February 14, 2021

Os estágios do amor

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- Ricardo Barbosa

A oração é a experiência mais pessoal da fé cristã. Como disse o dr. James Houston, ela é a nossa impressão digital, aquilo que revela a nossa identidade e singularidade diante de Deus e de nós mesmos. Quando entramos no quarto para orar, fechamos a porta e ali, em completa solitude, tendo em nossa companhia apenas Deus, revelamos o que há de mais pessoal em nós e experimentamos a presença única e amorosa de Deus, que nos vê no lugar secreto e nos afirma.

É por meio da prática da oração que prosseguimos no longo caminho do amadurecimento pessoal, emocional e espiritual. A linguagem da oração revela a compreensão que temos do amor de Deus por nós, bem como a natureza do amor que temos para com Deus, para com o próximo e para conosco. Bernardo de Claraval (1090–1153), em seu Tratado do Amor de Deus, descreve os quatro estágios do amadurecimento do amor que podemos perceber na experiência da oração: 

  1. Amamos a nós por causa de nós mesmos;
  2. Amamos a Deus por causa de nós mesmos; 
  3. Amamos a Deus por causa de Deus; e 
  4. Amamos a nós por causa de Deus.
Os estágios do amor descritos por Claraval nos ajudam a entender o processo de amadurecimento por meio da transformação dos nossos desejos. A linguagem inicial da oração revela uma motivação de amor narcisista: buscamos a Deus por causa de nós. Apresentamos a Deus nossas necessidades de saúde, trabalho, família. 

No entanto, à medida que caminhamos, movemo-nos de um amor voltado a nós para um amor voltado a Deus, por causa de Deus, onde aprendemos a meditar nas gloriosas riquezas de Cristo, naquilo que ele fez de uma vez por todas na cruz, ressurreição e ascensão. 

Oramos a partir do mundo de Deus e nos vemos como parte da grande história. 

Finalmente, segundo Claraval, aprendemos a amar a nós, não mais por causa de nós, mas por causa de Deus. Noutras palavras, amamos a nós e o próximo com o amor do próprio Deus. 

Para ele, não podemos amar o próximo se Deus não for a razão desse amor. Ele pergunta: “Como pode-se amar o próximo, de modo desinteressado, quem não o ama em Deus?”. E ele mesmo responde: “Ora, quem não ama a Deus não pode amar em Deus. Primeiro, é preciso amar a Deus para poder também, em Deus, amar o próximo”.

A prática da oração nos liberta de uma realidade autocentrada para uma realidade centrada em Deus e no outro. Nossa cultura inverte a lógica do grande mandamento: em vez de amar a Deus de todo o coração, alma e força, e o próximo como a nós mesmos, aprendemos a usar a Deus e o próximo para o nosso benefício. A prática da oração, ao nos libertar do amor narcisista autocentrado para um amor altruísta centrado em Deus e no próximo, conduz-nos ao caminho da integridade, ou maturidade, que envolve a reconciliação de cada um de nós com Deus e com as outras pessoas. 

A oração nos leva a uma ausência de preocupação com o ego, à medida que amamos a nós por causa de Deus ou com o amor de Deus. A ausência do autointeresse é o sinal de que estamos livres de nós mesmos, e isso é uma expressão de maturidade. Não eu, mas Cristo em mim, como disse Paulo. Isso nos leva à consciência de nossa singularidade e identidade muito maior e mais rica do que jamais poderíamos imaginar. 

Quando estou em Cristo, torno-me uma pessoa mais livre e verdadeira do que seria capaz de conquistar por mim mesma. Para Claraval, da mesma forma que uma gota d’água derramada em muito vinho toma a cor e o sabor do vinho, assim também nós, quanto mais estivermos em Cristo, mais estaremos em nós e no outro.

Fonte: https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/377/os-estagios-do-amor-em-bernardo-de-claraval

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