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Chérie,
a melhor maneira da gente conhecer alguém é ouvir quem conviveu perto.
Por isto a cada dia fico mais encantada com Vinicius de Moraes; mais que inteligência, ele tinha integridade - vivia tudo o que cantava.
Bjs,
KT
MEMÓRIAS DO ÚLTIMO AMOR
- Gilda Mattoso
Parece mentira que Vinicius faria 100 anos nesse 2013 já que era
um espírito de extrema jovialidade. Quando nos casamos em Paris, 1978, todas as
pessoas se assustavam com nossa diferença de idade de quase 40 anos, menos eu,
que o achava muito sem juízo mas também reconhecia que seu charme estava
justamente aí. Vinicius se jogava na vida, corria riscos imensos, sempre
destemido e em busca do amor perfeito!
Largava tudo pra trás e se atirava em um novo amor. Eu sempre mais ponderada apesar da tenra idade que tinha até mesmo quando ele morreu e me deixou viúva aos 28 anos! Desde muito menina, eu era admiradora dele, de sua poesia, de suas canções, e chegava a dizer, quando ele aparecia em jornais, revistas ou TV: “Quando me casar quero que seja com um homem como este”, provocando espanto em minha mãe, que retrucava: “Vira essa boca pra outro lado - este homem, embora excelente poeta (ela própria era poeta amadora) é um beberrão, destruidor de lares!”. Minha mãe também terminou sucumbindo ao charme dele (fazia até docinhos com adoçante para ele, que era diabético). Para surpresa geral e até minha, esse homem se apaixonou por mim e eu por ele e vivemos felizes e intensamente os poucos anos que o destino nos reservara.
Fico pensando em como Vinicius estaria hoje com 100 anos e pensando nele nesse Brasil devastado pela corrupção e pelos políticos medíocres. Ele, pouco antes de morrer, fazia seu quadro de políticos de sonhos: Presidente da República: Jaime Lerner; Ministro da Cultura: Sergio Buarque de Hollanda; Ministro das Relações Exteriores: Otto Lara Resende; Ministro da Saúde: Clementino Fraga Filho ou Paulo Niemeyer... e por aí ia. Todos esses grandes nomes eram amigos dele mas, acima de tudo, grandes brasileiros.
Ele ficava horas na banheira onde, aliás, veio a falecer, pensando nisso e em outros sonhos, como a cura da diabetes (enfermidade que acabou por matá-lo por outras vias), a justiça entre os homens, o fim da desigualdade social brasileira... enfim, foi um grande brasileiro que levou o nome do Brasil para todos os lugares do mundo por onde passou, com sua música e sua poesia inesquecíveis.
Às vezes, quando via meus amigos Enrica e Michelangelo Antonioni, que tinham quase a mesma diferença de idade que a nossa, ficava com inveja e pensava em como você teria ficado, já mais velho, e achava que teríamos uma relação parecida com a do casal italiano.
Tem 2 traços na personalidade de Vinicius que me fascinavam: primeiro, a generosidade. Ele foi o ser mais generoso que conheci e dizia que
a
coisa pior do mundo era a avareza, que perdia só para a grosseria que ele
abominava. Dizia que
quem era mesquinho com coisas materiais também o era com os
sentimentos. O segundo traço era o senso de humor. Ele também dizia que, em
certas situações, ele preferia uma pessoa sem caráter a uma pessoa sem senso de
humor!
Por vezes, estou nas minhas caminhadas na Lagoa e me vem a canção que ele
e Toquinho fizeram e que cantavam nas infinitas turnês que fizeram pelo Brasil e
que dizia:
¨Nós vamos pelas rotas do Brasil / nós somos os quatro
mosqueteiros musicais / cantamos com empenho varonil / prás meninas, coroas e
mocinhas virginais / nós somos Athos, Portos, Aramis e D’Artagnan / vivemos uma
vida bem feliz e folgazã / os quatro mosqueteiros musicais / Azeitona*, Mutinho*
Toquinho / e o Vinicius.... e o Vinicius.... e o Vinicius de Moraes!”
*Azeitona era baixista e Mutinho baterista da banda que acompanhava eles.
Fonte: http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-de-vinicius/ultimoamor.html
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UM LEGADO DE AMOR
- Maria de Moraes
Relembro e te vejo sorrindo ao meu lado, as mãos entrelaçadas,
quentes, protetoras, as pessoas a te olhar na rua. No seu rosto um risinho
maroto de quem sabe e não diz. “Pai, por que as pessoas te olham tanto?” “Você
acha, Mariazinha?” “Olham sim, você sabe.” “Sei não” – o riso largo, sacana, já
quase uma gargalhada – “não sei porquê me olham na rua”.
E seguimos em silêncio, os passos sincronizados, os meus
saltitantes, passeando pelas ruas da cidade. Eu, uma menina de 7 anos, sem
acreditar muito na resposta, algum mistério, esse pai cheio de histórias. Logo
entendi o que quer dizer no poema o “Haver: resta esse desejo de sentir-se igual
a todos, de refletir-se em olhares sem curiosidade e sem memória. Resta essa
pobreza intrínseca, essa vaidade, de não querer ser príncipe senão de seu
reino.” Papai era um homem sofisticadamente simples.
Décadas depois desse registro de memória afetiva dos poucos
momentos em que estivemos juntos, o mantenho, pai e filha, mais ninguém, e
assim, como filha, apesar do poeta ser do mundo, o guardo possessivamente dentro
de mim. Meu pai. Tivemos pouco tempo, mas tive também, por ser temporã, momentos
de um homem já avô, experiente, sábio, sempre gentil e verdadeiro. Ainda assim,
nunca perdeu o espanto frente às coisas, esse espanto que os poetas têm, no
cultivo de um olhar primeiro, de manter o menino que “achava bonita a palavra
escrita, por isso sofria de melancolia, de sonhar o poeta, que quem sabe um dia,
poderia ser”, ditos em O Poeta Aprendiz. E é, pai, para sempre, um grande e
amado poeta, com um alcance impressionável. Para mim um dos melhores, craque nos
sonetos, técnica impecável, sentimentos sublimes, tocando o coração das pessoas
facilmente, as alegrando e diminuindo a pressão de se saber, das angústias, das
dúvidas, da intensidade dos sentimentos.
Na busca em torno dessa ausência de quem perdeu o pai muito cedo,
me sinto privilegiada, pois, afinal, quantos órfãos podem ter um pai tão
presente, vivo na memória e nos corações das pessoas? Um pai que se vai e deixa
uma obra aonde me aconselho desde então, na busca desse homem, dessa
personalidade, do que pensa, do que sente, do que me reconheço, do gosto pela
leitura, o amor e respeito à vida, principalmente pela humanidade. Quando é
grande a dúvida e a angústia, é em poética que sossego, afinal, o tempo é
quando.
Era um homem, acima de tudo, perfeitamente imperfeito. Não há
praticamente um dia que não esteja presente, seja nas canções executadas em todo
o mundo, seja na grande referência que se tornou para todos, gente humilde, os
acadêmicos, os amantes, estudantes, artistas, jornalistas, as crianças, as
pessoas que o citam tanto, na mesma busca dessa filha por um conforto, um
entendimento do que é sentir para valer! Como você disse, “quem já passou por
essa vida e não viveu, pode ser mais, mas sabe menos do que eu .”
Entre tantas ações comemorativas, uma das que mais me dá alegria
é a visitação às escolas. É uma lindeza ser recebida com frisson pelos alunos,
alguns tão miúdos que é extraordinário perceber que com 5 anos, antes mesmo da
alfabetização, que se sintam íntimos do poeta centenário, do compositor que
mudou paradigmas em suas letras geniais. Eu me emociono tanto, e acho graça,
você é um pop star, e eles te buscam como eu, como tantos, como você sempre
buscou com verdade e sem limites a si mesmo. E assim, cultivam o gosto pela
poesia e se aventuram na escrita, seus novíssimos leitores, quanta ternura!
Ganhamos todos, que bem a cultura da nossa Pátria Amada, tão
pobrinha, você faz. Tenho muito orgulho do branco mais preto do Brasil, um homem
à frente de seu tempo, que ganhou o mundo, levando o melhor de nossa
brasilidade. Com Orfeu e suas canções teve o reconhecimento internacional e até
o imaginário do que o estrangeiro pensa sobre nós, levou Ipanema aos 4
continentes, fazendo as pessoas suspirarem em muitos idiomas e gravações a
passagem do tempo.
Sei que olha por nós, e com prazer sei que é uma vitória ver seus
filhos – de idades e mães diferentes – tão unidos, responsáveis. Seu maior
legado é o AMOR, sem dúvida, esse sentimento poderoso que nós herdamos com
intensidade, nem sempre é fácil ser de Moraes. Juntos, trabalhamos
incansavelmente para divulgar sua obra, respeitando seus desejos, numa curadoria
permanente para manter o alto nível de sua qualidade artística, tentando seguir
o tempo e as mudanças, com todo o respeito ao autor. Seus netos são pessoas
especiais, sensíveis, e todos nós temos uma certa meninice, comum à família, não
envelhecemos por dentro.
Eu me lembro do texto do amigo e poeta Carlos Drummond de
Andrade, publicado logo após a sua partida, um diálogo entre Deus e o simpático
São Pedro, a perguntar quem era aquele baixinho de violão, copo cheio na mão,
será que faria bagunça no coro dos anjos? E São Pedro responde que Vinicius
combateu a maldade pela ternura, a injustiça pela fraternidade, que nasceu com a
célula poética, desabrochou em canções variadas, encantou o povo e morreu
fazendo música para as crianças. Sou uma voz a mais na multidão a cantar: Se
todos fossem iguais a você, que maravilha viver!
Fonte: http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-de-vinicius/asfilhas.html
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A BENÇÃO DO POETA
- Toquinho
Quando comecei a trabalhar com Vinicius, em junho de 1970, ele ainda evitava viajar de avião. Então fomos para a Argentina de navio. Eu sentia uma sensação estranha, não sabia direito o que é que eu ia fazer lá. De repente, estava a bordo de um navio junto com Vinicius de Moraes, um ser humano grandioso de quem eu só conhecia o que ele tinha escrito e cantado por aí.
Sei que na 1a. noite no navio eu passei muito mal, no meu quarto, enjoado, com tudo a balançar por todos os lados. E Vinicius sentado a uma escrivaninha, segurando o copo para que ele não caísse, conversando naturalmente, sem se alterar. Ficou lá ao meu lado, como um pai, ou melhor, como alguém com pretensões de se fazer amigo. Nossa relação começou assim, e logo de cara eu passei a vê-lo um pouco como irmão, porque
ele não sabia ser velho, o que na realidade ele não era.
Chegamos em Buenos Aires dois dias antes do final da Copa de 1970 e começamos a trabalhar. O Brasil ganhou a Copa, nosso show na boate La Fusa já fazia um grande sucesso e, naquele domingo, abrimos o espetáculo com aquela música: “A taça do mundo é nossa/ Com brasileiro, não há quem possa...”. Então, minha relação de amizade e conhecimento com Vinicius já se iniciou em meio a esse clima positivo da seleção ganhando a Copa, nosso show em pleno sucesso, aqueles jantares invadindo a madrugada.
Houve uma adaptação perfeita entre a gente porque tudo que Vinicius gostava de fazer eu também gostava: tocar violão, curtir os temas que iam saindo, comer bem, viver a noite ao lado de amigos e mulheres bonitas.
Voltei da Argentina com aquela sensação gostosa de ter trabalhado com Vinicius. Ainda não tinha saído nenhuma música nessa 1a. viagem. Já no navio eu tinha mostrado a ele um tema que eu estava desenvolvendo. Ele gostou da ideia, ficou curtindo, mas não colocou letra. Isso aconteceria quase dois meses depois.
Vinicius estava casado com a baiana Gesse, que arrumou para fazermos três shows no Teatro Castro Alves, em Salvador, nos dias 6, 7 e 8 de setembro.
Durante a viagem de ônibus à Bahia, Vinicius fez a letra para aquele tema. Aí começava efetivamente nossa parceria, com a música Como dizia o poeta.... Lançamos essa música no Teatro Castro Alves, levando desta vez a Marília Medalha para cantar com a gente. Esse show foi um risco, pois era quase uma afronta fazer e mostrar música brasileira numa época em que prevaleciam o tropicalismo, o rock, as guitarras. O show do dia 7 foi dedicado aos estudantes, que responderam com uma ovação memorável!
Animados por esse indício de sucesso, tomados pela Bahia, que já entrava na vida da gente, não precisava nem de muito esforço para as músicas brotarem. Surgiram A bênção, Bahia, Mais um Adeus, mas apesar disso, não imaginava que a parceria fosse tomar o impulso que tomou e chegar até onde chegou. Sentia insegurança, não sabia se ele ia gostar de minhas melodias. Então, ele fez a letra de Tarde em Itapoan e ia dar para o Caymmi musicar. Um poema lindo, perfeito, era a oportunidade de fazer uma melodia que não deixasse nenhuma dúvida quanto à minha capacidade musical. Aí, simplesmente “roubei” a folha de papel da máquina de escrever, vim para São Paulo e, depois de três dias, voltei para Salvador com a canção pronta. Depois de ouvir inúmeras vezes, Vinicius aprovou. Foi aí que ganhei o poeta! Tarde em Itapoan tem uma melodia maravilhosa, parece que Vinicius letrou a música. Então, embalamos de verdade, num intenso processo criativo. Nos dez anos de parceria, criamos mais de 100
canções, gravamos perto de 25 discos e fizemos mais de mil shows aqui e no
exterior.
O que Vinicius queria.
O que determinou a consolidação rápida e consistente dessa parceria foi o fato de termos nos encontrado no momento mais adequado para um e outro. Eu tinha o que o Vinicius queria: uma pessoa que tivesse disponibilidade para ficar trabalhando com ele, e que tivesse uma linguagem nova. Eu era totalmente disponível e motivado a ficar do lado dele. Contribuiu para isso o grande entrosamento existencial entre nós. Jamais enxerguei Vinicius como um pai de postura paternal e protetora. Mesmo porque ele não agia assim nem com os próprios filhos. A feição de pai surgia por sua grande sabedoria de vida. E, ao mesmo tempo,
quando se via diante de um pescador, por exemplo, me falava cheio de emoção: “Não sei absolutamente nada da vida perto de uma pessoa assim”.
É que ele carregava o tempo inteiro o garoto que ele era, o jovem disposto e disponível à vida; que arriscava nas coisas, que chegava tarde para acordar cedo, e acordava cedo; que ficava como um Buda, sentado na capota do carro do Bardotti, em Firenze, dando voltas pela mesma praça, depois de algumas garrafas de vinho no jantar; que bebia até mais tarde sem problemas de ressaca no dia seguinte. Muito mais resistente que eu nesse aspecto. Mas, por mais controvertido que pareça, foi ele quem me ensinou a ser profissional, a cumprir horários, a observar compromissos, a respeitar as pessoas. Isso reflete as contradições desse grande poeta. “O cotidiano é a ferrugem da vida”, ele dizia.
Essa ferrugem o agredia demais, a ponto de, diante do espelho, começar a fazer a barba de um lado do rosto, e, no outro dia, iniciar pelo outro lado. Tudo para ludibriar a ferrugem do dia-a-dia. Odiava esse lado massacrante da vida, mas procurava harmonizar-se com isso tudo. Dizia que a bebida o ajudava a encontrar essa harmonia. Em tudo, ele confirmava o que um dia Drummond disse dele: “O único Poeta que viveu como poeta.”
Vinicius nunca soube viver sem poesia.
Na rapidez do cotidiano quase sempre não cabe poesia, mas ela o acompanhava o tempo inteiro. Para ele, tudo era natural. Quantas vezes fiz parte dessa poesia, desde ter de erguer as calças dele que, de um tanto largas, caíram-lhe em plena Avenida São Luiz, e ele não usava cuecas, e tinha ficado nu da cintura para baixo em pleno centro de São Paulo, depois de uma das muitas noitadas que fizemos. Não dando a mínima, achando-se a verdadeira poesia concreta daquele burburinho urbano. Até ter de enfrentá-lo zangadíssimo numa manhã: acordei, desci para o café, e Vinicius já estava à mesa, fumando, sem levantar os olhos do jornal. Dei bom-dia, tentei conversar, e ele não respondia: “Aconteceu alguma coisa, Vinicius?”, perguntei. Ele olhou-me furioso: “Olha aqui, Toco, se um dia você ousar alguma coisa com minha mulher, eu não te mato, porque é pouco. Sabe o que eu faço? Te amarro numa cadeira, prendo tuas mãos
abertas na mesa, vou martelando dedo por dedo. Para você, esse castigo será pior
que a morte. Toma cuidado, pois farei isso!” E ele falava ruminando a fúria em
cada palavra. É que durante a noite, ele sonhara comigo tentando namorar a
Gesse, e vivia aquilo com tanto realismo, sentindo-se traído, como se tudo fosse
verdade, pela força da fantasia. Esse era o Vinicius.
Segundo ele,
nossa relação era como um casamento sem sexo. O resto tinha tudo, ciúme e inclusive algumas brigas, claro. No fundo, e o mais importante, um grande amigo que a vida escolheu para morrer quase em meus braços. Sentindo-me, de início, um objeto da blasfêmia da vida, eu admitiria depois como um privilégio ter sido o escolhido para vivenciar as últimas horas do poeta.
Fonte: http://infograficos.estadao.com.br/public/especiais/100-anos-de-vinicius/osparceiros.html
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CIÊNCIA SEM RECEITA
- Joyce Moreno
Eu estudava jornalismo na PUC-RJ, em 1966, quando pela 1a. vez me
aproximei de Vinicius de Moraes (1913-80). Era um trabalho de grupo e me fora
dada a missão de abordar algumas personalidades, fazendo a todas a mesma
pergunta besta: "Pode a guerra do Vietnã acabar com a primavera?". Para minha
surpresa, todos os "entrevistados" - Nara Leão, Gilberto Gil, Sérgio Porto -
responderam simpaticamente. E o poeta, claro, não foi exceção.
Mais ou menos um ano depois, quando pela 1a. vez classifiquei uma música
no Festival Internacional da Canção, comecei a conhecer outros artistas e gente
do ramo. Wanda Sá, a grande cantora bossa-novista, me procurou quando eu fazia
uma pequena participação num show de Maria Bethânia: "Ouvi suas músicas,
Vinicius precisa te conhecer. Vamos lá na casa dele, agora mesmo!"
Era a casa de Vinicius de Moraes, um dos meus ídolos, uma chance imperdível!
Mas eu jamais imaginaria que ele se lembrasse da estudante atrevida que o
abordara um ano antes... Pois lembrou.
Vinicius morava numa cobertura na rua Diamantina, no Jardim Botânico, com
Nelita, então sua mulher. Parecia uma festa, mas depois me dei conta de que
aquilo acontecia quase todas as noites: pessoas cantando, bebendo, conversando,
rindo até o sol raiar.
"Que vida!", pensei cá comigo. "Vida de poeta, também quero." Mostrei algumas
das minhas primeiras composições, que ele adorou. "Você é uma feminista", ele
disse, pelo fato de as canções serem sempre no feminino singular -definindo uma
característica da qual até então não tinha consciência. Eram coisas intuitivas,
feitas por uma iniciante de 19 anos. E que ele
ouviu com respeito e sincero
interesse. Lição número um.
A lição numero dois, definitiva, se deu quando chegou um de seus jovens
parceiros, Francis Hime, e os dois
começaram a trabalhar numa nova canção. Ali,
diante de todos, sem esconder o ouro. Dois profissionais, experts na grande arte
da canção popular, descortinando uma obra em progresso.
A festa virou então uma
grande oficina, e eu me vi assistindo a uma "master class" inesperada.
Maravilhada, fui descobrindo como
aquilo era suor, era trabalho, ainda que
prazeroso, e exigia um conhecimento profundo do encaixe das sílabas certas na
melodia, rimas internas, uso esperto da palavra, musicalidade do letrista e
sofisticação, apesar da aparente simplicidade. Eu estava tendo uma aula de
composição ali, ao vivo e em cores. Parecia fácil, mas havia naquilo uma ciência
da qual eu jamais havia suspeitado.
Quando os trâmites foram dados por findos, voltou o clima de festa, com todos
os presentes cantando juntos a canção recém-parida.
A nova composição foi
exaustivamente testada e aprovada, aparadas as possíveis arestas, até à
perfeição. Lá pelas oito da manhã,
quando nos retiramos da casa dele, cansados e
felizes, a aura mágica do poeta nos envolvia a todos.
Dali em diante, eu veria esse processo acontecer muitas vezes, com o próprio
Vinicius e também com outros autores - como Tom Jobim, que vi trabalhar as letras
de "Wave" e "Águas de Março" diante de um monte de amigos, pondo em prática os
ensinamentos que recebera de Heitor Villa-Lobos sobre
o "ouvido de dentro" não
ter nada a ver com o "ouvido de fora".
Mas o encantamento da 1a. vez, naquela festa na cobertura do Vina, seria
para mim inesquecível. Ali aprendi que o autor existe como entidade única e
intransferível e que
a música popular é uma arte/ciência que não tem receita,
mas demanda um saber específico para o qual são muitos os chamados e poucos os
escolhidos.
Minha amizade com Vinicius durou uma vida inteira. Ao longo dos anos,
viajamos pelo mundo, rimos, choramos e cantamos juntos. E só não compusemos
juntos porque eu era uma boba e perdi tempo esperando que me viesse a melodia
"certa" para entregar ao poeta, que não poucas vezes me cobrou essa parceria.
Mas busco até hoje manter em minha música
o frescor e a alegria que a então
menina de 19 anos viu
transbordar no compositor veterano, hoje centenário. E
cada vez mais eterno.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/ilustrissima/2013/09/1345276-ciencia-sem-receita.shtml
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