O que é mais importante?
.
Brincar de decidirA brincadeira já havia começado quando chegamos. Meu anjo condutor sugeriu que eu percebesse qual era a diferença entre os grupos. Havia dois, um que saía da casa formando pares, de mãos dadas e satisfação serena. O outro, apenas um grupo de pessoas sem conexão.
O primeiro detalhe me saltou aos olhos antes mesmo de entrarmos: o segundo grupo saía com mãos cheias de brinquedos, muitos, mal cabiam nas mãos e eram abraçados até com o pescoço. O primeiro grupo saía sem nada, apenas de mãos dadas.
Então entramos e era como se fosse por fora uma casa e por dentro um pátio arredondado, com cômodos de portas abertas viradas simetricamente para o centro. Era de cada uma dessas portas que as pessoas entravam e saíam, ou carregadas de brinquedos, ou brincando umas com as outras. E essa foi a segunda diferença que notei: uns carregavam brinquedos e os que brincavam um com o outro.
Intrigou-me o fato de parecer não poder haver conciliação. Por que não podiam sair de mãos dadas e com os brinquedos? Ele percebeu-me e disse:
- Não é possível. Não dá para ter os dois, ou leva os brinquedos ou leva alguém com quem brincar.
- Podemos entrar agora? – perguntei consciente de que era minha hora de escolher uma sala e entrar.
- Sim.
As salas eram todas iguais, não havia nenhuma diferença, isso dificultava minha escolha. Desejei que alguém escolhesse por mim, que houvesse algum sinal, passei por cada sala e descobri que não dava para ver nada, porque havia um clarão intenso que ofuscava a visão de fora. Notei que havia a mesma quantidade dos dois grupos de pessoas saindo de todas as salas, não havia uma sala que determinasse um padrão de resultados. Não havia quem pudesse me dar um sinal, não havia quem escolhesse por mim, eu precisaria tomar uma decisão.
Fui tomado da angústia da escolha, que é entrar por uma porta e fechar todas as outras, de uma vez. Apavorei-me. Decidir é viver uma só vez e morrer para todas as outras possibilidades, é tomar pra si o “então será” e abandonar o “se tivesse sido”. Notei que havia algumas pessoas confusas, como eu, que andavam e se cansavam até sentar, quase desanimadas, no centro do pátio, elas simplesmente não conseguiam vencer a síndrome da indecisão e por conta disso demoravam a experimentar. Sabe-se lá se iriam um dia conseguir. Enfim, depois de me distrair com o risco que corria, decidi decidir. E fui em frente.
Entrei numa sala, não tão aleatoriamente, fiz contas a partir da entrada principal buscando um número elegante que me fizesse acreditar em algo mágico, contei passos, me agarrei a toda forma de crendice que carregava comigo desde a infância, tentei me assegurar de que estava fazendo a escolha certa, mas não havia a certa, havia só a escolha.
Ao entrar percebi que a luz que ofuscava a entrada, iluminava o interior. Logo vi pessoas como eu, seduzidas pelos brinquedos, cada uma por um tipo. Os meus estavam lá, eram os mesmo da minha infância, alguns com os quais cansei de brincar e outros os quais cansei de desejar.
Quando peguei meus preferidos, vi que não conseguia brincar com eles, pois grudavam nas mãos. Depois da euforia do recolhimento, veio a frustração da ganância. Enchi minhas mãos com aquilo que não podia brincar. Era o fim. Deveria ter me contido, à luz do que já sabia que acontecia aos que saíam da sala com as mãos cheias. Não resisti à tentação de brincar até estafar, com toda sorte de brinquedos que sempre quis pra mim, sozinho, sem precisar devolver.
Então alguém surgiu no meio do cômodo e pediu a atenção de todos dizendo:
- Foi lhes dada a oportunidade de decidir entre o acúmulo dos brinquedos ou a arte de saber brincar. Diante de vocês, uma mesma porta de saída e duas opções.
Recebi alívio por perceber que não era o fim, que poderia escolher ainda, que haveria mais uma chance.
- A questão é se vão conseguir abrir mão dos brinquedos que individualmente acumularam nessa experiência, para poderem aprender a brincar de verdade. A brincadeira dispensa o brinquedo, ela é construída na mente de vocês, o que a brincadeira não dispensa é um companheiro. Brincar sozinho é divertido, mas brincar junto é melhor. Quem brinca sozinho precisa de cada vez mais brinquedos para se sentir realizado e isso os torna gananciosos, insatisfeitos e volúveis. Quem escolhe primeiro os brinquedos, restringe a variedade de amigos.
De modo mágico e por um instante, os brinquedos de todos caíram no chão e pela primeira vez eu notei que todos, sem exceção, tinham recolhido o quanto podiam.
Ficou claro que era mais um momento de decisão. Ainda assim, a certeza imediata de poder sair com brinquedos mexeu comigo. Pensei que se saísse sem eles e ainda que saísse de mãos dadas, nada me garantia que continuaríamos de mãos dadas por bastante tempo. Aliás, lembrei-me que minha visão havia começado na entrada da casa, de onde só conseguia observar as pessoas saindo felizes, mas não sabia por quanto tempo isso duraria. Lembrei-me de que a vida é dura e que eu mesmo já havia perdido companheiros de brincadeira pelo caminho. Temi que acontecesse novamente e fiz o movimento para pegar meus próprios brinquedos e me garantir. É melhor um brinquedo na mão do que um amigo que sabe voar e pode me deixar sozinho, de novo. A certeza é confortante, prefiro brinquedos que não me deixem que brincadeiras que durem pouco.
Quando estava quase convencido, baseado em meus medos e traumas, levantei meus olhos e vi uma amiga. Olhamo-nos e parece que era o que faltava. A decisão mudou. Num instante eu senti novamente a alegria de imaginar muitas brincadeiras com uma pessoa sem precisar sequer dos brinquedos. Nós seríamos a brincadeira.
E assim, a vida oferecia oportunidade a todos. Entravam pela casa e podiam escolher depois, entrar ou não no cômodo da experiência de aprender a brincar. Entravam no cômodo e podiam sair cheios de brinquedos-de-si-mesmos ou livres para brincar-de-ser-o-outro, que é a melhor brincadeira da vida, pois faz a gente ver o mundo como se fosse a outra pessoa, é brincar de ser o outro, sendo a gente mesmo.
É saber que quem tem com quem brincar, faz de tudo o que é saudável, brinquedo e brincadeira.
©2013 Alexandre Robles
Fonte: http://www.alexandrerobles.com.br/brincar-de-decidir/
.
0 Comments:
Post a Comment
Note: Only a member of this blog may post a comment.
<< Home