritual).
Como vc já deve ter percebido, tenho refletido sobre cegueira (até que ponto estamos de fato cegos). Mexendo em meus arquivos, achei um artigo sobre o excelente livro Diante da Dor dos Outros (Susan Sontag) lançado na época do atentado de 11 de setembro. Para mim foi um chacoalhão porque fala do sofrimento alheio (principalmente de guerras, atrocidades etc). Interessante notar que o tema é muito atual pois vivemos no meio de tanta miséria social além de presenciar tantas catásfrofes pelo mundo afora...
O livro alerta que muitas vezes não nos compadecemos com a dor dos outros, somos meros espectadores ao invés de agentes. A autora ressalta que até mesmo ouvintes precisamos ser críticos conosco mesmos para ver até que ponto não temos nada com aquilo (por exemplo, um país rico tem sua responsabilidade social, não pode cruzar os braços e fingir que aquilo não lhe diz respeito). Por se tratar de uma literatura do mundo, fico triste ao perceber que os não-cristãos parecem mais preocupados com a compaixão do que os que se dizem cristãos. Isto me lembrou a parábola do bom samaritano: o sacerdote passou e não fez nada, o levita passou e tb se fingiu de morto, passou o samaritano e se condoeu da dor do outro.
Talvez vc me diga: - mas não posso fazer nada... E eu pergunto: - será que não pode mesmo? Porque Deus tem dado a cada um de nós talentos, dons... que tornam cada filho como se fosse único! Estas habilidades que só vc pode desempenhar não são para uso egoísta e sim para abençoar a comunidade. E lembre-se: todos nós um dia iremos prestar contas ao Pai de como usamos o que Ele nos "emprestou"!
Chérie, concordo que a gente sozinho não muda o mundo, mas será que no seu jardim, no seu canteiro, vc não pode fazer a diferença? Preste atenção nas pessoas que te cercam, comece pelas mais próximas, quem sabe alguém da sua família... Porque mais do que mil coisas para fazer, o que o Pai quer é que façamos diferença em nossos relacionamentos (falou a ativista de plantão aqui) rs!
Se estiver difícil para vc enxergar, talvez a pessoa com quem vc tenha de ser gentil neste momento é com vc mesmo. Se este for o caso, deixe-se envolver pelo amor do Pai, permita-se ser acolhido em Seu colo como uma criança que acabou de mamar, aquiete o seu coração. Sei que no tempo certo, vc vai poder acolher os outros e que, assim como um ramo ligado a uma planta forte que é nosso próprio Senhor Jesus, no tempo certo vc dará frutos! Esta é a minha oração.
Amanhã a gente continua nosso papo (joke)!
Beijão e força aí,
KT
O Estado de S. Paulo, Caderno 2, domingo, 7 de setembro de 2004.
Até que ponto nós conseguimos nos distanciar do sofrimento alheio, delimitar uma fronteira entre aquele que sofre com a violência da guerra - em todos os seus aspectos, o que inclui não apenas a dor física, mas também a tortura psicológica, a manipulação política e a falta de perspectivas reais - é uma questão complexa, que sempre volta à tona em momentos de tensão política, como a que estamos assistindo em vários pontos do globo.
A dor é uma coisa, a imagem e o discurso sobre ela é outra, pois essa reflexão envolve uma série de embates filosóficos e estéticos com os quais devemos lidar com cautela, num terreno minado como o da guerra. E é exatamente nesse terreno perigoso que a intelectual americana Susan Sontag aventura-se na obra Diante da Dor dos Outros (112 págs., R$ 24), que a Companhia das Letras está lançando no Brasil. Trata-se de uma obra ensaística, na qual a artista usa seu conhecimento enciclopédico e seu olhar ferino para derrubar mitos e debater questões importantes no atual cenário político e cultural.
Ela passeia por temas candentes como a manipulação política, o racismo, a crítica moral, o fetichismo e outros aspectos candentes da humanidade, evitando teses ou conclusões definitivas. No entanto, mais do que uma reflexão coesa e amadurecida sobre a questão, o texto parece amplo demais e muitas vezes contraditório.
Em alguns momentos ela prega um maior engajamento social e coletivo: "A compaixão é uma emoção instável. Ela precisa ser traduzida em ação, do contrário definha." Em outros nega a existência de uma memória social, inviabilizando assim a possibilidade de ação política. "Toda memória é individual, irreproduzível - morre com a pessoa. O que se chama de memória coletiva não é uma rememoração, mas algo estipulado: isto é importante, e esta é a história de como aconteceu, com as fotos que aprisionam a história em nossa mente."
Em vários momentos a humanidade é colocada no banco dos réus - "Ninguém, após certa idade, tem direito a esse tipo de inocência, de superficialidade, a esse grau de ignorância ou amnésia", escreve. Mas quando perguntada sobre quais conseqüências sobre o futuro seria possível tirar a partir de seu ensaio, a autora recusa-se a responder. A falta de perspectiva de sua reflexão revela sua impotência para vislumbrar alternativas para além do jogo de forças absolutamente desigual, que transformou o decadente império americano em xerife do mundo.
Um dos pontos mais precisos e desafiadores do texto refere-se à idéia de que a imagem fotográfica é um registro fidedigno da realidade. Sontag mostra, por meio de uma série de exemplos e histórias terríveis, que há uma boa dose de interpretação, de significado, atribuído propositalmente ou por razões históricas às fotos. Em tempos de guerra (e também de paz), qualquer imagem é manipulada. Ela lembra que sérvios e croatas usaram as mesmas imagens de crianças mortas num bombardeio.
A discussão acerca do caráter ambíguo da fotografia é fascinante. "Na fotografia de atrocidades, as pessoas querem o peso do testemunho sem a nódoa do talento artístico, tido como equivalente à insinceridade ou à mera trapaça." A imagem pouco precisa do amador é, nesses casos, mais valorizada do que o trabalho dos repórteres de guerra. Sontag lembra, por exemplo, como é decepcionante para o espectador descobrir que há possibilidade de a foto do combatente republicano feita por Robert Capa na Guerra Civil espanhola não registrar realmente o momento da morte, mas ser uma farsa. Moralmente, o fotógrafo não pode realizar uma síntese, compor um discurso como faz Goya em suas terríveis imagens da guerra. "Queremos que o fotógrafo seja um espião na casa do amor e da morte e que as pessoas fotografadas não estejam conscientes da câmera", escreve.
No fundo, o que está em questão é a idéia de consciência moral. Neste momento, em que a guerra se torna cada vez mais abstrata, tecnológica, em que a mídia está presente em todos os momentos do conflito e as imagens são usadas como arma de mobilização e convencimento, em que podemos constatar em tempo quase real, se assim o quisermos, como são tratadas de maneira desigual a nossa imagem e a imagem do inimigo (Sontag constata, por exemplo, que o rosto dos americanos nunca é mostrado; já o dos africanos famintos de Biafra são escancarados em grandes closes, estes sim imorais), é importante que tenhamos consciência não apenas da manipulação permanente, mas também que isso sirva de ponto de partida e não de chegada.
- por Maria Hirszman
0 Comments:
Post a Comment
Note: Only a member of this blog may post a comment.
<< Home