Pastorinhas
Pastorinhas
É tão fácil ser feliz: basta buscar a beleza das coisas simples; elas estão aí, ao nosso redor
- por Roberto Rodrigues
No domingo fui ao teatro assistir a uma dupla de violonistas maravilhosos, artistas perfeitos, simples, simpáticos; intérpretes de verdade, sentiam o que faziam, e o faziam com gosto, improvisando muitas vezes, e o improviso era genial, dava alegria a eles pela beleza que criavam, contagiando a plateia com essa felicidade pura do prazer causado pela emoção. A música é a mais direta das artes, entra pelos ouvidos, inunda o corpo, invade a alma.
Ao final, aplaudidos de pé, riam os dois, abraçados no palco, agradecidos pelo bem que provocavam e sentiam. Todos queriam mais música, mais felicidade... Ninguém queria romper a mágica ligação criada pelos músicos, em um nível não terreno, quase espiritual. Todos haviam flutuado na delícia das notas que saíam das cordas e vibravam por sobre, sob e entre cada objeto e pessoa da plateia.
Saíram e voltaram. Sentaram-se e, sem dizer uma única palavra, começaram a tocar “As Pastorinhas”. Até aquele número, as outras peças eram menos populares: lindas todas, mas intensas no virtuosismo dos violonistas, pareciam obras clássicas, e o eram na verdade. A estrela d´alva despontou, cada acorde adoçando aquelas lamas com beatitude sem par.
De repente, sem nenhum sinal, algumas vozes começaram a cantar baixinho os lindos versos de amor. E aos poucos, mais pessoas foram aderindo ao sublime coro em surdina. E em surdina todo mundo cantou uma, duas, três vezes a letra toda. Os artistas no palco, abraçando seus instrumentos, deles tiravam o acompanhamento sutil para aquele majestoso coral delicado, num ritmo lento, embriagando com a mais pura emoção cada um. Muitos não conseguiram conter as lágrimas. Beleza, beleza pura, límpida, unindo a todos num amor derramado, dado, oferecido, coletivo, sem compromisso. Simples felicidade!
Ainda agora, tentando transmitir ao leitor a magia daquele momento raro, as lágrimas teimam em atrapalhar a visão. E de novo, como milhares de vezes antes, penso em como não é difícil ser feliz, ainda que por momentos. E de novo, como milhares de vezes antes, lembro-me de Otávio de Souza.
Ele era um velho pescador que vivia num rancho modesto à margem esquerda do rio Moji-Guaçu. Sereno como a brisa fresca do amanhecer, firme como a rocha da curva do caminho, comparava a vida ao rio: “tudo passa”, ele dizia; “aquela água que o senhor está vendo nunca mais voltará”; “com frio ou calor, com chuva ou com seca, o rio passa e a vida também”; “sempre vai amanhecer de novo”... Essas coisas óbvias que a gente esquece sempre.
Uma vez, mergulhado em indecisão sobre importante rumo a tomar na carreira, refugiei-me no rancho e pedi para ficar a sós, em silêncio.
No meio do dia, o velho trouxe um pratinho de lambaris fritos e depois serviu ovo feito na manteiga com arroz e feijão, mandioca cozida e um franguinho assado. Por fim, como não tivesse doce, sugeriu-me ir até a jabuticabeira carregada daquelas bolinhas pretas explodindo em doçura.
Ali, escolhendo nos finos galhos carregados as que pareciam mais maduras, pensamento perdido na indecisão, ouvi-o chegando, de manso. E me disse, também em surdina:
“Não sei qual é seu mal, mas sei de uma coisa: o que vale na vida são as coisas simples”.
Pronto! Para que complicar?
Tão fácil ser feliz: basta buscar a beleza das coisas simples. Elas estão aí, ao nosso redor. Dançando na rua, como as pastorinhas.
Fonte: Folha de S. Paulo, 21/11/09, Caderno Dinheiro, página B2.
No domingo fui ao teatro assistir a uma dupla de violonistas maravilhosos, artistas perfeitos, simples, simpáticos; intérpretes de verdade, sentiam o que faziam, e o faziam com gosto, improvisando muitas vezes, e o improviso era genial, dava alegria a eles pela beleza que criavam, contagiando a plateia com essa felicidade pura do prazer causado pela emoção. A música é a mais direta das artes, entra pelos ouvidos, inunda o corpo, invade a alma.
Ao final, aplaudidos de pé, riam os dois, abraçados no palco, agradecidos pelo bem que provocavam e sentiam. Todos queriam mais música, mais felicidade... Ninguém queria romper a mágica ligação criada pelos músicos, em um nível não terreno, quase espiritual. Todos haviam flutuado na delícia das notas que saíam das cordas e vibravam por sobre, sob e entre cada objeto e pessoa da plateia.
Saíram e voltaram. Sentaram-se e, sem dizer uma única palavra, começaram a tocar “As Pastorinhas”. Até aquele número, as outras peças eram menos populares: lindas todas, mas intensas no virtuosismo dos violonistas, pareciam obras clássicas, e o eram na verdade. A estrela d´alva despontou, cada acorde adoçando aquelas lamas com beatitude sem par.
De repente, sem nenhum sinal, algumas vozes começaram a cantar baixinho os lindos versos de amor. E aos poucos, mais pessoas foram aderindo ao sublime coro em surdina. E em surdina todo mundo cantou uma, duas, três vezes a letra toda. Os artistas no palco, abraçando seus instrumentos, deles tiravam o acompanhamento sutil para aquele majestoso coral delicado, num ritmo lento, embriagando com a mais pura emoção cada um. Muitos não conseguiram conter as lágrimas. Beleza, beleza pura, límpida, unindo a todos num amor derramado, dado, oferecido, coletivo, sem compromisso. Simples felicidade!
Ainda agora, tentando transmitir ao leitor a magia daquele momento raro, as lágrimas teimam em atrapalhar a visão. E de novo, como milhares de vezes antes, penso em como não é difícil ser feliz, ainda que por momentos. E de novo, como milhares de vezes antes, lembro-me de Otávio de Souza.
Ele era um velho pescador que vivia num rancho modesto à margem esquerda do rio Moji-Guaçu. Sereno como a brisa fresca do amanhecer, firme como a rocha da curva do caminho, comparava a vida ao rio: “tudo passa”, ele dizia; “aquela água que o senhor está vendo nunca mais voltará”; “com frio ou calor, com chuva ou com seca, o rio passa e a vida também”; “sempre vai amanhecer de novo”... Essas coisas óbvias que a gente esquece sempre.
Uma vez, mergulhado em indecisão sobre importante rumo a tomar na carreira, refugiei-me no rancho e pedi para ficar a sós, em silêncio.
No meio do dia, o velho trouxe um pratinho de lambaris fritos e depois serviu ovo feito na manteiga com arroz e feijão, mandioca cozida e um franguinho assado. Por fim, como não tivesse doce, sugeriu-me ir até a jabuticabeira carregada daquelas bolinhas pretas explodindo em doçura.
Ali, escolhendo nos finos galhos carregados as que pareciam mais maduras, pensamento perdido na indecisão, ouvi-o chegando, de manso. E me disse, também em surdina:
“Não sei qual é seu mal, mas sei de uma coisa: o que vale na vida são as coisas simples”.
Pronto! Para que complicar?
Tão fácil ser feliz: basta buscar a beleza das coisas simples. Elas estão aí, ao nosso redor. Dançando na rua, como as pastorinhas.
Fonte: Folha de S. Paulo, 21/11/09, Caderno Dinheiro, página B2.
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