Brincando no Paraíso
- pr. Ricardo Barbosa
A experiência devocional na relação conjugal, para mim, por muito tempo causou um sentimento de culpa e uma certa dose de inadequação. Casei com aquele ideal de culto doméstico que, na verdade, nunca foi devidamente incorporado em nossa rotina familiar — pelo menos, não na forma como eu havia idealizado.
Para ser sincero, a vida devocional, da forma como encontro em alguns livros ou vejo nos filmes, foi um grande fracasso na nossa família. No entanto, isto não quer dizer que nunca houve uma vida devocional familiar. Talvez a expressão mais adequada para se referir à nossa experiência devocional seja a do cultivo da presença de Deus nas nossas rotinas. Cultivar a presença de Deus envolve mais do que separar uma hora diária para leitura bíblica, cânticos e orações.
Cultivar a presença de Deus é uma arte. Requer atenção, cuidado e vigilância. A vida devocional para muitos, resume-se naquilo que fazemos para Deus. Naqueles momentos que separamos para cantar, orar e meditar nas Escrituras. Isto certamente é bom e necessário. O problema é que ficamos apenas com isto. É apenas mais um item dos nossos inúmeros compromissos diários.
A espiritualidade cristã não é apenas o que eu faço para Deus, mas também a compreensão e a aceitação do que Deus está fazendo em mim e naqueles que vivem e partilham a vida comigo.
Se entendemos que a graça de Deus é sempre ativa e que Ele continuamente está agindo em nós, a vida devocional de uma família envolve, sobretudo, esta arte de dar atenção ao que Deus está fazendo e celebrar sua graça e seu amor.
Gostaria de considerar estes dois elementos fundamentais da nossa experiência espiritual na família: a atenção ao que Deus está fazendo e nossa resposta na forma de adoração. O cultivo da presença de Deus na família, como já disse, é uma arte. Esta arte acontece quando as pessoas que formam uma família concordam que Deus é um Deus que age e decidem dar atenção a isto. Não é uma tarefa fácil, pois somos pessoas naturalmente desatentas e treinadas a dar atenção apenas àquilo que é visível e imediato.
Penso que grande parte das crises conjugais e familiares tem a ver com a desatenção. Somos incapazes de discernir os movimentos da alma, banalizamos os eventos comuns e rotineiros, não reverenciamos os mistérios da vida e tratamos com descaso tudo aquilo para o que não temos uma resposta ou solução. Não olhamos para a família como um jardim onde o hábil Jardineiro realiza sua tarefa permanente de regar, limpar, podar e cuidar.
Quando o apóstolo Paulo afirma que "todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus" ( Rm 8.28 ), ele está reconhecendo que é preciso estar atento aos acontecimentos, que tudo que nos cerca está pleno de significado e propósito, que há promessas se cumprindo, que o soberano e amoroso Deus age por meio dos eventos comuns.
Paulo também afirma que mantinha seus olhos fixos "não naquilo que se vê, mas no que se não vê". Para ele, os grandes eventos aconteciam num campo invisível, onde somente os olhos da fé eram capazes de percorrer.
O cultivo da presença de Deus na relação conjugal e na família sempre traz consigo o risco de uma espiritualização barata e ingênua. Cultivar a presença de Deus não significa viver neuroticamente, procurando dar algum sentido espiritual a todos os acontecimentos ou buscando revelações proféticas para todas as perguntas sem respostas. Muito pelo contrário, significa apenas criar espaços dentro da família para este hóspede desejado e reconhecer que o propósito da espiritualidade cristã é o nosso crescimento em Cristo e nossa conformidade com Ele.
Dar atenção ao que Deus está fazendo é ajudar uns aos outros a crescer em direção à plenitude da verdadeira humanidade em Cristo Jesus. Sendo mais objetivo, o cultivo da presença de Deus na família tem a ver com o processo de tornar nossos filhos e cônjuges mais semelhantes a Cristo.
Isto nos leva a considerar o outro aspecto da experiência espiritual da família: a celebração ou adoração. Mais uma vez, reconheço que devo fugir dos modelos limitadores. Adorar é brincar no mundo de Deus. Teresa de Ávila dizia que seu desejo era apenas o de ser um brinquedo nas mãos do menino Jesus.
Celebramos a presença de Deus não apenas nos momentos que paramos para orar e cantar, mas também quando rimos e provamos o prazer da Sua companhia. Nossa herança religiosa nos condiciona a pensar que somente aquilo que fazemos no culto doméstico é devocional. Isto não é verdade.
Cantares é um dos livros mais devocionais da Bíblia, sem, contudo, apresentar uma única oração. Cantares reconhece o beijo apaixonado de um casal, a contemplação do corpo com toda a sua beleza e o seu mistério, o sexo e todas as sensações que ele provoca como forma de adoração. Cantares descreve duas pessoas brincando uma com a outra em todos os caminhos da vida. A aliança entre um homem e uma mulher é celebrada em Cantares como uma adoração ao Deus que nos criou.
A prática da presença de Deus dentro de um lar nos liberta da compulsão de produzir, realizar, transformar nossos lares em vitrines perfeitas, modelos de sucesso, e nos conduz ao desejo de celebrar, alegrar, rir, chorar, lamentar, enfim, viver com intensidade todas as circunstâncias da vida.
Não podemos nem devemos limitar a vida devocional da família a alguns momentos separados para a liturgia do culto. É preciso olhar mais além e fazer do lar o jardim onde brincamos com a Criação de Deus. Isto, para mim, é cultivar Deus dentro do meu lar.
Fonte: http://www.lideranca.org/cgi-bin/index.cgi?action=viewnews&id=188
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