Até onde vai nossa autonomia quando agimos em nossa vida?
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- Luiz Felipe Pondé
A filosofia sempre refletiu sobre os limites da ação humana para a realização do bem. O tema é vasto, mas podemos olhá-lo de perto num dos recortes mais claros desse problema, seguindo os passos da filósofa americana Martha C. Nussbaum, especializada nos gregos antigos.
Uma das suas obras capitais é traduzida no Brasil pela editora Martins Fontes: “A Fragilidade da Bondade, Fortuna e Ética na Tragédia e na Filosofia Grega”.
A pandemia que vivemos é um exemplo pleno do que um grego trágico chamaria de ação da fortuna: ainda que tenhamos algum controle sobre ela (técnico, político, médico), a pandemia é cega, violenta, cruel, sem nenhuma intenção inteligente de sê-lo, portanto um caso clássico da fortuna cega dos trágicos. Fortuna aqui é acaso, contingência, nada a ver com o uso comum de fortuna como grana.
E, assim como veio, aparentemente, poderá desvanecer. E o furor interpretativo buscará manter-se de pé, depois de cientistas de ocasião terem jurado o apocalipse absoluto.
- Luiz Felipe Pondé
A filosofia sempre refletiu sobre os limites da ação humana para a realização do bem. O tema é vasto, mas podemos olhá-lo de perto num dos recortes mais claros desse problema, seguindo os passos da filósofa americana Martha C. Nussbaum, especializada nos gregos antigos.
Uma das suas obras capitais é traduzida no Brasil pela editora Martins Fontes: “A Fragilidade da Bondade, Fortuna e Ética na Tragédia e na Filosofia Grega”.
A pandemia que vivemos é um exemplo pleno do que um grego trágico chamaria de ação da fortuna: ainda que tenhamos algum controle sobre ela (técnico, político, médico), a pandemia é cega, violenta, cruel, sem nenhuma intenção inteligente de sê-lo, portanto um caso clássico da fortuna cega dos trágicos. Fortuna aqui é acaso, contingência, nada a ver com o uso comum de fortuna como grana.
E, assim como veio, aparentemente, poderá desvanecer. E o furor interpretativo buscará manter-se de pé, depois de cientistas de ocasião terem jurado o apocalipse absoluto.
A pergunta é: até onde vai nossa autossuficiência,
ou autonomia, quando agimos em nossa vida?
E por “nossa vida” você pode entender o mundo, a sociedade, a política, o amor, a família, sua vida interior, enfim, tudo aquilo que compõe nossa existência concreta e diária.
E por “nossa vida” você pode entender o mundo, a sociedade, a política, o amor, a família, sua vida interior, enfim, tudo aquilo que compõe nossa existência concreta e diária.
Até onde você pode agir racionalmente e livremente
sem que a fortuna destrua ou limite essa sua ação racional e livre?
O problema pode ser resumido em três frentes.
O problema pode ser resumido em três frentes.
Primeiro, nossa ação no mundo depende de nosso
investimento em coisas a que damos valor, tipo melhorar o mundo, cuidar de quem
amamos, trabalhar em algo significativo, acumular bens materiais. Mas, para atingir tais realizações, ficamos à mercê
da fortuna em várias frentes: outras pessoas, instituições, condições de
trabalho, epidemias (!), herança genética, um universo gigantesco de variáveis
exteriores fora de nosso controle, logo ficamos submetidos à fortuna cega, que
é fruto das atitudes das pessoas em si, seus afetos, seus interesses e suas
relações, além dos elementos naturais e históricos fora de controle. Por exemplo: vai tudo bem no trabalho e no amor,
você pega coronavírus, a política nacional entra em surto, você fica com
dificuldades respiratórias, se desespera, fica com medo, e sua autossuficiência
vai para o espaço.
Um segundo campo de problemas é quando dois bens
(coisas que para você têm um valor positivo) entram em conflito e você não
consegue evitar um embate destrutivo entre esses dois bens. Dinheiro ou amor?
Filhos ou carreira? Ser corajoso e correr algum risco na pandemia ou ser
covarde e preservar com mais segurança sua saúde e dos seus? Guardar dinheiro
para uma velhice segura ou viver agora já que o futuro a Deus pertence, ou à
fortuna? Aqui, a fortuna age fazendo com que não haja
necessariamente harmonia entre os bens que você considera positivos e que
merecem seu cuidado e investimento. Preservar um implica destruir o outro.
Alexander Herzen no século 19 e Isaiah Berlin no 20 descreveram esse tipo
específico de conflito como o mais trágico de todos: o conflito entre o bem e o
bem.
Um terceiro campo de problemas é a vida dos afetos
humanos. Não os controlamos e eles contaminam nossa cognição, pensamento,
vontade e razão. O “pathos” grego, traduzido comumente como doença ou paixão,
revela esse vínculo entre afetos e desordem interna. O coração tem suas razões
que a própria razão desconhece (Pascal, século 17). A vida interior é um palco
para a devastação da fortuna constantemente.
Pois bem. A busca de ser virtuoso, honesto,
generoso, corajoso, prudente, tudo aquilo que os gregos chamavam de “aretê”
(virtudes) é acossada, no mínimo, por esses três campos de agentes
desagregadores da autonomia humana. E esse combate (“agon” em grego antigo) é
eterno, circular, implacável e sem necessariamente trazer nada em troca pelo
esforço empreendido. A fragilidade da bondade é justamente nossa
vulnerabilidade à fortuna. Desde a queda do Muro de Berlim quase acreditamos
que não seríamos mais vulneráveis a ela: o mundo seria uma festa.
Ledo engano.
Ledo engano.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2020/07/ate-onde-vai-nossa-autonomia-quando-agimos-em-nossa-vida.shtml
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