November 21, 2006

Uma história de amor

Annie Leibovitz e a vingança dos anônimos
Annie Leibovitz e a vingança dos anônimos

Na semana passada eu soube que tinha chegado ao Brasil o livro de Annie Leibovitz, A Photographer´s Life (1990-2005). Claro que fui correndo à Livraria Cultura comprar o meu exemplar. Para quem não sabe (e, se trabalha em propaganda, deveria saber), Annie talvez seja a fotógrafa mais famosa do mundo e, com certeza, a mais bem paga. Aos 19 anos ela fotografou Allen Ginsberg fumando maconha em uma passeata de protesto contra a guerra do Vietnã. A imagem virou capa da revista Rolling Stone. Aos 24, já era chefe da mesma publicação e, aos 25, estava no helicóptero no dia que o presidente americano Richard Nixon teve de abandonar a Casa Branca.

Das cinco capas de revistas escolhidas como as melhores, nos últimos 40 anos, pela Sociedade Americana de Editores de Revista, quatro são dela: John Lennon, nu, em posição fetal abraçado a Yoko Ono, em um flagrante tirado poucas horas antes de o ex-Beatle ser assassinado, Demi Moore grávida (Vanity Fair, 1991), Muhammad Ali espetado por inúmeras setas como um São Sebastião negro (Esquire, 1968) e Andy Warhol sendo tragado por um redemoinho de sopa de tomate dentro de uma lata de Campbell´s (Esquire, 1969).

O que mais encanta nesse livro é que ele é um grande romance feito com imagens, e não palavras. E, como todo grande romance, conta uma história de amor. O livro percorre os anos de 1990 a 2005, período em que Annie dividiu sua vida com Susan Sontag, escritora e intelectual americana. Esse trabalho é dedicado a ela. Uma das últimas fotos é um retrato tirado do duplex da fotógrafa em Manhattan revelando do outro lado da rua o apartamento de Susan, agora com as luzes apagadas, pois ela acabara de falecer.

São centenas de imagens que contam as viagens que fizeram juntas, a felicidade por terem comprado um apartamentozinho construído em 1640 à beira do Senna, em Paris, a gravidez de Annie que deu à luz a primeira filha por fertilização artificial quando tinha mais de 50 anos, e muitas outras fotos. No entanto, como a vida não é feita só de bons momentos, existe um drama que aos poucos vai se revelando no sorriso triste de Susan Sontag, nos seus cabelos que vão ficando cada vez mais curtos, na doença que a leva à UTI e finalmente à morte. Tudo isso é contado com delicadeza, mas também com coragem pela câmera fotográfica.

Como a própria autora explica na abertura, a sua vida profissional e a pessoal são uma só, não existe uma divisão entre elas. Por isso, o livro apresenta fotos de celebridades e da sua família. E são justamente essas pessoas desconhecidas, chamadas de Sarah, Susan, Samuelle, Marilyn, Samuel, Bárbara, Philip, Lucille, que reforçam a emoção e a beleza desse trabalho. Ao lado de personalidades como Brad Pitt, George Bush, Bill e Hillary Clinton, Michael Jordan, Mick Jagger, Barysnikov, Bill Gates e Nelson Mandela, os anônimos não fazem feio. É impressionante a figura forte e segura de Marilyn, mãe de Annie, casada com Samuel Leibovitz, judeu e ex-piloto da força aérea americana. Uma mulher de rosto duro, lábios grossos e que na foto tirada em Clifton Point, em 1997, parece uma personagem saída de um filme de Vittorio De Sica, em uma autêntica cena de neo-realismo italiano. Aos 75 anos, ela é vista na praia tomando banho de mar com a irmã, posando de maiô na cozinha da casa na Flórida, participando de uma cerimônia religiosa em uma sinagoga ao lado do homem com quem viveu por 60 anos, abraçada a ele na noite em que ele morreu e agarrada aos filhos no dia seguinte.

O livro é uma seqüência de nascimentos, amores e mortes que registra o ciclo da vida. Um romance mudo, mas extremamente eloqüente, feito de luzes e sombras, que mostra a crueza da morte da sua companheira, o falecimento do pai apenas 35 dias depois, mas também o nascimento das filhas gêmeas no mês seguinte. São histórias tristes, histórias alegres, histórias que retratam o amor de diferentes formas, seja na figura de Susan, na família reunida na casa de praia, nas viagens, na vida a dois ou na vida juntos de muitos irmãos, tias, primas, do pai e da mãe. Nesses tempos politicamente corretos, em que poucos ainda acreditam que as regras foram feitas para serem quebradas, o livro de Annie Leibovitz é um sopro de ar fresco na paisagem e uma lição de vida. Raríssimas pessoas que trabalham em propaganda conseguem contar uma história com tanto talento e força como ela.

E não deixa de ser uma ironia descobrir que quem passou a vida inteira fazendo retratos de celebridades agora publique um livro no qual as pessoas famosas parecem se comportar como simples espectadores diante do dia-a-dia feito de risos, choros, beijos, afagos, banhos de mar, festas de criança, fins de semana preguiçosos, e no qual vários personagens são gordos, outros desengonçados, alguns feios, mas todos são de carne e osso. Exatamente como eu e você.

- Ruy Lindenberg

Fonte: Meio e Mensagem, Ano XXVIII, no. 1.235, 20/11/06, pág. 10.
.

0 Comments:

Post a Comment

Note: Only a member of this blog may post a comment.

<< Home