Sou
fisioterapeuta, formada desde 2010, com especialização em fisioterapia
cardiorrespiratória no INCOR – Instituto do Coração do Hospital das
Clínicas da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo.
Trabalhei também com oncologia no Instituto do Câncer do Estado de SP e
após três anos de experiência hospitalar, migrei para a área de
osteopatia em 2014.
Eu estava no meu consultório,
onde me encontrava numa agenda repleta de pacientes à procura de
reabilitação e de cura, quando, de repente, chega o ano de 2020. O mundo
literalmente foi envolvido por uma forte e assustadora onda caótica,
que tinha o poder de adoecer pessoas, famílias, cidades, países e
simplesmente paralisar vidas frente ao coronavírus e a Covid-19.
Em
frente ao caos que se apresentava diante de meus olhos, percebi que o
mundo precisava de gente disposta a ajudar, inclusive na área da
fisioterapia respiratória e ventilação mecânica. Assim, meu coração foi
totalmente invadido por algo diferente. Eu simplesmente não via outra
opção. Meu coração batia forte com esse desafio, me dizendo que era ali que eu tinha de estar. No meio do caos.
Em
oração, pedi a Deus que me enviasse uma resposta, para que alguém do
serviço de fisioterapia hospitalar entrasse em contato comigo. E a
resposta veio mais rápida do que podia imaginar: em um mesmo dia tive
dois chamados da área de RH de dois hospitais em São Paulo. O desafio
agora era a escolha do local.
Nesse momento, tomei
conhecimento que o Instituto Central do Hospital das Clínicas iria se
tornar um “covidário”. Seriam 300 leitos somente de UTI e pelo menos
mais 500 leitos de enfermaria, totalmente disponíveis para atendimento
de pacientes graves de Covid-19. Meu coração se inclinou para servir
nesse lugar.
Fui falar com meus pais e é claro que
eles ficaram muito apreensivos com as consequências daquela decisão.
Mas, em família, entendemos que não havia outra opção, que era ali, na
UTI do Hospital das Clínicas, que eu deveria estar. Tivemos que adaptar a
logística e aluguei um pequeno apartamento próximo ao hospital. O total
distanciamento familiar seria necessário naquele momento.
Meu
coração tinha um desejo muito grande de ajudar aquelas vidas, que eu
não tinha capacidade intelectual para dimensionar sobre riscos, salário,
ou qualquer questão burocrática envolvida; eu não me importava com o
que viesse depois. Se essa fosse minha última missão de vida... seria
ali! O medo que aterrorizava a nossa terra me dava forças para me
inclinar em amor por um outro alguém.
Então eu
tirei os brincos, os anéis, o relógio, o colar... todas as roupas e
sapatos bonitos que estava acostumada a usar. Coloquei máscara, óculos
de proteção, face shield, roupa privativa, avental de proteção e
luvas. E fui... um dia de cada vez. Entendi que o melhor a fazer, além
da competência técnica, era levar ânimo, força e esperança para os
profissionais que já estavam cansados e sobrecarregados. E junto com a
equipe, ser instrumento de cura e de esperança aos pacientes internados.
Rotina no hospital
A
equipe passou por um treinamento intensivo, mas não imaginávamos
exatamente com o que iríamos lidar. Recebemos treinamentos em avaliação
específica, posição prona, em novos ventiladores mecânicos, além de uma
plataforma de suporte on-line atualizada, que os profissionais poderiam
acessar a qualquer momento.
Os pacientes que
chegavam já estavam enfrentando um quadro de gravidade importante, com
evolução da cascata inflamatória, o que chamávamos de tempestade
inflamatória. Com isso, não era somente o pulmão que estava
comprometido. Alguns pacientes evoluíam com problema de fígado, outros
com uma alteração cardíaca e renal. A recomendação terapêutica adotada
foi visando manter o paciente em níveis adequados de sobrevivência, para
que o seu próprio organismo tivesse condições biológicas de cura. O
suporte básico de vida foi o nosso lema o tempo todo.
Cuidados com a equipe
A
princípio, as pessoas achavam amedrontador estar num hospital que só
recebia casos de Covid-19 e apelidado de “covidário”. Mas por incrível
que pareça, muitos da equipe relatavam que se sentiam mais seguros e
protegidos ali dentro do que em um supermercado. Havia os EPIs e todos
da equipe estavam conscientes e, ao mesmo tempo, se cuidavam. A equipe
de limpeza era exímia na atitude corajosa de entrar nas UTIs para fazer a
limpeza e a higienização dos quartos, do chão, tirar o lixo e
desinfecção dos ambientes.
Aconteceram acidentes
biológicos? Sim. Profissionais foram contaminados? Nem todos. A taxa de
contaminação interna de funcionários foi baixa perto do que acontecia em
outros hospitais, e em alguns casos, bem menor em relação a hospitais
que não eram especializados em atendimento a Covid, por não estarem
adaptados para essa realidade.
A equipe de
trabalho estava focada para juntos aprender o máximo, fazer o melhor e
cuidar muito bem dos pacientes. Havia dias que tudo se desorganizava. Um
número grande de pacientes se desestabilizava ao mesmo tempo. Nas
primeiras semanas, o maior desafio da equipe foi conseguir interagir e
compreender o momento diferente e emergencial que todos estavam
envolvidos. Havia excelentes médicos, talvez os melhores médicos do
mundo em terapia intensiva e eu presenciei vários deles, tomarem uma
atitude de humildade e dizer para equipe: “Eu preciso de vocês. São
vocês, cada um em sua especialidade, que estão fazendo a diferença nessa
UTI.” Iniciaram diálogos entre equipes para melhor entendimento da
dinâmica de cada UTI do “covidário”. O que um fez que deu certo? O que o
outro fez que deu certo? O objetivo de todos era o bem-estar dos
pacientes e proporcionar a eles um maior grau de estabilidade e de
sobrevivência.
Experiência com os pacientes
Graças
a Deus não tivemos que conviver com pacientes no corredor do hospital
sem assistência médica. Todos os pacientes encaminhados para o Hospital
das Clínicas eram atendidos com muita excelência.
Tivemos
muitos óbitos e perdas importantes, mas também tivemos muitas pessoas
se recuperando. Às vezes não sabíamos exatamente como aquela história
iria terminar, mas sabíamos que éramos os responsáveis por dar todas as
condições possíveis de forma incansável para que aquela vida tivesse
condições de sobreviver.
Nesse período, muitas
vezes eu não podia fazer absolutamente nada. Precisava simplesmente
esperar que aquele organismo desse alguma resposta. De mãos atadas me
perguntava... “como eu ainda posso fazer a diferença naquela vida?”
Passava a orar e a cantar louvores na beira do leito de muitos
pacientes. Orava e dizia palavras de esperança e de vida; muitas vezes,
inclusive, precisava dizer que era tempo de ir embora e de deixar o
próprio Deus cuidar em um novo céu e uma nova Terra. Não tenho dúvidas
que muitos pacientes foram visitados pelo amor e pela graça de Deus.
Tivemos
um paciente jovem em um pós-operatório de cirurgia oncológica no
esôfago que após o procedimento foi diagnosticado com Covid-19. Evoluiu
com insuficiência respiratória moderada, necessidade de oxigênio e de
cuidados respiratórios intensivos, porém não seria a melhor opção
entubá-lo, pois havia um risco de comprometer a região da cirurgia.
Optaram
pelo tratamento de ventilação não invasiva e de alto fluxo, realizando
as terapias de forma intercalada. Aos poucos foi melhorando até que foi
para enfermaria e finalmente teve alta hospitalar.
Foi
então que me deparei com um vídeo que viralizou, que mostrava a reação
do filho ao ver o pai. A criança não estava esperando a surpresa. Ela se
emocionou muito e a mãe fala para a criança: “Filho, você pode chorar”.
E é aí que ele se dá conta que é o pai. Então ele vai para o seu colo e
o abraça. Ao ver aquela cena, percebi que a dimensão era além do
hospital. O paciente grave que passou por nossos cuidados, depois de
curado, em sua casa há um encontro do filho com o pai, que ele nem sabia
se ia encontrar novamente.
Esse foi um caso que
me fez entender que valeu a pena cada detalhe e cada minuto que vivi na
UTI de Covid-19. Cada fração de segundo valeu a pena!
Voltar à realidade do mundo aqui fora
Quando
aceitei o desafio de ir para o hospital, não sabia por quanto tempo
ficaria lá, mas sabia que precisava monitorar este tempo. A partir do
momento que a onda começasse a diminuir, eu também tinha que retomar
minha vida e sabia que era temporário. Da mesma forma que foi abrupta a
entrada de pacientes, de repente começou a diminuir o número de novos
casos. Percebíamos dois ou três leitos de UTI vagos por um período todo.
Daqui a pouco um leito vago por 24 horas. E percebeu-se que já não era
mais necessária aquela quantidade de leitos. Os pacientes que estavam
chegando, já não eram tão graves em relação aos que chegaram
primeiramente. Após 90 dias de trabalho na UTI, eu saí.
Foi
difícil. Meu coração estava grato ao Senhor, cheio de alegria. Mas a
desconexão dessa experiência de alto impacto deveria ser sentida
gradativamente. Parece que fiquei meio perdida no espaço. Precisava de
um tempo para aterrissar de forma tranquila e branda.
Em tão pouco tempo, houve uma transformação em mim. Passei a ter outras percepções de vida.
Recebi
um chamado para uma missão. Percebi que ao receber essa grande tarefa,
recebi também um estado de ânimo interno que me protegeu. Eu não tinha
medo. O ímpeto da ajuda foi muito maior que o medo. E acho que foi esse
sentimento que me sustentou. Meu foco não era na doença, era na solução.
Eu entendia que eu era um meio de solução, então eu tinha que ir.
Havia
momentos críticos no hospital. Eu me cansava, ficava triste. Mas
percebia que meu corpo tinha a reserva energética para lidar com aquele
momento. Logo depois eu deixava relaxar. Adotei algumas estratégias que
compreendiam ter um boa noite de sono. Conseguia pela manhã me
reorganizar internamente. Fazia períodos de oração, de meditação, ouvia
uma música que deixava meu coração mais animado. Dessa forma, sinto que
pude levar algo positivo para dentro da UTI, tanto para os pacientes
quanto para meus colegas de trabalho, onde conheci pessoas
maravilhosas.
Em nenhum momento me senti
angustiada. Algumas vezes ligava a televisão e pensava que eu estava
vivendo num mundo paralelo. Não era possível que o que eu via na TV
poderia ser pior do que o que via no hospital, apelidado de “covidário”.
Havia
o sentimento de gratidão imensa em poder ajudar. O sentimento de
impotência enorme em às vezes não poder fazer nada e o sentimento de
extrema certeza que a mão de Deus, os anjos de Deus, a nuvem de glória
estavam comigo naquele lugar de uma forma que eu nunca senti antes!
Chorei, dei risada, cantei, me senti frustrada, me alegrei, fiz high five com o paciente que recebia alta, celebrei cada mínima melhora e conheci pessoas incríveis.
Simplesmente vivi um dos melhores e mais lindos momentos de minha vida!
Ali,
no meio do caos, Deus me resgatou, me curou e me permitiu levar uma
atmosfera de amor e de cura por aqueles corredores! Ali Deus me
protegeu, me iluminou, me usou e me guiou! Ali eu encontrei um novo
sopro de vida!