Cera
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- André Laurentino
Toda recepção de hotel é uma filial de museu de cera. O balcão de mármore e a obrigação de ser feliz embalsamam qualquer um que esteja do outro lado. E quem está do outro lado é sempre a mesma pessoa, varia apenas de rosto e uniforme. No mais, é a pose fixada no riso e os cabelos bem penteados para trás. Para os recepcionistas de hotel, aquele saguão é a vida inteira. Seus corações não podem dar sinal de saber em que quarto fica o amor, o ódio ou o tédio. Quem já amou ou odiou acha difícil carregar no rosto o sorriso indolor de todos os dias, fazer piadas tolas, versar a vida sobre as chaves esquecidas ou a toalha do apartamento 1502.
Os recepcionistas de hotel, por outro lado, têm um outro lado. Quando estão distantes de seus balcões, têm suas próprias malas. Devem levar na bagagem um espaço suficiente para alguma dor ou alegria. Algo que lhes dê assunto na mesa de um bar. Se tiverem sorte, amarão eternamente por alguns anos; e se não tiverem tanta sorte assim, amarão do mesmo jeito. Os recepcionistas de cada hotel também devem ter dentes cariados, pretextos para uma outra cerveja, seus times perdem na decisão. Mas tudo isso fica preso em alguma alfândega quando eles vestem o uniforme e surgem por detrás do balcão.
Foi assim quando falei com o recepcionista do Hotel Excelsior, em Nova York. Ele me disse sorrindo que Mr. Laurentino podia deixar as malas ali mesmo, que alguém viria cuidar delas. O quarto de Mr. Laurentino ainda não estava pronto, umas duas horas seriam necessárias para que eu pudesse encontrar tudo conforme as leis do conforto. Deixei as malas com uma outra estátua de cera, que andava normalmente, como se estivesse viva, e fui ao Central Park.
O parque estava vazio naquela manhã, muito cedo para um domingo. Estávamos praticamente sozinhos, a fotossíntese e eu. As pessoas que já estavam lá tinham em comum a terceira idade. Andavam devagar e moviam os braços como se estivessem correndo. Dava certa vergonha ultrapassá-los enquanto eu caminhava normalmente. Eles me acompanhavam apenas com os olhos.
Mas não tinham tristeza no olhar. Tinham rugas, decepções, não eram mais obrigados a sorrir — nem eram de cera.
Fonte: http://andrelaurentino.blogspot.com.br/2012/12/0-0-1-322-1839-tbwa-15-4-2157-14.html
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- André Laurentino
Toda recepção de hotel é uma filial de museu de cera. O balcão de mármore e a obrigação de ser feliz embalsamam qualquer um que esteja do outro lado. E quem está do outro lado é sempre a mesma pessoa, varia apenas de rosto e uniforme. No mais, é a pose fixada no riso e os cabelos bem penteados para trás. Para os recepcionistas de hotel, aquele saguão é a vida inteira. Seus corações não podem dar sinal de saber em que quarto fica o amor, o ódio ou o tédio. Quem já amou ou odiou acha difícil carregar no rosto o sorriso indolor de todos os dias, fazer piadas tolas, versar a vida sobre as chaves esquecidas ou a toalha do apartamento 1502.
Os recepcionistas de hotel, por outro lado, têm um outro lado. Quando estão distantes de seus balcões, têm suas próprias malas. Devem levar na bagagem um espaço suficiente para alguma dor ou alegria. Algo que lhes dê assunto na mesa de um bar. Se tiverem sorte, amarão eternamente por alguns anos; e se não tiverem tanta sorte assim, amarão do mesmo jeito. Os recepcionistas de cada hotel também devem ter dentes cariados, pretextos para uma outra cerveja, seus times perdem na decisão. Mas tudo isso fica preso em alguma alfândega quando eles vestem o uniforme e surgem por detrás do balcão.
Foi assim quando falei com o recepcionista do Hotel Excelsior, em Nova York. Ele me disse sorrindo que Mr. Laurentino podia deixar as malas ali mesmo, que alguém viria cuidar delas. O quarto de Mr. Laurentino ainda não estava pronto, umas duas horas seriam necessárias para que eu pudesse encontrar tudo conforme as leis do conforto. Deixei as malas com uma outra estátua de cera, que andava normalmente, como se estivesse viva, e fui ao Central Park.
O parque estava vazio naquela manhã, muito cedo para um domingo. Estávamos praticamente sozinhos, a fotossíntese e eu. As pessoas que já estavam lá tinham em comum a terceira idade. Andavam devagar e moviam os braços como se estivessem correndo. Dava certa vergonha ultrapassá-los enquanto eu caminhava normalmente. Eles me acompanhavam apenas com os olhos.
Mas não tinham tristeza no olhar. Tinham rugas, decepções, não eram mais obrigados a sorrir — nem eram de cera.
Fonte: http://andrelaurentino.blogspot.com.br/2012/12/0-0-1-322-1839-tbwa-15-4-2157-14.html
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