July 23, 2012

Coma este livro

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- pr. Eduardo Pedreira Rosa

Uma das cenas mais marcantes descritas por João no livro do Apocalipse é aquela na qual ele tem um encontro com um anjo que trazia nas mãos um livro aberto. Dos muitos aspectos impressionantes daquele encontro, salta aos olhos o momento no qual ele recebe uma ordem para comer o livro. Assim João relata o fantástico diálogo: “A voz que ouvi, vinda do céu, estava de novo falando comigo e dizendo: ‘Vai e toma o livro que se acha aberto na mão do anjo em pé sobre o mar e sobre a terra’. Fui, pois, ao anjo, dizendo-lhe que me desse o livrinho. Ele, então, me falou: ‘Toma-o e devora-o; certamente, ele será amargo ao teu estômago, mas, na tua boca, doce como mel’. Tomei o livrinho da mão do anjo e o devorei; e, na minha boca, era doce como mel; quando, porém, o comi, o meu estômago ficou amargo” (Apocalipse 10.8-10).

Essa maravilhosa cena é uma metáfora perfeita da relação que os primeiros cristãos nutriam com a Bíblia. A Palavra de Deus não era apenas lida ou estudada; era degustada. O simbolismo de comer o livro aponta para esta maneira de ler o texto bíblico, que ia além da especulação racional. Assim, não era apenas João, na dimensão celeste, quem comia o livro; cotidianamente, na dimensão terrestre, cristãos se reuniam em torno das Escrituras para, por assim dizer, mastigá-la, ora saboreando as doçuras das suas promessas consoladoras, ora encontrando o amargo sabor dos seus juízos.

A prática de comer, deglutir, mastigar – ruminar, mesmo – a Palavra de Deus, ao invés de simplesmente lê-la, é outra das poderosas ideias que marcaram a história da espiritualidade cristã que temos compartilhado neste espaço. A lectio divina, como depois veio a ser conhecida tal maneira de ler a Bíblia, desde o século 4, com os pais do deserto, até aos dias de hoje, tem se revelado uma das mais profundas e transformadoras disciplinas espirituais daqueles que avançam para um nível de profundidade maior na sua relação com Deus. Os seus praticantes comparavam a prática da lectio divina com a experiência de Jacó quando teve visão de uma escada, conforme descrito em Gênesis 28.12 – “E sonhou: e eis uma escada posta na terra, cujo topo tocava nos céus; e eis que os anjos de Deus subiam e desciam por ela”.

A lectio divina é essa escada. Ela tem sua base na terra, mas a outra extremidade está no céu; é o ponto de ligação entre as duas dimensões da nossa existência. É bom dizer aos que desejam subir essa escada que ela tem cinco degraus. Em outras palavras: todos aqueles que, no corre-corre do cotidiano, desejam praticar essa poderosa ideia de comer a palavra (lectio divina) deverão dar cinco passos. Mas, atenção – todos esses degraus estão relacionados entre si e há somente uma maneira de se chegar ao último: é preciso subi-los um a um.

O primeiro está mais perto da terra e é mais fácil de ser alcançado; contudo, à medida que se vai subindo, a dificuldade aumenta. Os passos para a lectio divina são o silêncio, a leitura, a meditação, a oração e a contemplação. O silêncio nos aquieta, preparando-nos para a leitura. Caladas as vozes internas e externas, lê-se pausada e vagorosamente o texto. Depois da leitura, começa a meditação. É aquele processo de refletir e assimilar o que foi lido. Então, o passo seguinte é a oração, para oferecer resposta àquilo que o texto diz. Somente então mergulha-se na contemplação, um estado de gozo advindo do encontro com a Palavra de Deus.

O poeta do Apocalipse nos fez ver a Palavra de Deus como um alimento, um livro a ser comido. Se é assim, cada passo da lectio divina tem um sentido muito especial. O silêncio é o aperitivo que abre o apetite; a leitura nos leva a comer o pão da Palavra; a meditação faz com que absorvamos o conteúdo das Escrituras lidas; a oração é que dá o sabor; e a contemplação é aquela gostosa sensação de satisfação que vem depois de se saborear um banquete. Agora, imagine, por um momento só, se essa poderosa ideia de comer a Palavra todos os dias através desses cinco movimentos fosse vivida profundamente por cada cristão? Qual não seria a qualidade do nosso cristianismo? Não seríamos todos nós o tempero de Deus para salgar este mundo? A maldição da superficialidade não seria substituída pela bênção da profundidade? Então, subamos a escada de cinco degraus e comamos o livro! Que ideia poderosa!

Fonte: http://www.cristianismohoje.com.br/materia.php?k=786
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