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O maestro paulista Roberto Minczuk é um dos mais bem-sucedidos artistas brasileiros. Diretor artístico da Orquestra Sinfônica Brasileira (OSB) e do Festival Internacional de Inverno de Campos do Jordão, ele também dirige a Filarmônica de Calgary, no Canadá. Como regente, freqüenta o circuito “A” de orquestras internacionais. Em 2005, fixou residência no Rio de Janeiro. Sua casa fica na Barra da Tijuca, mesmo bairro onde será inaugurada a Cidade da Música, nova sede da OSB, um projeto arquitetônico e cultural que vai dar nova cara à capital carioca. Homem de fé e músico sensível, Minczuk adianta, com exclusividade para a Revista da Cultura, que o tema do próximo Festival de Inverno será “Música e Literatura”. E foi sobre seus livros prediletos que começou esta conversa. O maestro divide aqui outras paixões, como a religião e a família. “Se as artes são os caminhos que nos levam a Deus, a música é o mais curto deles”, diz.
Como despertou seu gosto pela leitura? Foi na escola dominical da igreja, com as histórias bíblicas. Com 8 anos, eu já lia a Bíblia. No colégio, vieram os clássicos brasileiros como O Guarani e A Moreninha. Depois, Fernando Pessoa e Manuel Bandeira. Sempre gostei de poesia. Cheguei a ler Platão e Aristóteles na adolescência, mas meu interesse por literatura e filosofia foi aguçado mesmo na faculdade de música da Juilliard School, em Nova York.
Filosofia no curso de música? O presidente da época veio da Universidade de Yale e implementou um currículo que dava ao músico boa formação em Humanidades. Foi então que me apaixonei por livros. Comprava aquelas séries de pocket books da Penguin por três dólares. Ler Romeu e Julieta ou Dom Quixote pela primeira vez é algo impressionante. Eu gostava tanto que depois, no Brasil, comprava a edição em português e lia de novo.
Você ainda lê sempre a Bíblia? A Bíblia é meu livro de cabeceira. Leio praticamente todos os dias. Compartilho a fé dos antigos: as escrituras são como bússola para mim. Gosto em especial dos Salmos e da figura de Davi, um homem “segundo o coração de Deus”. Profeta, artista, poeta, rei e guerreiro. Em sua imperfeição tão humana, Davi era querido do Senhor. Teologia seria uma área que eu exploraria profissionalmente. Quando rejo em uma missa, cada palavra tem impacto forte em mim.
“Sem a música, a vida seria um erro”, disse Nietzsche. Qual a importância da música na rotina intelectual do cidadão? A música estabelece canais sem fronteiras. Há uma frase que diz: “Se as artes são os caminhos que levam a Deus, a música é o mais curto deles”. A música moldou civilizações e sociedades. A música de concerto engloba tanto os aspectos de espiritualidade como os de entretenimento, arte e sofisticação.
A escuta deve ser sofisticada também? Há quem diga gostar de clássicos, mas não entender. Essa pessoa deve dizer o mesmo quando ouve algumas canções de Chico Buarque: “Eu canto, mas não estou entendendo o que ele quis dizer”. A poesia também exige sofisticação de compreensão. Na música clássica, você não precisa entender previamente. O primeiro passo é apreciar e gostar do impacto.
E depois? Tomar alguns cuidados e se fazer algumas perguntas. Como você ouve música clássica? Em uma sala sinfônica, no silêncio, com concentração? Ou num restaurante, como música de fundo? O ideal é um ambiente adequado. Em lá estando, basta gostar do que está ouvindo. Gostando, você vai querer conhecer mais. Como é o violino? E o piano? Como é uma orquestra sinfônica? Qual foi a inspiração do compositor? Mas atenção, pois a experiência musical se explica até certo ponto. A música comunica o incomunicável. O genial de uma obra-prima é ela significar uma coisa para mim e outra para você.
A obra-prima musical seria como o texto bíblico, que se renova em significados e fala de formas diferentes? Nunca tinha pensado nisso, mesmo sendo algo que experimento todos os dias… É exatamente assim. Daí a música ser universal e transcender. Como o texto bíblico.
Indique um bom caminho para iniciação na música clássica. Eu começaria pelos maiores compositores da história. Beethoven, Mozart, Tchaikovsky, Vivaldi, Bach. Deixaria Villa-Lobos para depois, pois ele é um compositor complexo.
Melhor ao vivo ou em gravações? Havendo a chance de ouvir uma grande orquestra tocando uma sinfonia de Beethoven, esse é um ótimo começo. Deve-se passar pela experiência completa do concerto ao vivo: entrar, pegar o programa, ler, ouvir, bater palmas, sair para o intervalo, comentar, ouvir a segunda parte do programa. Se a orquestra ou o intérprete não forem de boa qualidade, melhor nem ir. Quem ainda não conhece pode ficar marcado por uma primeira experiência ruim. Se não houver acesso a concertos, providencie um belo DVD, um bom ambiente e um bom equipamento. Você pode também encontrar um lugar tranqüilo para ouvir um CD. Feche os olhos e se concentre para ouvir.
O maestro é um artista, um gestor e também um relações-públicas. Como vestir tantos chapéus? Este é o desafio. Um diretor artístico de orquestra tem todas essas responsabilidades e deve conseguir atuar com sucesso em áreas que exigem talentos diferentes. Mas o principal sempre tem de ser a música, a competência artística. A qualidade vem em primeiro lugar, e é o maestro que imprime isso. Fora do palco, a liderança administrativa exige uma equipe de produção, administração, marketing. Com patrocinadores, é preciso impressioná-los pe¬la música, mas também convencê-los de que este é um investimento sábio e que a contribuição à sociedade por meio de patrocínios culturais é inestimável. É preciso também inspirar o público.
A OSB está na contagem regressiva da inauguração de sua sede, a Cidade da Música, na Barra da Tijuca. É possível traçar paralelos com a Osesp às vésperas da abertura da Sala São Paulo? O paralelo é possível, pois eu estive envolvido com o projeto da Osesp desde o início. Trouxe para São Paulo a experiência de ter me formado em Nova York, ter trabalhado com grande número de orquestras internacionais, ter sido paralelamente diretor-adjunto da Osesp e regente associado da Filarmônica de Nova York, implementando conceitos internacionais. Com orquestra não se brinca. É algo com padrões estabelecidos há um século. A diferença está na forma de se fazer. As orquestras são diferentes, as cidades são diferentes e os momentos são diferentes. O projeto de São Paulo começou com recursos suficientes do governo. No Rio, temos de levantar os recursos. Na Osesp, uma grande sala já fazia parte do projeto da grande orquestra que se desejava implantar. Quan¬do a OSB tiver a sua sala, se Deus quiser, vai crescer muito mais.
Em apenas duas temporadas (2006-2007) a OSB já mudou bastante… Não apenas a OSB está mudando, mas o Rio muda. É uma cidade melhor hoje, mais valorizada, com mais investimentos. Há um potencial enorme que começa a ser explorado como se deve. A OSB tem hoje dois grandes mantenedores, a Prefeitura do Rio de Janeiro e a Companhia Vale do Rio Doce. A OSB é uma das instituições culturais brasileiras que mais atrai patrocinadores e parceiros. Graças a eles, ela se desenvolve a passos firmes, tornando-se um grupo de excelência artística, com grandes temporadas no Rio e em São Paulo e turnês nacionais anuais, além de importantes projetos educacionais e de inclusão social. O Rio de Janeiro vai ganhar a Cidade da Música, o maior complexo cultural da América Latina. Será a primeira grande obra arquitetônica de impacto desde o Maracanã, um marco na arquitetura carioca.
O que você destaca no projeto da Cidade da Música? Além da acústica fantástica, a beleza arquitetônica do projeto. É uma obra de arte assinada por um dos maiores arquitetos da atualidade, Christian de Portzamparc. A localização é linda. O complexo possui uma grande sala sinfônica de 1.800 lugares, que pode ser adaptada para ópera e balé. Uma sala para música de câmara e outra para música eletroacústica, salas de cinema e biblioteca. Há locais para ensaio e toda a estrutura de apoio que as grandes salas têm. Acredito que o impacto da Cidade da Música será parecido com o causado pelo Museu de Bilbao, na Espanha. O Brasil todo o sentirá, mas principalmente o Rio.
O tema do Festival de Campos do Jordão em 2008 será “Música e Literatura”. Comente. A programação vai mostrar os muitos frutos do casamento entre música e literatura. A colaboração de grandes gênios, como Richard Strauss, Miguel de Cervantes, Beethoven, Schubert, Carlos Gomes e José de Alencar. A programação completa será anunciada em abril ou maio de 2008.
E a Orquestra Acadêmica do Festival, sempre lhe dando alegrias? Essa orquestra, formada por bolsistas e alguns professores, tem um resultado impressionante. O maestro Kurt Masur esteve em Campos regendo a Acadêmica e ficou muito impactado. Dia desses, em uma entrevista na Europa, os jornalistas perguntaram se Masur conhecia o sistema de orquestras da Venezuela. Ele respondeu: “Sim, conheço o trabalho da Venezuela, é fabuloso. Mas vocês conhecem a orquestra de Campos do Jordão que eu regi? Ela é fantástica”. Em 2007, tivemos uma experiência sensacional com a soprano Kiri Te Kanawa. Ela ficou tão encantada com o festival que se ofereceu para voltar exclusivamente para dar aulas.
No Brasil, a direção da OSB e do Festival de Campos do Jordão. No exterior, a direção da Filarmônica de Calgary e a carreira como regente. Como conciliar os dois eixos? Fico feliz em poder fazer o Festival e fazer o trabalho no Rio. Em Calgary, tem sido uma experiência fascinante. Eu fiz a escolha de permanecer morando no Brasil, quando teria sido mais fácil para mim e para a minha família se eu levasse a carreira do exterior. A minha insistência em ficar aqui se deu justamente por haver mais oportunidades lá fora do que aqui.
Fale sobre a sua família. Família para mim é prioridade. Estou casado com Valéria há 16 anos e temos quatro filhos: a mais velha acaba de fazer 15. Nunca os deixei de lado para investir na carreira. Eu me desdobro. Se for preciso, gasto o que ganho no exterior para tê-los por perto.
O sucesso é um bom companheiro? O sucesso talvez não acompanhe sempre o artista, nem a fama, a saúde ou o dinheiro. Mas a entrega de ter a música como companheira, como parceira, isso vai até o fim. E, evidentemente, se você é uma pessoa de fé, tudo toma outra dimensão.
Como têm sido suas escolhas? Não sou do tipo professional climber, que só pensa na carreira. Minhas escolhas nem sempre são regidas por objetivos estratégicos. Eu tenho priorizado minha família e o Brasil. Procuro fazer o melhor onde estou. Acabo de fazer a minha estréia com uma das maiores orquestras do mundo, a de Cleveland, nos EUA, que sonho reger desde a adolescência. Regi a Sinfonia nº 2, de Brahms. O resultado foi ótimo, a crítica gostou. O prazer do maestro é reger uma sinfonia de Brahms, Beethoven, terminar e achar que fez jus àquela coisa fantástica. A realização está aí. Desde quando regia o coro na minha igreja ou na orquestra de Ribeirão Preto, a satisfação é a mesma. É a satisfação de fazer bem onde se está. E, se não conseguir o esperado, a insatisfação será a mesma em Piracicaba ou em Berlim.
Em suas viagens de trabalho, sobra tempo para visitar livrarias? Livraria, loja de partitura e loja de vinhos são os lugares que sempre visito nas cidades onde rejo. É uma delícia entrar em uma livraria, olhar livros, CDs, DVDs, ir ao café. Passo horas fazendo isso, sozinho ou com a família. Em São Paulo, gosto demais da Livraria Cultura do Shopping Villa-Lobos e a nova da Paulista. No Rio, vou à Livraria da Travessa.
Cultura é… a manifestação artística da nossa capacidade criativa e inteligente que herdamos de Deus.
Fonte: © Cristianismo Criativo.