November 21, 2011

Enquanto dormimos

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- Ricardo Barbosa de Souza

O salmo 127 é um convite ao descanso. Não um convite para não trabalhar, para entrar de férias, tirar algum recesso, mas um convite para aprender a descansar. Sem dúvida, aprender a descansar ou a entrar no descanso de Deus é uma das experiências espirituais que estão ficando cada vez mais raras. Encontrar as "águas de descanso" ou o "repouso dos pastos verdejantes", provar o "refrigério da alma" ou a ausência de medo quando atravessamos os vales de sombra e morte que Davi menciona no salmo 23 parece uma realidade distante, principalmente no contexto violento e estressante que vivemos.

O salmista inicia o salmo dizendo que todo o nosso esforço em edificar a casa e guardar a cidade é vão se não reconhecermos que é o Senhor quem realiza este trabalho; que inútil nos será levantar de madrugada, dormir tarde, comer o pão que penosamente conquistamos, porque aos seus amados, diz o salmista, ele dá o pão enquanto dormem.

Certamente nenhum de nós jamais recebeu o pão de cada dia enquanto dormia. Sabemos que o pão que comemos todos os dias nos é dado enquanto trabalhamos. É o fruto do trabalho de cada dia. Trabalhamos oito, dez, às vezes até 12 horas por dia para garantir o pão, o aluguel, a escola, o transporte de cada dia. Como então ele afirma que o recebemos enquanto dormimos?

Nossa dificuldade em compreender este salmo está diretamente relacionada com nossa incapacidade de compreender a natureza do Criador. Depois de ter criado todas as coisas visíveis e invisíveis, de ter criado o homem e mulher à sua imagem e sua semelhança e de ter reconhecido que tudo era muito bom, o Criador, no sétimo dia da Criação, o sábado, descansa e nos convida para celebrar este descanso com ele, celebrar a obra da Criação e a segurança de que o mundo tem um Criador.

Eugene Peterson, falando sobre o significado do sábado, diz: "Quando anoitece, eu me deito para dormir e me entrego aos cuidados de Deus; desligo e, pelas próximas seis, oito ou dez horas, caio num estado de inconsciência em que me torno absolutamente improdutivo. Aí eu acordo, descansado, pulo da cama cheio de energia, agarro uma xícara de café e saio correndo porta afora para começar a fazer as coisas! E qual é a primeira coisa que eu descubro (aliás, um tremendo golpe no meu ego)? É que tudo já havia começado horas, séculos atrás! Enquanto eu dormia profundamente (antes mesmo que eu nascesse), todas as coisas importantes já vinham acontecendo. Quando eu saio em disparada para o meu dia de trabalho, estou penetrando num mundo no qual Deus já se encontrava em plena atividade, em que mais da metade já ficou para trás! Quando eu começo, é um trabalho cujo plano básico já estava estabelecido, as responsabilidades dadas, as operações em ação." Esta consciência de que há um Criador que permanece cuidando e preservando sua criação e que nos convida para celebrá-la é que nos abre a porta para um verdadeiro e real descanso em Deus.

Muitas vezes não descansamos porque não aprendemos esta lição básica: Deus, muito antes de existirmos, desde toda a eternidade, já vinha trabalhando e realizando sua obra. A graça e o cuidado de Deus nos precedem. Todos os dias, quando acordamos, despertamos para um mundo de Deus; um mundo que não criamos e que é mantido pela graça e pelo poder de Deus. Quando invertemos esta ordem e começamos a achar que o que fazemos durante o dia (trabalho, vigilância, cuidado) é o que mantém o mundo em ordem, e nos esquecemos de que é Deus quem, enquanto dormimos, enquanto permanecemos inativos e improdutivos, dá ordem ao mundo, passamos a viver ansiosos, aflitos e preocupados. É por isto que o salmista diz que todo o nosso esforço em guardar e edificar é vão. Não porque nosso trabalho é desnecessário, mas porque quem guarda e edifica é Deus.

Mais uma vez cito Peterson (recomendo a leitura do capítulo que fala sobre "Um sábado sem sentido" do livro De volta à fonte, Encontro Publicações), onde ele diz: "Ao preparar-me para dormir, o que me marca não é uma sensação de exaustão e frustração porque ainda há tanta coisa por fazer e por terminar, mas é a expectativa. O dia está para começar! As palavras do Gênesis de Deus estão a ponto de ser ditas novamente. Durante as horas que eu passo dormindo, como ele irá se preparar para utilizar minha obediência, meu serviço e o meu falar quando romper a manhã? Enquanto nós dormimos, coisas grandes e maravilhosas, muito além de nossas capacidades de inventar ou engendrar, estão em pleno andamento: a lua marca as estações, o leão rosna diante de sua presa, as minhocas esburacam e arejam a terra, as proteínas reconstituem nossos músculos e nosso cérebro restaura, por meio dos nossos sonhos, uma sanidade mais profunda que subjaz o burburinho e a maquinação das horas que passamos acordados. Nosso trabalho se encaixa no contexto do agir de Deus. O esforço humano é honrado e respeitado, não como uma coisa em si, mas por sua integração aos ritmos da graça e da bênção." Penso que é isto que o salmista quis dizer ao afirmar: "Aos seus amados ele o dá enquanto dormem."

O próprio salmista ilustra isto com uma experiência bem humana. Ele afirma que os filhos são herança do Senhor. Qual o trabalho que temos para gerar os filhos? Coabitamos com nosso cônjuge; e Deus, dia a dia, nos nove meses que se seguem, realiza o milagre da fecundação e da gestação. Enquanto isso, o que fazemos? Nada. Se o Senhor não abençoar, cuidar, nutrir, guardar, inútil será todo o nosso esforço. Enquanto dormimos, enquanto não fazemos nada, Deus realiza sua gloriosa obra de criação.

É neste contexto da ação criadora de Deus que encontramos significado e dignidade para o nosso trabalho. Deus existe muito antes de nós, e é ele que edifica e guarda. Na medida em que nos encaixamos no ritmo de Deus em obediência e reverência, nós nos realizamos com o seu cuidado, a sua devoção e a sua diligência. É assim também que entramos no descanso de Deus, reconhecendo que, enquanto dormimos, ele cuida e realiza a sua obra.

Há muitos que vivem hoje num mundo sem Criador, e outros que vivem com um Criador sem mundo. Tanto um como outro gera sentimentos de cansaço e ansiedade. Viver num mundo sem Criador é não reconhecer que há uma ordem, um ritmo, um propósito e um cuidado que se encontra para além de todo o nosso esforço para promover o sentido do mundo e da história. Para estes será inútil levantar de madrugada e comer o pão conquistado com o penoso trabalho de cada dia. Viver com um Criador sem mundo transforma o mundo num lugar hostil, uma terra onde não há descanso, onde não encontraremos os lugares tranqüilos e as fontes de repouso. Descansar em Deus é reconhecer sempre que "aos seus amados ele dá o pão de cada dia enquanto dormem".

Fonte: http://www.lideranca.org/cgi-bin/index.cgi?action=viewnews&id=242
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