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- Contardo Calligaris
Mesmo estando em Veneza, não passei pelo cemitério de San Michele no dia dos
mortos.
Se eu fosse até lá no dia 2, teria visitado um amigo dos meus pais, que mal
se lembraria de mim, e alguns ilustres: Stravinsky, Joseph Brodsky, que é um
poeta que me toca e escreveu um livro lindo sobre Veneza ("Marca d'Água", Cosac
Naify), e Franco Basaglia, que desencadeou o movimento antipsiquiátrico, no
hospital de Gorizia.
É provável que as visitas aos cemitérios se tornem cada vez mais raras. Além
de um túmulo concreto, muitos já erigem monumentos virtuais para seus entes
queridos, e visitar os mortos, no futuro, talvez signifique passear por um lugar
virtual: rever fotos e textos, lembrar-se e deixar um pensamento (há sites para
isso, cemitérios virtuais -- peoplememory.com, por exemplo).
Na Itália, há também cemitérios reais em que, graças a câmeras filmando ao
vivo, é possível visitar qualquer tumba virtualmente, sem sequer sair de casa (a
coisa começou, aliás, com os cemitérios de lugares com forte índice de
emigração, de modo que netos e bisnetos do outro lado do mar pudessem visitar "i
nonni").
Mas a razão pela qual não visitei San Michele é outra. Especialmente em
Veneza, para mim, os mortos não estão separados dos vivos. Claro, Napoleão
chegou até aqui e instituiu os cemitérios (entre eles San Michele), proibindo
que os mortos fossem sepultados perto dos vivos.
Mas meu pai pensava diferente de Napoleão; para ele, a presença dos mortos
não tinha por que ser pavorosa ou insalubre --ao contrário, ela só enriquecia
nossa vida.
Meu pai queria que eu me interessasse pelas pedras da cidade, por sua arte e
por sua história. O jeito que ele encontrou foi me seduzir com histórias
(algumas verdadeiras, outras --suspeito-- inventadas).
Em Veneza, há mais de uma rua dos assassinos, mais de um "malcantón" (canto
ruim), mais de uma ponte do diabo ou dos esquartejados. De todos esses lugares,
uma lenda explica o nome. Mesma coisa para cada pedra estranha no meio da
calçada, cada busto de anjo ou de diabo num muro. Para quem cresceu ouvindo
essas histórias, o passado é uma outra dimensão, quase presente, visível, e a
cidade é povoada pelas sombras dos que foram.
Por exemplo, visitei a parte da Bienal de Arte que é apresentada no antigo
Arsenal. Artistas contemporâneos mostram suas obras, inclusive ao ar livre, nas
docas onde eram construídos os navios da República. Reis e poderosos, passando
por Veneza, sempre eram convidados a festas no Arsenal, que duravam uma tarde,
para eles constatarem que, numa tarde, Veneza conseguia construir um navio. Pois
bem, no Arsenal, misturo-me à fauna variada da Bienal, mas nunca deixo de
enxergar, no fundo, o trabalho dos obreiros que terminavam uma galera num dia
só.
Uma vez, passeando pelas Fondamenta delle Zattere num fim de tarde, meu pai
me mostrou o enorme edifício do moinho Stucky, abandonado. Ele apontou luzes
trêmulas nas janelas escuras. Eu não enxerguei nada, mas aprendi que aquelas
eram as chamas que assinalavam o lugar onde jazia a beata Giuliana de Collalto,
esquecida na vala comum das freiras de seu mosteiro, no fim do século 13.
Nada demais, só que o mosteiro de Giuliana tinha sido demolido e, no seu
lugar, surgia, justamente, o moinho Stucky, uma gigantesca oficina neogótica.
Ora, em 1910, o próprio Stucky foi assassinado e, em 2003, o moinho, antes de
se tornar mega-hotel, sofreu um grave incêndio. Talvez tenha sido Giuliana de
Collalto; talvez e mais provável, tenha sido a sombra de John Ruskin voltando
para defender o gótico de sua Veneza amada contra o horror neogótico do Stucky.
Seja como for, no dia dos mortos, não precisamos visitar os cemitérios porque
nossos mortos já estão entre nós (ou dentro de nós). E não é necessário ter
medo: eles, em tese, estão do nosso lado e contra nossos inimigos. Por quê?
A melhor resposta é a de Cinqué, na versão que Steven Spielberg filmou da
história do navio "Amistad".
No filme, Cinqué explica a John Quincy Adams (seu advogado) que ele chamará
seus antepassados para que o ajudem na hora do processo no qual será decidido se
ele ganhará sua liberdade de volta ou continuará escravo. Cinqué afirma com
clareza e convicção que os antepassados não poderão deixar de vir para ajudá-lo,
por uma razão simples: ele, Cinqué, é a única razão de eles terem existido.
Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/contardocalligaris/2013/11/1367874-dia-dos-mortos-e-dia-dos-vivos.shtml
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