August 06, 2012

Volte a fazer as mesmas coisas

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Lucas 24.13-35

Neste trecho de Lucas, encontramos Jesus em um ato sinalizador de uma realidade eterna. É Deus vindo ao encontro do homem frustrado em seu caminho, desanimado e sem esperança alguma quanto ao futuro. Esta é a história registrada nas Escrituras e esta é a experiência, consciente ou não, de todo ser humano que encontra e é encontrado por Deus.

Também, este texto é uma expressão sincera da falta de significado e uma declaração comovente do desânimo decorrente das frustrações. Ele fala de gente para quem a vida perdeu o sabor, para quem não há esperança, para quem já tentou e não conseguiu e não acredita mais ser possível. E gente que não aceita o caminho do cinismo, mas que sofre com sua situação de letargia existencial.

Porque o texto fala de gente que perdeu o projeto de uma vida, gente que investiu tempo, dinheiro, saúde, criatividade, gente que sonhou, planejou, profetizou e nada aconteceu. Gente para quem o projeto da vida acabou e a vitalidade foi embora também. O mestre morreu e para aqueles homens o projeto de suas vidas morreu.

Gente pra quem os elementos da fé não surtiram resultados, gente que acreditou que se obedecesse aos mandamentos tudo lhe iria bem. Gente que acreditou que a leitura da Bíblia e a oração, feitas diariamente, lhe seriam certeza de sucesso pessoal. Gente que ofertou crendo que lhe seria dado em dobro. Gente que fez tudo como reza a religião e que não encontrou o que esperava. Eles creram que o mestre iria libertar politicamente o povo de Israel, mas ele morreu.

Enfim, de gente que perdeu. Perdeu! Perdeu! É o que diz as notícias dos jornais. Elas se impressionam demais com as últimas notícias e já perderam a paz que é decorrente da notícia maior, da boa notícia. É gente que tem a alma cansada e aflita e que sofre temores constantes da violência generalizada, do mal corrupto institucional, da opressão competitiva do mercado e não consegue mais transcender do mal visível imediato para o bem prometido desde a eternidade. É gente para quem Deus dizer “não temas” não é suficiente. Os homens de Emaús conheciam as Escrituras, as promessas, as histórias de libertação, mas não compreenderam quando a notícia da morte se mostrou mais forte que qualquer evangelho.

Os que voltavam pra casa, desanimados, tomaram a atitude correta. Creio que quando não temos mais força para fazer o que estamos fazendo, que quando nosso projeto acaba, que quando os elementos da fé se tornam rituais vazios de sentido, o melhor é ir embora, é voltar pra casa, é abandonar tudo. Um amigo me disse, dias destes, algo que sei exatamente o que é: “cansei de culto”.

Já vivi esses desânimos. Ambos somos pastores, mas cansamos da religião. E chegou um tempo em que não havia mais o menor sentido na prática sistemática das obrigações religiosas de domingo. Precisávamos abandonar tudo. Eu fiz há tempos e meu amigo está quase fazendo. Precisamos de coragem para enterrar aquilo que já morreu a fim de permitir que algo nasça no lugar.

Deveríamos ter coragem de fechar a Bíblia e guardá-la na gaveta, quando nos cansamos da maneira com que a utilizamos. Chega um dia em que a “letra mata”, em que a cognição sem efeito prático estrangula a percepção de Deus por trás de cada palavra e história lidas.

Chega um dia em que o estudar cientificamente a Bíblia nos torna áridos e burocratas expositores. Chega um dia em que de tanto usá-la como “caixinha de promessas”, como sorteio, jogo de sorte e azar, sucumbimos ao mínimo bom senso de que tal prática é mandinga e não meditação da alma na Palavra de Deus. Chega uma hora em que a alma pede mais do que chavões de auto-ajuda proclamados nos púlpitos, tanto chiques quanto bregas, que servem de efêmero paliativo existencial. Chega uma hora que o gosto amargo na boca é tão forte que o “cheiro” de estudo bíblico incomoda.

Deveríamos ter coragem de não orar, de fazer silêncio, de não aceitar as convenções sociais e religiosas. Para que orar quando não se quer orar? Isso é reza. E é porque é feita sistematicamente em momentos predeterminados pelas tradições religiosas, mas não atravessa sequer o coração de quem ora.

Tenho convicção, sem qualquer temor, de que o melhor remédio para quem perdeu a alegria é o abandono da prática. E Cristo legitimou [afinal, foi ao seu encontro] o abandono dos amigos de caminhada, que deixaram o restante do grupo, deixaram de praticar as mesmas coisas, porque a razão de tudo que era feito havia acabado. O mestre morreu, não há porque continuar.

Quando eles desistiram, quando estavam cansados e decidiram não manter rituais sem qualquer sentido, Jesus se aproximou deles em seu caminho, os ouviu e passou a mostrar o caminho de volta ao sentido da vida.

Então me surpreendi. Depois que abandonei minhas velhas práticas, caminhei existencialmente de volta a Emaús, porque não encontrava mais qualquer sentido naquilo que falava, que fazia. Eu sofria profundamente por não encontrar forças para acordar e fazer as mesmas coisas, até o dia em que decidi não manter mais, abrir mão. A surpresa foi que encontrei Jesus, no mesmo caminho que meus colegas de Emaús e Ele me falou, porque falou a eles, que a maneira de encontrarmos o sentido perdido é o retorno à prática das primeiras coisas.

Ele nos expôs [a eles e através deles a mim] as Escrituras e percebemos que nossos medos de más notícias e das experiências que nos haviam acontecido não encontravam força diante das pacificadoras palavras do nosso Pai. Descobrimos que estávamos de fato perdendo tempo quando a Bíblia nos era livro de receitas de como ter sucesso, caixinha de promessas, estudo de caso, legislação, manual de instrução, ou qualquer coisa parecida. Entendemos que não é nada disso, mas Palavra e vida, vida de Deus.

A Bíblia é poesia e não teologia. Ela é a vida e não aula de anatomia espiritual. Entendemos que lê-la deve ser um ato de oração. E que isso é orar, dialogar com o Deus que falou suficientemente para o bem de nossa alma.

Depois Jesus se sentou conosco à mesa da comunhão e partiu o pão. Nossos olhos foram abertos, houve calor em nosso corpo, uma experiência física e espiritual, como toda experiência com Deus há de ser porque Ele é quem contempla o homem integralmente. A comunhão verdadeira é aquela que faz a ponte entre os elementos da fé e o coração do homem, decretando que o homem só assimila pela experiência. É o amor no partir do pão que ama a alma e concretiza o que Deus descreveu como amor. Quem não ama à mesa da comunhão pode até descrever o amor, mas não ama.

Jesus nos chamou para vivermos o óbvio, a simplicidade. A Bíblia-oração e a comunhão. Eis as mesmas coisas experimentadas por um novo ser, que liberto das coisas velhas, visitado pela novidade da revelação de Deus como Pai, encontra em suas palavras a alegria e a vitalidade e na comunhão com os irmãos a ponte entre a palavra e a vida.

Eu sei que muitos há que estão sufocados porque não encontram mais sentido no que fazem. Gente desanimada e para quem nada funcionou. Gente que fez o que disseram, mas não houve resultado. Gente sem esperança, cansado, oscilando entre o desejo de desistir e o medo das conseqüências.

Quero incentivá-los a que desistam, abandonem, fechem as contas, deixem morrer o que já morreu. Caminhem sozinhos em alguma direção, qualquer que seja, conquanto seja a do seu coração.

Jesus vai se aproximar, não sei quando, nem de que modo, mas Ele se aproxima daqueles que assumem seus desencantos e desistem de tudo. Sei também que quando Ele aparecer dirá para voltar à prática das primeiras coisas, voltar ao seu primeiro amor. Só então haverá vida novamente.

Tenho convicção de que Jesus lhes abrirá as Escrituras e lhes devolverá à comunhão dos irmãos.

Mas se Ele nos fará voltar, por que sair?

Porque apenas quem sai é que consegue avaliar o que poderia ter perdido e somente quem sai é que volta pra ficar. Quem fica vive a vida toda querendo sair.

Pecado não é abandonar o que a maioria diz ser sagrado, não é deixar de fazer as velhas coisas da religião, mas é manter qualquer realidade que já esteja morta ao invés de deixar morrer para ver nascer o novo. Pecado é deixar a semente morta no saco e não deixá-la cair.

Somente quando cai, morta, é que gera frutos.

© 2004 Alexandre Robles

Fonte: http://www.alexandrerobles.com.br/volte-a-fazer-as-mesmas-coisas/
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