Gostar ultrapassa qualquer entendimento
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Estamos mais intolerantes com o lirismo. Queremos logo o resumo dos fatos, a polêmica das opiniões, a serventia de tudo. Mas a poesia não serve para nada – e por isso mesmo é imprescindível.
- Renato Essenfelder
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Estamos mais intolerantes com o lirismo. Queremos logo o resumo dos fatos, a polêmica das opiniões, a serventia de tudo. Mas a poesia não serve para nada – e por isso mesmo é imprescindível.Já estávamos havia dez minutos parados diante do quadro. Uma pintura abstrata de cores berrantes. Então minha filha falou: - Pai, eu não entendo nada. O quê? O que ele quer dizer. Eu não consigo entender o quadro. Mas você gosta? Gosto. É bonito. Isso basta, filha, eu respondi. Não se preocupe em entender, viver ultrapassa qualquer entendimento. Como assim? Reformulei: gostar ultrapassa qualquer entendimento.
Uma pausa. Vamos ao café do museu. Ela aprendeu a beber cappuccino comigo e tenho certeza de que é uma contribuição à sua educação afetiva. Gostamos de um sopro de canela sobre a espuma alva. Conto que o nome cappuccino faz referência ao capuz de um frade. A espuma de leite forma um capuz sobre a bebida, e o hábito dos franciscanos é marrom como essa mistura. Cappuccino, entendeu? Ela diz entendi, com cara de enfado.
Mas você acha que é preciso entender a história do cappuccino para gostar dele? Você prefere beber ou prefere saber o cappuccino? Tenho a sua atenção. Repito: não se preocupe demasiado com entender. Gostar ultrapassa qualquer entendimento.
Mas você acha que é preciso entender a história do cappuccino para gostar dele? Você prefere beber ou prefere saber o cappuccino? Tenho a sua atenção. Repito: não se preocupe demasiado com entender. Gostar ultrapassa qualquer entendimento.
Outro dia, uma leitora elogiou os textos desta coluna. Amo suas crônicas, disse, porque são tão poéticas. Amo, mas tenho de confessar que metade do que escreve eu não entendo. Eu apenas sorri, sem jeito.
Se tivesse de escolher entre gostar ou decifrar racionalmente, entre me afetar e apreender racionalmente, eu escolheria toda a vida o coração. A razão é boa para os que querem ter razão, mas eu, violentado pelos excessos da vida, aturdido por suas misérias e belezas, não tive nem sequer a alternativa de entender racionalmente o mundo.
Eu deixei que fosse embora, mas pensei: ela entendia. Entender não é primazia da cabeça. O coração também entende (e o afeto descortina, e a paixão compreende). Eu entendo o mundo das duas maneiras, que se completam. Entendo uma nuvem como um aglomerado de partículas d’água. E também como o suspiro de um poeta.
A dificuldade de compreensão, portanto, eu não sei se é ferrugem do afeto ou da razão. Não entendo ainda tantos poemas de Eliott, tantos versos de Pound, tantos cânticos de Homero e Dante, tantos versos de Drummond, Bandeira. Manoel de Barros eu não entendo, mas choro feito menino, porque sua poesia me faz chorar.
Mas entendi a preocupação dela, como tenho entendido a preocupação de editores, jornalistas, professores, revisores, preparadores de texto. A obsessão com o fácil e rápido entendimento de tudo. Mas o que não se apreende pela razão, o que é apreendido pelo coração é de lento entendimento. Não me atraiu Faulkner aos 16. Aos 20 o reverenciei solenemente. Aos 25, enxaguou os meus olhos.
Estamos mais intolerantes e ignorantes hoje e parte disso se deve à indisposição para com os prazeres da vagareza – e da vagueza. Hoje, poético é pejorativo. Complexo é pecaminoso.
Meu destino é pecar. Perguntam-me o que quero dizer, porque tenho de querer dizer algo polêmico. Porém não quero dizer nada – ou melhor, o que quero dizer não tem nome.
Frustro-me uns dias, alegro-me em outros. Escrever assim, desse modo, é a coisa mais triste. O mal crônico sou eu. Mas ela me disse que gostava dos textos, embora não soubesse o que fazer com eles. Sem que soubesse por que, tornam suas segundas-feiras menos modorrentas. Eu achei bom. Gostar é bom.
Gostar basta.
Se tivesse de escolher entre gostar ou decifrar racionalmente, entre me afetar e apreender racionalmente, eu escolheria toda a vida o coração. A razão é boa para os que querem ter razão, mas eu, violentado pelos excessos da vida, aturdido por suas misérias e belezas, não tive nem sequer a alternativa de entender racionalmente o mundo.
Eu deixei que fosse embora, mas pensei: ela entendia. Entender não é primazia da cabeça. O coração também entende (e o afeto descortina, e a paixão compreende). Eu entendo o mundo das duas maneiras, que se completam. Entendo uma nuvem como um aglomerado de partículas d’água. E também como o suspiro de um poeta.
A dificuldade de compreensão, portanto, eu não sei se é ferrugem do afeto ou da razão. Não entendo ainda tantos poemas de Eliott, tantos versos de Pound, tantos cânticos de Homero e Dante, tantos versos de Drummond, Bandeira. Manoel de Barros eu não entendo, mas choro feito menino, porque sua poesia me faz chorar.
Mas entendi a preocupação dela, como tenho entendido a preocupação de editores, jornalistas, professores, revisores, preparadores de texto. A obsessão com o fácil e rápido entendimento de tudo. Mas o que não se apreende pela razão, o que é apreendido pelo coração é de lento entendimento. Não me atraiu Faulkner aos 16. Aos 20 o reverenciei solenemente. Aos 25, enxaguou os meus olhos.
Estamos mais intolerantes e ignorantes hoje e parte disso se deve à indisposição para com os prazeres da vagareza – e da vagueza. Hoje, poético é pejorativo. Complexo é pecaminoso.
Meu destino é pecar. Perguntam-me o que quero dizer, porque tenho de querer dizer algo polêmico. Porém não quero dizer nada – ou melhor, o que quero dizer não tem nome.
Frustro-me uns dias, alegro-me em outros. Escrever assim, desse modo, é a coisa mais triste. O mal crônico sou eu. Mas ela me disse que gostava dos textos, embora não soubesse o que fazer com eles. Sem que soubesse por que, tornam suas segundas-feiras menos modorrentas. Eu achei bom. Gostar é bom.
Gostar basta.
Fonte: http://blogs.estadao.com.br/renato-essenfelder/2014/10/20/entendimento/
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