Adorando a Deus no Deserto
(Natal, 2002) Uma História Natalina Verdadeira
- por Débora Kornfield
O telefonema de Dr. B me acordou de um sonho em que ainda preparava as coisas para o natal: decorando, cozinhando, forrando as camas dos meus dois filhos que logo chegariam dos EUA para passar as férias conosco em São Paulo. Reparei o tom de voz do médico antes de registrar o significado das palavras: "Não posso deixar a Karis viajar. Acho que ela não sobreviveria o vôo. Desidratará . . . a Barbara e eu queremos oferecer-lhe o nosso lar para passar as férias . . ."
"Como assim . . . espere . . . não é possível! A Karis está contando as horas até chegar em casa! Deverá pegar vôo amanhã!"
"Lamento, mas seria arriscado demais. E também não seria justo para pedir que a linha aérea lide com isso."
Era a noite de sexta-feira, dia 20 de dezembro. A Karis deveria viajar de ônibus até Chicago na próxima manhã para pegar o seu vôo, chegando em São Paulo domingo de manhã. Nessa semana, ela esteve internada, tomando soro, porque não conseguia manter-se hidratada. Havia perdido o seu cateter central devido a uma infecção, então o acesso venoso era através de veias periféricas.
Após ligar para a Karis e ouvi-la dizer "Não! Não posso perder o natal com a família! Estou morrendo de saudade!" a única idéia que tive era ligar para o seu médico em São Paulo para saber o que ele sugeriria.
"Isso é fácil," disse-me Dr. G. "Deixe-a viajar tomando soro. Peça-lhes que insiram duas linhas periféricas, para que se perder uma, ainda terá a outra. Quando ela chegar, leve-a direto do aeroporto para o hospital e eu os encontrarei lá."
A próxima manhã, liguei para Dr. B e passei-lhe a sugestão de Dr. G. "Tudo bem, tentaremos" resolveu Dr. B. "Mas precisamos correr. Faltam apenas duas horas para a partida do ônibus. Ligue para a Karis e mande-lhe ir de pressa até o centro de saúde da universidade. Eu ligarei para lá para combinar as coisas com as enfermeiras."
A Karis nem havia arrumado a mala. Ela correu até o centro de saúde e duas enfermeiras começaram a procurar veias úteis. Minutos e mais minutos se passaram sem sucesso. A ansiedade foi aumentando. Finalmente, no mesmo instante, as duas enfermeiras exclamaram, "Consegui!!" Um guarda universitário levou a Karis de volta para o dormitório junto com as bolsas de soro. A Karis enfiou algumas coisas na mala e saiu correndo para o ponto do ônibus, gritando "Feliz Natal!" para os amigos.
Quando a encontramos no aeroporto mais ou menos vinte horas depois, a Karis estava animada e alegre. "Tudo correu perfeitamente!" exclamou. "Perdi a segunda veia enquanto aterrizamos. E vomitei no vôo apenas uma vez, quando tomei um pouco de suco. Veja, estou bem! Por favor, me levem para casa, não para o hospital."
A resposta era simples: NÃO. Após examiná-la e observar a luta de mais uma equipe de enfermeiras para pulsionar mais uma veia, Dr. G nos disse que ela precisaria de um cateter central com urgência. Ela precisava de nutrição, não apenas de hidratação, pois tudo o que comia gerava diarréia violenta. Dr. G ligou para um cirurgião e combinou a inserção de um cateter logo após o natal. No meio tempo, a Karis teria que ficar internada.
Chegando o horário de pouso do vôo do Daniel, David, Raquel _e Valéria voltaram ao aeroporto para buscá-lo e trouxeram ele também direto do aeroporto ao hospital. Não eram as boas-vindas que havíamos antecipado, mas pelo menos estávamos todos juntos.
Na manhã de segunda-feira, o cirurgião, Dr. A, entrou preocupado no quarto da Karis. "Karis precisa de um cateter de qualidade alta, pois ele precisará durar por muito tempo," disse-nos. "Mas não consigo achar nenhum. Parece que não existe nesta cidade um exemplar sequer do tipo de cateter que ela precisa. Já o procuramos em todos os hospitais e casas cirúrgicas. Agora mesmo a minha secretaria está ligando para os principais hospitais em outras cidades, mas não estou otimista. Se encomendarmos um cateter dos EUA, levará pelo menos um mês para chegar. Só posso pedir a ajuda de vocês. Por favor, liguem para os hospitais que conhecem nos EUA e peçam-lhes que coloquem um cateter no correio FedEx hoje. Se esperarmos até amanhã, a véspera de natal, só Deus sabe quando chegará em nossas mãos. Karis precisa deste cateter urgentemente."
O Daniel estava cochilando numa cadeira do lado da cama da irmã. Sentando numa cadeira do outro lado da cama, telefonei para Dr. B e expliquei-lhe a situação. Imaginei que seria fácil conseguir um cateter e colocá-lo no FedEx. Logo, porém, ele retornou a ligação com noticias desencorajadoras: o hospital onde a Karis esteve internada durante a semana anterior não lhes permitia vender um cateter para pacientes não-internados. Dr. B havia ligado também para as casas cirúrgicas da cidade, mas estavam todas fechadas para as ferias. Ele nos disse que continuaria tentando, mas que eu deveria ligar para qualquer outro lugar que pudesse.
Liguei, então, para os outros hospitais onde a Karis havia sido internada no percurso de sua vida--em Chicago, Detroit, Indianapolis--e recebi a mesma resposta de cada pessoa com quem conversei. Sim, tinham o cateter no estoque mas não, não podiam enviá-lo para nós. Política do hospital.
Frustrada, eu estava olhando para o telefone, tentando imaginar para quem mais poderia ligar, pedindo a Deus que nos ajudasse, quando o Daniel mexeu-se na cadeira e disse-me, "Ligue para a Tia Karen." "O quê? Porquê?" indaguei. "Peça a Tia Karen que nos ajude."
Não consegui imaginar o que estaria passando pela cabeça do meu filho. A minha irmã, Karen, é esposa de um pastor e mãe de quatro filhos pequenos--e faltavam apenas dois dias para o natal. Certamente ela estaria numa correria danada. Na insistência do Daniel, porém, liguei para a Karen. Disse-lhe que não sabia porquê estava lhe perturbando a não ser que intercedesse para que pudéssemos solucionar o nosso problema.
A Karen ficou quieta por um momento e depois disse, "Antes de levantar da cama hoje de manhã, percebi que seria impossível fazer tudo que precisava fazer hoje. Quando orei a respeito, Deus me disse que deveria preparar-me para deixar tudo isso de lado, pois ele tinha outro plano para mim hoje. Dê-me um tempo e lhes ligarei de volta."
Nada mais podia fazer a não ser orar, esperar e desfrutar do tempo com os meus filhos, que não havia visto por vários meses. O Daniel estava no seu ultimo ano de universidade, enfrentando a grande pergunta do que ele faria quando se formasse. A Karis cursava o segundo ano de faculdade.
Logo, o David chegou no hospital com as duas meninas caçulas: a Raquel, terminando o seu último ano de colegial, _e Valéria, terminando o ginásio. Fizemos do quarto hospitalar da Karis o local de nossa celebração familiar. Quantas vezes no decorrer da vida dela havíamos feito o mesmo . . .
Quando o telefone tocou, não era a Karen. Ouvi a voz de um estrangeiro, um cirurgião, ligando de um hospital na cidade de Filadélfia, querendo confirmar o tamanho e tipo do cateter desejado e a melhor forma de enviá-lo para nós. Havia um posto do FedEx na mesma rua do hospital, disse-me, e ele mesmo pretendia efetivar o envio, para evitar as burocracias do hospital. Calculava que, devido ao natal, seria razoável antecipar a chegada do cateter na quinta-feira, dia 26 de dezembro.
Aliviada e curiosa, tentei ligar para a Karen para descobrir o que havia acontecido--quem era esta pessoa?!--mas ela não se encontrava em casa. Avisei Dr. A e ele reservou uma sala de cirurgia para a manhã da sexta-feira, dia 27.
Mais tarde, a Karen ligou e nos contou a sua história. Ela havia ligado para cada hospital que conhecia em Nova Iorque e Nova Jersey, e a cada vez a resposta era a mesma que nós havíamos recebido. Esgotada a lista, pediu a direção de Deus. Lembrou-se que algumas semanas antes, ela e o seu marido haviam jantado com um casal da igreja, e conheceram um irmão visitando de Filadélfia, um cirurgião.
A Karen nem lembrava o nome do irmão médico, mas ligou para o casal da igreja, que passaram-lhe o telefone do irmão. A Karen explicou para ele a situação da Karis. (Quantas vezes, em quantas cidades, foi contada esta história naquele dia?!) O cirurgião respondeu, “É claro, temos vários destes cateteres estocados em um armário ao meu lado. Acho que ninguém se importará se eu enviar um deles para o Brasil, especialmente se eu mesmo o colocar no FedEx. Farei isso na hora do almoço.”
Como louvamos a Deus pela sua bondade!
Na terça-feira, Dr. G deu para a Karis permissão para passar a véspera do natal em casa. Os nossos filhos estavam preparando-se para dormir embaixo da árvore de natal, como era o costume deles, quando chegou a hora de iniciar a infusão da nutrição parenteral da Karis. Dentro de segundos, ela ficou pálida—não, absolutamente branca--e desmaiou. Paramos imediatamente a bombinha de infusão e enquanto os irmãos tentaram reavivá-la, liguei para Dr. G em casa. Dr. G disse para não dar-lhe a NPT. Logo a Karis ficou bem e passou uma noite gostosa conosco. A próxima manhã, porém, a linha periférica estourou e tivemos que levá-la de volta para o hospital. Só conseguiam colocar a nova linha no pé, eliminando a possibilidade de mais tempo em casa. Mas ficamos contentes pelas horas de prazer que ela pode passar conosco em casa.
Na quinta, o dia após o natal, fiquei em casa para aguardar a chegada do FedEx. Ao final da tarde, o caminhão se encostou em frente à nossa casa. Me entregaram, não apenas um pacote, mas dois! Um deles veio da Filadélfia, como esperávamos. Mas o outro portou o carimbo de South Bend, Indiana. (Depois, descobrimos que um senhor empregado por uma das casas cirúrgicas de South Bend que havia falado para Dr. B que já haviam se fechado para as férias, quando chegou em casa ficou pensando sobre a situação da Karis. Ele havia voltado para o depósito, pegado um cateter e colocado-o no FedEx, sem falar para ninguém.)
Então—lá estávamos com não só um, mas dois cateteres! A minha reação inicial era preocupação, pois os cateteres eram caros, e certamente o nosso convênio não pagaria mais do que um. Mas alívio e gratidão—e curiosidade—eram as emoções mais fortes. Liguei para o consultório de Dr. A para confirmar a cirurgia agendada para a manhã seguinte.
Na manhã de sexta-feira, Dr. A entrou no quarto da Karis novamente preocupado. Ele nos contou que um rapaz de 17 anos, chamado Cristian, perfeitamente saudável até que o intestino dele torceu-se (cortando o fluxo de sangue e deixando o intestino morto), precisava do mesmo tipo de cateter da Karis. Ele também precisaria de nutrição parenteral a longo prazo. Mas como todos sabíamos, nenhum desses cateteres estava disponível no Brasil . . .
Sem comentário, coloquei nas mãos de Dr. A os dois pacotes entregues pelo FedEx. Por um instante, ele ficou perplexo; de repente os olhos encheram-se de lágrimas. Antes de prosseguir com a cirurgia da Karis, ele já agendou o mesmo procedimento para o Cristian.
O nosso convênio pagou pelo cateter de South Bend e o cirurgião em Filadélfia não nos cobrou nada pelo cateter que ele nos enviou. Portanto, o cateter do Cristian não lhe custou nada; era um presente de natal que lhe veio direto do céu. A comunidade dele já estava levantando recursos para pagar a nutrição parenteral dele, pois a família estava sem convénio.
As últimas notícias que recebemos a respeito de Cristian eram positivas: ele estava recuperando-se, nutrido através do seu cateter natalino.
“Deus é capaz de fazer infinitamente além de
tudo que pedimos ou imaginamos . . .”
(Efésios 3.20).