March 27, 2021

Resgatando a presença redentora e transformadora de Deus na história

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Ricardo Barbosa de Sousa

O reverendo John Stott no seu livro Por Que Sou Cristão, onde, de forma pessoal, descreve as razões e os fundamentos da sua fé em Cristo, apresenta as três aspirações básicas de todo ser humano: a busca por transcendência, a busca por significado e a busca por comunidade, que, segundo ele, somente a fé em Cristo pode atender. Porém, num certo sentido, as três envolvem a realidade fundamental da transcendência.

A transcendência é o princípio que nos liberta de toda forma de reducionismo. Somos inclinados a pensar que tudo que precisamos está disponível dentro da realidade material e tecnológica em que vivemos. Achamos que é possível encontrar significado e realização numa carreira profissional, que por estarmos conectados com o mundo por meio da internet pertencemos a uma comunidade global, ou que, pelo fato de recebermos alguma aprovação nas redes sociais, podemos nos sentir aceitos. São formas reducionistas de perceber a realidade.

A negação da transcendência é, entre outras coisas, uma negação da história, noutras palavras, a negação do passado. O divórcio do presente com o passado numa cultura materialista e tecnológica compromete toda a busca por comunidade e significado. Somos uma espécie de Mr. Bean que despenca de algum lugar incerto do espaço numa noite escura e busca viver de forma desajeitada num mundo sem passado e sem memória.

Meu neto de 3 anos de idade me pede, com certa frequência, que lhe conte histórias da minha infância. De alguma forma o presente dele está ligado ao passado de sua família. A fé que ele abraça hoje é a fé dos seus pais, avós e bisavós. É nesse sentido que afirmamos que a fé cristã é histórica. Cremos no Deus de Abraão, Isaque e Jacó, no Deus de nossos antepassados e que se torna o nosso Deus pessoal.

Essa percepção histórica da ação e presença de Deus nos ajuda a entender a importância da transcendência na história e a compreender a realidade mais ampla e profunda de Deus, que sempre agiu com Seu braço forte libertando, perdoando e salvando. Muitos jovens não acreditam que alguma coisa relevante possa ter acontecido antes da descoberta do computador, celular e internet.

Somos seres alienados num universo falsamente conectado. A percepção reducionista da realidade bloqueia a memória e encobre o passado. Como forma de nos proteger das feridas do passado, desenvolvemos comportamentos compensatórios e atuamos no presente como nossos próprios redentores e fabricantes da realidade. Quanto mais confiamos em nossos mecanismos compensatórios, menos experimentamos a presença redentora e transformadora de Deus. Tornamo-nos tão dependentes do presente e de nós mesmos que Deus é percebido apenas nos fragmentos de algumas situações pontuais, mas não como presença eterna.

A perda da transcendência nos leva a olhar para a vida e não encontrar sentido. Vivemos conectados, porém sem comunidade. A história de Israel é a história de um povo muitas vezes oprimido, exilado, escravizado, esperando pela salvação de Deus. O trabalho dos escribas era o de preservar na memória do povo os grandes feitos de Deus. As festas sagradas eram um meio de preservar o passado no presente e apontar para o futuro. Era a história que ajudava o povo na sua busca por identidade. 

A busca humana por transcendência, significado e comunidade acontece quando reconhecemos Deus numa longa história. Podemos olhar com confiança para o futuro porque trazemos na memória os feitos de Deus na grande história da redenção.

Fonte: https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/370/a-perda-da-transcendencia-na-historia

March 26, 2021

Intercessão, a disciplina do amor

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- Ricardo Barbosa de Sousa

Uma realidade que tenho experimentado ao longo de minha vida é que a prática da oração cria em nós uma nova linguagem e um novo jeito de nos relacionarmos. Precisamos de uma linguagem adequada para nos relacionarmos com Deus e com os outros. É sobre o segundo aspecto da linguagem da oração que quero refletir um pouco.

Uma marca dos autores do Novo Testamento é a prática de orar uns pelos outros. Paulo, por exemplo, em suas cartas, seja para uma igreja ou para amigos pessoais, mostra o seu mais profundo afeto por eles pela forma como ora por eles. Escrevendo aos cristãos de Filipos, ele diz: “Dou graças ao meu Deus por tudo que recordo de vós, fazendo sempre, com alegria, súplicas por todos vós, em todas as minhas orações” (Fp 1.3-4). A linguagem de Paulo revela lembranças, alegria, saudade, sentimentos de amor e gratidão por seus irmãos e irmãs de Filipos. Da mesma forma, ao escrever para seu filho na fé, Timóteo, ele afirma: “Dou graças a Deus, a quem, desde os meus antepassados, sirvo com consciência pura, porque, sem cessar, me lembro de ti nas minhas orações, noite e dia (2Tm 1.3).

Os apóstolos e os grandes santos não apenas intercediam por igrejas e amigos em particular, como também recebiam a graça de Deus por meio da oração de outros. É assim que Paulo reconhece a intercessão dos discípulos de Jesus de Corinto a seu favor: “Ajudando-nos também vós, com as vossas orações a nosso favor, para que, por muitos, sejam dadas graças a nosso respeito, pelo benefício que nos foi concedido por meio de muitos” (2Co 1.11). Essa era a forma como os cristãos promoviam a comunhão e fortaleciam suas amizades por meio da bênção espiritual na prática da oração intercessória. Acredito que essa linguagem e prática de oração sejam fundamentais para os dias que vivemos.

As últimas eleições trouxeram grande sofrimento e ruptura no coração das igrejas. Porém, quando o mesmo espírito de intercessão atua no coração e na alma do povo de Deus, a mesma amizade que os santos do passado experimentaram torna-se uma possibilidade real entre nós hoje. A oração sincera diante de Deus pelo outro, em especial pelo outro que nos ofendeu ou que se sente ofendido, transforma o coração de quem ora e com certeza transformará o coração daqueles por quem oramos, trazendo graça abundante e unindo nossos corações em Cristo.

Não há nada que nos torne mais próximos de nossos irmãos e que nos leve a amá-los mais do que a oração. Um grande amigo certa vez compartilhou comigo que quando se casou fez um voto especial a sua esposa: prometeu-lhe que nunca iria dormir sem orar com ela e por ela. Ele disse que fez esse voto porque sabia que é impossível ser honesto com Deus sendo, ao mesmo tempo, desonesto com a pessoa por quem você ora. Ele disse que, por causa desse voto, nunca foram dormir sem que antes resolvessem todas as mágoas daquele dia.

Se todos nós, diante de sentimentos como ressentimento, raiva e desapontamento, em vez de sermos indulgentes conosco ou julgar e condenar os outros, nos dedicarmos à oração intercessória por aqueles que provocaram tais sentimentos, certamente seremos poupados das feridas que crescem e nos tornam menos misericordiosos. Portanto, ao perceber o menor sinal de conflito ou tensão com outra pessoa, ore por ela, suplique a Deus que a abençoe e lhe dê a graça da alegria e da prosperidade. Inicie o ano de 2019 orando pela igreja no Brasil para que haja paz e unidade entre o povo de Deus.

Fonte: https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/375/intercessao-a-disciplina-do-amor

March 25, 2021

Renovando a esperança

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O que significa esperar em Deus?

- por Isabelle Ludovico

Vivemos numa época marcada por numerosas fontes de estresse. A violência, o desemprego, a corrupção, a crise do relacionamento homem/mulher são alguns dos fatores que geram muita insegurança. Somos alimentados por uma avalanche de notícias ruins, dramas acontecendo ao redor do mundo, guerras, terremotos, tsunamis etc... que aumentam ainda mais o nosso desânimo. Temos medo dos nossos sentimentos, medo de outras pessoas, medo de perder o que temos e medo do desconhecido. Pessoas com medo tendem a construir mecanismos de defesa, armas e carapaças para se proteger dos perigos. Algumas se tornam irritáveis a ponto de qualquer transtorno desencadear explosões desproporcionais, mostrando que a panela de pressão já ultrapassou o seu limite.

Outras pessoas ficam paralisadas diante da mínima ameaça e vão limitando seu espaço interior e exterior para evitar situações conflitivas. Vivem trancadas emocionalmente e privam-se, desta forma, do que é a essência do ser humano: amar e ser amado. A maior parte busca esquemas de fuga no ativismo, no trabalho, nas compulsões por bebida, comida, remédios ou outros vícios, e no consumismo, para citar apenas alguns. Pessoas movidas pelo medo estão mais propensas a se comportar de maneira agressiva. Qualquer sensação de ameaça gera reações impulsivas que não passaram pelo crivo da razão. Ficamos na defensiva, desconfiados, preocupados apenas em nos proteger, em preservar e acumular bens para nos garantir. Custamos a admitir que não temos controle sobre o nosso futuro. Não escolhemos nascer nem decidimos a hora da nossa morte, a menos que desistamos de viver.

Quando finalmente admitimos a nossa própria impotência e reconhecemos as nossas limitações, podemos então nos voltar para o Criador de todas as coisas que sustenta o universo e nos afirma que não cai um só fio dos nossos cabelos sem o seu consentimento. Esperar em Deus é confiar na sua promessa de estar conosco sempre. Esta espera não é uma atitude passiva, acomodada ou resignada. Pelo contrário, trata-se de uma parceria que nos leva a fazer o melhor para usufruir, multiplicar e compartilhar os recursos que Ele nos confiou. Significa viver ativamente o presente e investir nele, sabendo que o mal já foi vencido na cruz e, por isto, não prevalecerá.

Esperar é confiar na perspectiva de Deus que é mais ampla que nossos desejos finitos e parciais. Abrir mão de nossa visão estreita e de nossas expectativas limitadas permite deixar-se surpreender pelas soluções extraordinárias de Deus. Pegar a sua cruz é aceitar a vida, abrindo-se a todas as possibilidades. É desistir de tentar exercer um controle ilusório sobre o nosso futuro e abrir-nos ao novo na convicção de que Deus, como diz Henri Nouwen, nos trata de acordo com o seu amor e não de acordo com o nosso próprio medo.

Assim, podemos ter a coragem de afirmar, como Dietrich Bonhoeffer na prisão, que Deus é um Deus de amor mesmo quando à nossa volta vemos apenas rancor. Podemos proclamar que a vida suplanta a morte como a luz invade a escuridão enquanto a escuridão não consegue se impor onde há luz.

Quando descobrimos que nada pode nos separar do amor de Deus, encaramos o medo de perder o que já temos e o medo do desconhecido e os transformamos em coragem de acolher com fé o futuro, sabendo que “todas as coisas cooperam para o bem daqueles que amam a Deus”. E, parafraseando a música famosa, afirmo: “Quem sabe tem esperança, por isso faz a hora, não espera acontecer”. 

Esperar em Deus é sair dos nossos esconderijos para encarar a vida de peito aberto, com suas alegrias e tristezas, na certeza de que cada detalhe ocorre diante do olhar amoroso de um Deus que nos quer bem

Assim, em vez de fugir ou refugiarmos numa atitude egoísta, podemos nos tornar agentes de transformação e sinais de esperança, como pontuou tão bem Agostinho: “A esperança tem duas filhas lindas, a indignação e a coragem; a indignação nos ensina a não aceitar as coisas como estão; a coragem, a mudá-las”.

Fonte: http://www.revistaenfoque.com.br/index.php?edicao=85&materia=1131

March 24, 2021

Escolha de caminhos

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"Porque os meus pensamentos não são os vossos pensamentos, nem os vossos caminhos, os meus caminhos, diz o SENHOR".

Isaías 55:8

- pr. Mário Fernandez

Das muitas meditações que ouvi sobre este texto, poucas chamam a atenção para algo que talvez seja sutil demais para ser notado sem um estudo mais cuidadoso. Deus tem seus próprios pensamentos e caminhos, que são diferentes dos nossos. Ouço tanta gente falando sobre a diferença entre eles, mas quase ou nunca ouço falar sobre escolher o caminho de Deus.

Nas nossas igrejas locais, nas células, nas comunidades, nas famílias e até na nossa vida prática individual, o que mais ouvimos são pessoas pedindo que Deus abençoe suas vidas, seus pensamentos e seus caminhos. Isso, não como ato reflexo ou involuntário, mas como expressão de uma realidade interior e invisível de uma alma que sente, embora não admita, que Deus tem algum tipo de obrigação de abençoar, ou que não resta outra alternativa a não ser pedir a bênção ou se arrebentar.

Existe alternativa sim, e este texto é apenas um exemplo dos muitos que podemos tomar para mostrar isso. Pare de pedir que Deus abençoe seus caminhos (decisões, estilos, hábitos, gostos, companhias) e passe a andar nos caminhos dEle. O texto diz que este caminho existe e é diferente dos nossos. Vantagem? Já está abençoado pois é o caminho de Deus.

É uma forma diferente do tradicional de encarar o andar com Deus, mas tenho aprendido que o conformismo e o não-aprofundamento nos estudos tem sido nossa ruína. Nossos caminhos jamais serão os caminhos deles. É como um carro muito muito muito velho e destruído para o qual pedimos que o mecânico dê um jeitinho para que ele ande mais um dia. Que sentido tem isso, se podemos andar de carro novo? É duro admitir, mas isso é soberba, senso pervertido de independência de Deus.

Dependemos de Deus e devemos nos portar assim. Não pedindo que Ele abençoe nosso caminho, mas que nos ensine a andar no dEle.

"Pai, tem misericórdia de mim que sou tão imperfeito diante de Ti. Ensina-me a andar nos Teus caminhos abençoados".

Fonte: http://ichtus.com.br/publix/ichtus/devocional/escolhadecaminhos.html

March 16, 2021

A serenidade da alma

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- Ricardo Barbosa

Jesus nos ensina a orar no contexto da vida inquieta e ansiosa (Mt 6). 

A ansiedade e a inquietação fazem parte hoje do modo natural de viver. Alguns chegam a pensar que uma vida sem ansiedade é não só impossível, como também irreal. Precisamos dela para acordar, trabalhar, se relacionar, culminando com um tranquilizante para relaxar e dormir, e, depois, começar tudo novamente. 

No entanto, é por causa dessa inclinação humana que Jesus nos chama para entrar no quarto, fechar a porta e reconhecer a presença oculta e silenciosa de Deus. A quietude do quarto é o espaço necessário para se aprender a orar e fazer sossegar a alma agitada, mas isso parece ser mais difícil do que imaginamos.

Para mentes e corações ansiosos e inquietos, o salmista revela-nos o que acontece no silêncio do quarto: “Somente em Deus, ó minha alma, espera silenciosa; dele vem a minha salvação […]. Somente em Deus, ó minha alma, espera silenciosa, porque dele vem a minha esperança” (Sl 62.1-5). A espera silenciosa no Senhor é um princípio básico da oração. A disciplina da espera é a resposta de Deus para mentes e corações inquietos.

Esperar significa reconhecer que os caminhos de Deus são melhores do que os nossos. A serenidade da alma expressa o desejo de ouvir e conhecer os pensamentos de Deus, submeter-se a eles e experimentar a consciência de sua presença. Por outro lado, a ansiedade é a reação emocional de uma alma inquieta e perturbada, que encontra dificuldade em se submeter a Deus e que insiste em ter o controle de todas as coisas.

É comum para a alma agitada e perturbada falar mais, inclusive em oração, mas aprendemos que, nesses momentos de ansiedade, o melhor mesmo é encontrar um lugar calmo e permanecer ali em silêncio, buscando ouvir a voz suave de Deus. A espera é a disciplina espiritual necessária quando nos vemos perturbados e abatidos: “Por que estás abatida, ó minha alma? Por que te perturbas dentro de mim? Espera em Deus, pois ainda o louvarei, a ele, meu auxílio e Deus meu” (Sl 42.5).

O exercício da espera tira de nós o peso de insistir em nosso jeito de viver e resolver os problemas.

Uma luta constante que todos enfrentamos é achar que as nossas opções são sempre as melhores. É por isso que o salmista afirma que esperou confiantemente pelo Senhor (Sl 40). 

Não se trata apenas de uma espera paciente, mas de uma espera confiante. Não se sabe quanto tempo ele precisou esperar, mas no momento certo Deus se inclinou para ele. Gosto desta expressão: “Ele se inclinou para mim”. Deus vem até nós, se curva e procura nos ouvir mesmo quando nossa voz já não consegue emitir som algum. Ele se inclina como um pai se inclina para ouvir o seu filhinho. 

Não se trata de um ouvir displicente, desinteressado, mas atencioso e amoroso.

O Salmo 46 descreve um cenário de conflitos e tensão. Em meio a ameaças de guerras e tumultos, o silêncio do quarto nos convida a duas atitudes fundamentais. Uma delas é contemplar as obras do Senhor (v. 8). 
Ver o que Deus já fez e está fazendo. Tudo neste mundo é mais barulhento do que Deus.

É no silêncio que o barulho do mundo cessa e as obras de Deus aparecem. A outra atitude é aquietar e saber que Deus reina (v. 10). 

Se cremos que Deus é o Senhor, a serenidade é a atitude correta de quem sabe que ele tem a palavra final. É a oração da espera silenciosa, e não a ansiedade, que nos coloca em contato com a realidade e nos conduz ao descanso da alma.

Fonte: https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/381/a-serenidade-da-alma

March 15, 2021

A fé viva

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- Ricardo Barbosa

A fé é uma realidade presente na vida de todo ser humano. Todos têm fé em alguém ou alguma coisa. 

Mesmo a pessoa mais cética possui fé, porque ninguém vive sem crer em algo, mesmo que esse algo seja a própria pessoa. É a fé que possuímos que nos move.

A fé cristã se distingue das demais em razão do seu objeto. Cremos em Jesus Cristo. Quando Tomé toca nas feridas de Jesus e se prostra diante dele confessando: “Senhor meu e Deus meu!” – reconhecendo-o como Senhor e Deus –, a partir de tal confissão, a vida de Tomé e de todos os que compartilham dela é completamente redefinida.

A carta de Tiago é um dos textos do Novo Testamento que melhor explora a dinâmica da fé cristã. Tiago é simples, coerente e prático. Na sua carta, a fé deixa de ser um conceito abstrato e se torna uma realidade objetiva. Logo no início, ele nos apresenta cinco palavras que nos ajudam a entender o sentido e a dinâmica da vida cristã: fé, provação, perseverança, integridade e sabedoria.

A fé cristã é a resposta que damos ao chamado de Cristo para sermos seus discípulos. Esse chamado implica crer nele e segui-lo num caminho que envolve obediência, entrega, transformação e serviço.

Provação (tentação ou teste) envolve todas as situações da vida que testam a fé que temos em Cristo. Não se trata apenas de situações difíceis, mas também de boas. O desemprego pode nos afastar de Cristo, mas um bom emprego também.

Perseverança significa permanecer constante em algo ou alguém. No caso da fé cristã, permanecer em Cristo e no serviço do reino de Deus.

Integridade é o processo em que nos tornamos inteiros (razão, emoção e corpo): tudo está integrado em torno do objeto da fé.

Sabedoria, por sua vez, é a capacidade de discernir e escolher o melhor.

Para Tiago, a fé é testada todos os dias. No momento em que acordamos, se inicia um novo caminho onde iremos responder ao chamado de Cristo como seus discípulos. Precisaremos fazer escolhas, tomar decisões, trafegar por ruas congestionadas, nos relacionar com pessoas nervosas e ansiosas. Essas são provações da fé. Não são simples aborrecimentos inevitáveis: são situações de vida em que revelamos quem seguimos e qual caminho estamos trilhando. À medida que avançamos em meio às provações em obediência fiel a Jesus Cristo, nosso caráter vai sendo formado por meio da perseverança e nos tornamos pessoas íntegras, emocional e espiritualmente maduras.

Tiago diz que, se alguém, em meio a tudo isso, precisar de sabedoria, é só pedir a Deus que ele generosamente a concede. Toda provação exige de nós sabedoria. Precisamos dela para tomar as decisões certas, nos relacionar com pessoas de forma correta, enfrentar situações complexas com maturidade. Porém, Tiago afirma que essa sabedoria não é concedida para a pessoa de “ânimo dobre”, dividida, que não sabe o que quer, que confessa de forma racional a Cristo, mas se recusa a andar no seu caminho. Pessoas que caminham ao sabor do vento e cujo destino pode ser qualquer lugar.

Fé, provação, perseverança, integridade e sabedoria: estão todas conectadas. O discípulo de Cristo tem a sua fé provada todos os dias. A perseverança é a evidência de que, apesar das provações, seguimos confiando e obedecendo a Jesus. Como resultado da perseverança, vamos nos tornando pessoas íntegras e maduras e, quando enfrentarmos situações difíceis que exigem sabedoria, Deus a dará, à medida que seguirmos firmes no caminho do discipulado.

Fonte: https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/376/a-fe-que-e-viva

March 14, 2021

Do controle ao autoabandono

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- Ricardo Barbosa de Sousa

A jornada espiritual é um longo caminho onde aprendemos a confiar menos em nós e mais em Deus. É um processo lento e sem nenhuma garantia de sucesso. 

Sabemos que os caminhos de Deus são diferentes dos nossos e seus planos estão muito acima dos nossos. Confiar no que não conhecemos nem controlamos nunca foi fácil para ninguém. No fundo, queremos que Deus nos ajude em nossos caminhos e que abençoe os nossos planos, de forma que a vida que queremos viver seja agradável, segura e feliz, sem perdermos o controle sobre ela.

Carregamos um medo não confessável de nos entregar a Deus. Por causa desse medo, vivemos exilados em um mundo pequeno, de horizontes limitados, incapazes de nos identificar com o mundo de Deus e nos entregar a ele, embora seja esse nosso anseio mais fundamental. Porém, como vamos confiar nosso futuro a Deus e nos entregar ao seu cuidado se a nossa visão dele é tão limitada e superficial?

Davi, no Salmo 37, nos faz um convite ousado: “Entrega o teu caminho ao Senhor, confia nele, e o mais ele fará”. O desejo de viver de forma confiante e segura em Deus é intrínseco à fé, mas sabemos, pela experiência pessoal, que com uma mão buscamos tocar nas mãos de Deus expressando nosso desejo de sermos guiados por ele, e com a outra nos agarramos aos nossos recursos e resistimos à entrega total.

A confiança em Deus, de certa forma, desenvolve-se num mundo de incertezas, mas a tecnologia nos envolve num mundo de certezas -- ou falsas certezas. Hoje, em vez de recorrer à oração diante de uma enfermidade, recorremos aos planos de saúde e aos centros que oferecem as melhores tecnologias de diagnóstico e tratamento. A segurança tecnológica substitui a entrega do caminho a Deus e a confiança de que “o mais ele fará.” Nossos antepassados aprenderam a confiar em Deus em parte porque contavam com poucos recursos para os grandes problemas que tinham de enfrentar.

A visão que temos de Deus é superficial e limitada por causa do desejo de termos o controle. A visão bíblica de Deus é sempre uma ameaça à autoconfiança do homem. E é a própria autoconfiança que nos leva a um sentimento de que Deus é sempre frio, impessoal e distante e isso nos leva à frustração na experiência espiritual e à falta de intimidade com o Deus vivo. Ela nos condena a uma vida de superficialidade na relação com ele e leva ao desenvolvimento de mecanismos de controle, aumentando a distância e a impessoalidade. Avançamos confiando menos em Deus e mais em nós.

A confiança envolve a consciência de nossa absoluta necessidade de Deus. Se não dependemos dele, somos propensos a cultivar um tipo de ateísmo prático, porque acreditamos que conseguimos aquilo de que necessitamos sem qualquer dependência consciente de Deus. Diante da forte ênfase contemporânea na autossuficiência, tendemos a depender mais do uso das técnicas do que do Espírito de Deus. Queremos viver em Deus, sem depender de Deus, agir em nome de Deus, sem qualquer consciência da necessidade real que temos dele. Não somos capazes de negá-lo, mas também não cultivamos uma consciência da necessidade dele.

Expressões comuns que descrevem a confiança em Deus tornam-se cada vez mais estranhas a nós: “temor do Senhor” ou “esperar no Senhor”. Dificilmente um cristão moderno conseguiria esperar 25 anos para ver realizada uma promessa de Deus como aconteceu com Abraão. Provavelmente não escolheríamos Davi, o mais jovem da casa de sua família, para ser o futuro rei de Israel. Certamente não entenderíamos o motivo de permanecer setenta anos num cativeiro e aceitá-lo como um processo necessário de transformação.

A confiança em Deus nos ajuda a colocar todas as coisas em perspectiva. Aprendemos que vivemos sob o pacto de uma aliança com a graça redentora de Deus, e não com a mentalidade neurótica e manipuladora da nossa cultura impaciente.

Fonte: https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/371/do-controle-ao-autoabandono

March 13, 2021

Experimentando os limites da confiança

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- Ricardo Barbosa

Não sabemos quanto confiamos em Deus enquanto não formos levados às difíceis provas da fé. Abraão, o pai da fé, passou por várias provações em sua jornada, algumas vezes fracassando. O teste final da sua confiança em Deus está registrado em Gênesis 22.2: “Toma teu filho, teu único filho, Isaque, a quem amas, e vai-te à terra de Moriá; oferece-o ali em holocausto, sobre um dos montes, que eu te mostrarei”.

Certamente este é um dos textos mais complexos e difíceis de entender. A professora Ellen Davis afirma o seguinte em relação a este episódio: “O ponto principal desta história não é levar as pessoas a crerem no Deus de Abraão – que na verdade é o Deus de Jesus e o Pai. Em vez disso, esta história impressionante existe para ajudar as pessoas que já creem em Deus darem sentido às suas experiências mais difíceis, quando Deus parece ter tirado de nós tudo aquilo que recebemos das suas mãos”.

Sabemos que, a qualquer momento, nosso mundo pode virar de pernas para o ar. São situações que nunca pensamos que poderíamos ter de enfrentar. Experiências nas quais somos levados a entregar a Deus o que jamais imaginávamos que ele um dia pediria de nós. O problema que Abraão enfrenta não é apenas o sacrifício do seu filho, o que já seria um sofrimento inimaginável, mas também a quebra da aliança da qual Isaque era a promessa. Duas perguntas surgem. A primeira: um Deus que pede a um pai que entregue seu filho em sacrifício seria um Deus confiável? Principalmente quando este filho é fruto da promessa do próprio Deus? A segunda: Abraão seria uma pessoa confiável? Deus poderia confiar nele e entregar-lhe uma tarefa tão crucial para toda a humanidade? Abraão é a pessoa que Deus escolhe para abençoar todas as famílias da terra. Em outras palavras, Deus depende de Abraão para abençoar as nações da terra, e estas dependem de Abraão para conhecer a Deus.

Que Abraão precisa aprender a confiar em Deus não é surpresa alguma. O que chama a atenção é a necessidade de Abraão ser confiável a Deus. Se Abraão não for totalmente confiável, toda a esperança do mundo estará comprometida. Sabemos que a relação de confiança envolve riscos de ambos os lados. É possível que você sofra frustrações e desapontamentos da pessoa em quem você confia, mesmo Deus. Ele sofre e se entristece pela nossa infidelidade e idolatria. Não deve ser simples para Deus nos escolher para realizar sua missão no mundo, muito menos para se relacionar pessoal e intimamente conosco.

O que Deus e nós esperamos desse tipo de relacionamento? Um relacionamento muitas vezes marcado por desapontamentos e sofrimentos de ambos os lados? Ellen Davis diz que a resposta possível é que o amor só pode florescer num relacionamento de mútua confiança. Este é o único lugar onde o amor pode crescer e se expressar livremente. A confiança é o fundamento para o desenvolvimento dos nossos afetos. Porém, é necessário reconhecer que a confiança precisa ser mútua. Afirmamos, com certa facilidade, que precisamos confiar em Deus, mas não perguntamos igualmente se somos confiáveis a ele.

O caminho que Abraão percorre com Isaque até o monte Moriá é o caminho que Jesus percorre até o Gólgota. Ambos revelam uma história de amor e confiança mútua da qual o mundo inteiro depende. Nem sempre sabemos aonde o relacionamento de confiança com Deus pode nos levar, mas o evangelho deixa isso claro: ele sempre nos leva para a cruz.

Fonte: https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/382/experimentando-os-limites-da-confianca

March 05, 2021

Dando sentido à fé e às emoções

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- Ricardo Barbosa

A fé cristã tende a permanecer impessoal e subjetiva até sermos colocados diante de situações que requerem de nós uma resposta pessoal e objetiva. O problema para muitos cristãos que cresceram numa cultura racionalista e pragmática é que só conseguem dar sentido à sua fé se ela for sistematizada e funcional. Porém, existe um outro lado dessa moeda, em que a fé só ganha significado quando ela for também pessoal, e não apenas racional; quando ela envolve nossas emoções, e não apenas a razão. Mesmo possuindo a fé solidamente fundamentada em verdades bíblicas, muitos cristãos entram em crise ao passarem por experiências pessoais dramáticas e serem forçados a olhar para si mesmos e para o próprio coração, e a perguntar se tudo aquilo que sempre professaram faz algum sentido naquela situação particular que estão vivenciando.

Na conversa de Jesus com Marta, quando seu irmão Lázaro morreu, Jesus disse a ela que seu irmão haveria de ressurgir. Marta concordou dizendo que ele iria ressuscitar no último dia. Jesus, porém, lhe disse: “Eu sou a ressurreição e a vida. Quem crê em mim, ainda que morra viverá; e todo o que vive e crê em mim não morrerá, eternamente. Crês isto?”. A fé que Marta tinha na ressurreição precisava agora de uma resposta pessoal para uma situação específica. “Você crê no que eu estou afirmando?”, foi a pergunta pessoal de Jesus a Marta.

Numa outra ocasião, enquanto o Mestre dormia tranquilamente no barco, os discípulos de Jesus, ao enfrentarem uma tempestade, acordaram desesperados, pois o medo de perecerem era imenso. Jesus acordou, repreendeu o vento e a fúria das águas e perguntou aos discípulos: “Por que vocês são tímidos? Por que a fé de vocês é tão pequena?”. Eles precisavam mostrar que a fé deles, naquela circunstância, era uma fé que fazia sentido para aquela situação particular.

A gramática da fé não é apenas racional sobre doutrinas bíblicas, é também uma gramática pessoal de relacionamento. Posso ter conhecimento das doutrinas bíblicas, dos atributos de Deus e ajustá-los dentro de um sistema racional de convicções, mas posso também nunca ter experimentado, pessoalmente, o significado da fidelidade ou misericórdia de Deus numa situação particular da minha vida. É comum encontrarmos pessoas que abandonaram a fé, ou se tornaram cínicas ou céticas, mesmo tendo demonstrado, durante anos, conhecimento das doutrinas cristãs e envolvimento com os programas religiosos. O problema é o pouco ou nenhum envolvimento pessoal e emocional com essa fé.

Viver pela fé envolve essas duas realidades. É fundamental termos nossa fé ancorada nas Escrituras Sagradas e no testemunho do povo de Deus na história bíblica, porém é igualmente fundamental dar um significado pessoal a essa mesma fé, fazendo com que ela dê sentido às experiências pessoais de cada um. É comum professarmos a fé num Deus bondoso e fiel e, diante de uma tempestade em que nos vemos ameaçados de morte, encontrarmos um Deus distante, frio e impessoal. A gramática racional da fé não é, necessariamente, a gramática emocional e afetiva da fé. As provações, como afirma Tiago em sua carta, são provações da fé, e elas afetam nossas emoções, quando geram medo, angústia e ansiedade. Porém, quando enfrentadas honestamente, nos tornam perseverantes e, por fim, nos levam à integridade. Em outras palavras, as provações integram a razão com as emoções no exercício de uma fé sadia.

Fonte: https://www.ultimato.com.br/revista/artigos/380/dando-sentido-a-fe-e-as-emocoes

March 03, 2021

Medo, prudência e coragem em tempos de pandemia

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- Ricardo Barbosa

Nestes dias de isolamento, estava procurando um livro para ler, e vi na estante um exemplar fino e encadernado com espiral. Não me lembrava dele e peguei para ver do que se tratava. Era uma biografia da médica e missionária Dra. Rettie Wilding (1899-1986). Ganhei esse livro do seu filho, Dr. Joe Wilding, médico em Anápolis, minha cidade natal. Ele foi médico de toda a minha família, desde meus avós, além de ter sido, também, meu professor na escola dominical. 
 
Tive o privilégio de conhecer pessoalmente a Dra. Rettie. Fomos membros da mesma igreja enquanto morei em Anápolis. Antes de ler o livro já conhecia um pouco da sua história, mas no ano passado me encontrei com o Dr. Joe e conversamos um pouco sobre seus pais e o trabalho missionário deles aqui no Brasil. Ele ficou de me enviar uma cópia do livro de sua mãe: Sowing in Tears (Semeando em Lágrimas). Pouco tempo depois o livro me chegou às mãos. Dei uma rápida olhada e o guardei para ler com calma. Providencialmente li neste período de pandemia e isolamento social. 
 
Era uma noite comum, como têm sido estas semanas de isolamento, quando iniciei a leitura do livro da Dra. Rettie e me deparei com a sua experiência como médica missionária na Ilha do Bananal entre os índios Carajás. Não consegui parar de ler. Sua história foi como uma luz que brilhou em meio às incertezas e angústias que vivemos.
 
Dra. Rettie nasceu na Escócia. Formou-se aos 24 anos em medicina e, aos 27 anos, já possuía sua própria clínica, casa e carro. Se conquistar isso hoje já é um prodígio, imagine na década de 20 do século passado. Aos 8 anos ela comentou com sua mãe que gostaria de ser missionária quando crescesse. Sua mãe ouviu atenciosamente o desejo da filha, guardou aquilo em oração, mas nunca a procurou influenciar. 
 
Em 1929, com sua carreira profissional bem encaminhada, ela ouviu um sermão sobre o chamado de Abraão. Ela descreve que enquanto ouvia o pregador lendo o texto bíblico, tremia dos pés à cabeça. Saiu da igreja com a certeza de que Deus havia falado com ela, como falou a Abraão para sair de sua terra e do meio de sua parentela. Mesmo sem saber para onde iria, como também foi com Abraão. Naquela noite, em seu quarto, foi tomada por uma intensa alegria e disse a Deus que estava “ansiosa por obedecer, pronta para seguir, a qualquer custo”. 
 
Ela havia participado de algumas reuniões da União Evangélica Sul Americana e ouviu falar da necessidade de médicos na Ilha do Bananal, no Brasil. Ela orou e disse a Deus que estava pronta para ir para onde ele a enviasse, inclusive para as regiões mais difíceis, como a Ilha do Bananal. Ela descreve que naqueles dias viveu “com seus olhos voltados para a glória além e nada parecia impossível”.
 
Depois de se desfazer de sua clínica e seus pertences, em 1930, ela chega no porto de Santos. De lá seguiu para São Paulo, depois para Catalão, Goiás Velho (capital de Goiás à época), Leopoldina (hoje Aruanã) e, de lá, duas semanas de barco até a Ilha do Bananal. Já trabalhavam na Ilha como missionários um casal e Josiah Wilding (com quem ela se casaria poucos anos depois). Dra. Rettie, àquela altura, era uma jovem de 31 anos, que abrira mão de uma carreira promissora de médica na Escócia, e agora se encontra feliz e grata numa ilha distante, cuidando da saúde e da evangelização de indígenas e moradores das vilas próximas. Passava o dia tratando de doenças, como malária – muito comum naquela região, catarata, catapora, picadas de cobra e todo tipo de enfermidade comum para uma região remota, sem médicos ou hospitais. 
 
Junto com seus colegas, construiu um pequeno hospital, uma escola para as crianças e uma igreja e, quando começaram a aparecer os portadores de hanseníase (lepra como era conhecida na época), edificou um leprosário. Durante o dia o trabalho médico era intenso. As noites e os domingos eram dedicados à evangelização e à instrução dos convertidos. 
 
As dificuldades que a Dra. Rettie enfrentou foram imensas e inimagináveis para qualquer um de nós. Qualquer deslocamento era longo e desconfortável. Os perigos enfrentados numa região remota eram constantes, a falta de material para o trabalho médico era enorme, os recursos escassos e o número de pessoas para cuidar da evangelização, educação, e outras atividades era pequeno. Buscar material para o atendimento médico era tarefa que levava semanas de viagem a barco em meio a todos os perigos que se corria. 
 
No entanto, o que nos chama a atenção no seu relato é que, ao lado do trabalho exaustivo e cheio de perigos que a ocupava dia e noite, havia a sua alegria de servir àquele povo, falar da salvação em Cristo e ver homens, mulheres e crianças sendo convertidos e batizados. Sua paixão pelo evangelho de Cristo, pelos indígenas de vários grupos da região e toda a população que vivia nas vilas, como também sua alegria em os servir é simplesmente impressionante.
 
Em novembro de 1932 ela e o missionário Josiah Wilding se casam em Anápolis. Logo após a cerimônia de casamento, no mesmo dia, retornam para a Ilha do Bananal, felizes e cheios de esperança. No final de janeiro do ano seguinte, seu marido é diagnosticado com malária e no dia 3 de fevereiro ele falece. Ficaram casados apenas por um pouco mais de dois meses. Ela se sentiu completamente desolada. Passados alguns meses, ela volta para a Escócia onde dá à luz ao seu único filho que recebe o nome de seu pai. Quando o pequeno Joe está com apenas 8 meses, eles voltam para a Ilha do Bananal para dar continuidade ao trabalho.
 
Não é difícil imaginar o sofrimento e as dificuldades que a Dra. Rettie enfrentou. Solidão, angústia e temores fizeram parte de sua vida, porém, nada disso diminuiu o amor, dedicação e coragem com que realizava o seu trabalho. A história dela inspira e contrasta com a de muitos cristãos nos dias de hoje, porque a segurança dela e disposição frente aos desafios e perigos que enfrentou, depara-se com o sentimento de medo e paralização que afeta muitos de nós nestes tempos de pandemia. 
 
O vício que encobre a virtude

A fronteira que separa o medo da prudência, e da prudência com a coragem é muito tênue. Gregório Magno (540-604), em sua clássica obra O Cuidado Pastoral, alerta os novos pastores dizendo-lhes que frequentemente os vícios assumem a aparência de virtudes. A avareza se apresenta com o nome de parcimônia; a indulgência com o nome de bondade; ira com o nome de zelo e a precipitação com a prontidão. As virtudes, muitas vezes, escondem vícios. Para ele, os pastores não deveriam ficar impressionados com as virtudes que as pessoas demonstravam, mas com os vícios que estas virtudes escondiam.
 
A prudência é uma virtude que pode, muitas vezes, esconder um vício: o medo. Imagino que quando a Dra. Rettie compartilhou com familiares e amigos a decisão de dedicar sua vida como médica missionária na Ilha do Bananal, ouviu conselhos para não fazer isto. Afinal, era uma mulher jovem, solteira, médica, com casa, carro e clínica, e poderia servir a Deus sem precisar deixar seu país, família, para se aventurar num mundo desconhecido e perigoso. Não seria prudente. É possível que alguns destes conselhos tenham partido de pessoas prudentes, porém, é também possível que os mesmos conselhos tivessem sua origem no medo. A virtude pode mascarar o vício. 
 
Foi seu advogado quem a encorajou. Quando o procurou para conversar sobre o que fazer com seus bens, ela compartilhou com ele seu chamado e, depois de ouvi-la calmamente, ele lhe disse: “se você crê que foi Deus quem a chamou, então obedeça”. Era um advogado cristão. Ao invés de se deixar influenciar pelo medo, ele a ouviu atentamente e, sabiamente, estabeleceu o princípio para orientá-la: “se foi Deus quem a chamou…”. A presença de Deus dissipa os obstáculos levantados pelo medo.
 
Admiramos e aplaudimos a coragem dos profissionais que atuam na linha de frente durante a pandemia. Muitos fazem isto por altruísmo e compromisso com sua vocação e o serviço sacrificial. Sabemos que outros o fazem apenas por dever ou para preservação do emprego. De qualquer forma, somos gratos a eles. Muitos que ficam isolados em casa, se sentem desconfortáveis sabendo que existem aqueles que estão correndo riscos para garantir sua segurança. Outros, contudo, permanecem isolados apenas pelo medo de contraírem o vírus. Ainda que Deus os chamasse para deixarem a segurança de sua fortaleza doméstica para cuidar dos enfermos e necessitados, é provável que, em nome da prudência, não obedecessem. 
 
A Dra. Rettie é um exemplo de coragem e dedicação que admiramos, mas não o desejamos nem para nós, e muito menos para os nossos filhos. A fronteira que separa o medo da prudência e a prudência da coragem, como disse, é tênue. Fico imaginando a Dra. Rettie retornando para a Ilha do Bananal com um bebê de 8 meses, com o risco da malária que já havia levado seu querido esposo, onde também uma epidemia de catapora provocou a morte de crianças, além dos outros perigos de uma região inóspita na década de 30 do século passado. Seria ela uma mulher imprudente? Não. Estaria colocando a sua vida e a do seu filho em risco? Sim.
 
Lutero e a peste do seu tempo

Em 1527, uma peste atingiu a cidade de Wittenberg onde o reformador Martinho Lutero vivia e ensinava. O príncipe-eleitor da Saxônia mandou encerrar as atividades da Universidade onde Lutero ensinava e ordenou que ele deixasse a cidade, mas ele se recusou a sair. Lutero transformou sua casa, um antigo mosteiro agostiniano, num hospital onde acolheu outros pastores da cidade, bem como os enfermos para onde eram trazidos e tratados, e muitos se recuperaram. Sua esposa Catarina estava no último mês de gravidez e seu primogênito se encontrava enfermo. Imprudência ou coragem? 
 
O pastor Johannes Hess escreveu a Lutero pedindo que lhe orientasse sobre se um cristão deveria ou não fugir da peste. Ele lhe respondeu numa carta intitulada: Se alguém pode fugir de uma praga mortal. Nesta carta, Lutero procura demonstrar as responsabilidades de um cidadão comum e apresenta alguns conselhos para os cristãos em tempos de pandemia. Para ele, todo o cidadão que tem responsabilidades para com o próximo não deveria fugir de sua vocação. Para os pastores, ele diz que devem permanecer firmes diante do perigo da morte para consolar e fortalecer os que se encontram doentes. 
 
Sua carta apresenta dois princípios básicos que nem sempre conseguimos conciliá-los: a santidade da vida, incluindo aqui a própria vida, e a santidade do próximo, particularmente quando este se encontra enfermo e necessitado. Para Lutero, precisamos cuidar do nosso próprio corpo, evitando ao máximo ser infectados pela doença. Neste sentido ele defendia medidas como quarentena e o tratamento médico indicado. Por outro lado, se algum cristão achasse que deveria deixar a cidade para se proteger da doença, ele reconhecia que era uma decisão pessoal e que não deveria suscitar culpa, mas deveria ser tomada diante de Deus, em oração, sempre considerando a necessidade do próximo. Ele afirma nesta carta:
 
“Pedirei a Deus para, misericordiosamente, proteger-nos. Então farei vapor, ajudarei a purificar o ar, a administrar remédios e a tomá-los. Evitarei lugares e pessoas onde minha presença não é necessária para não ficar contaminado e, assim, porventura infligir e poluir outros e, portanto, causar a morte como resultado da minha negligência. Se Deus quiser me levar, ele certamente me levará e eu terei feito o que ele esperava de mim e, portanto, não sou responsável pela minha própria morte ou pela morte de outros. Se meu próximo precisar de mim, não evitarei o lugar ou a pessoa, mas irei livremente conforme declarado acima. Veja que essa é uma fé que teme a Deus, porque não é ousada nem insensata e não tenta a Deus.”1
 
Um princípio que sempre orientou os cristãos em tempos de pestes, epidemias, guerras e outras tragédias foi o triunfo de Cristo sobre o pecado e a morte. A ressurreição de Cristo deu aos cristãos a segurança de que a morte foi vencida e o medo dela, que é o último e mais poderoso inimigo do ser humano, foi derrotado. A certeza da ressurreição sempre foi a verdade que sustentou o povo de Deus em momentos de crise. Esta era a certeza da Dra. Rettie. Também foi a certeza de Lutero e tantos outros que não permitiram que o medo governasse suas vidas e ações.
 
Medo, prudência e coragem

Não é fácil discernir a fronteira entre estes três. O apóstolo Paulo diz a seu filho na fé, Timóteo, um jovem pastor, que “Deus não nos tem dado espírito de covardia, mas de poder, de amor e de moderação” (2 Timóteo 1:7). Tanto no testemunho da Dra. Rettie como no de Lutero, o que vemos é exatamente isto: poder, amor e moderação. Um amor que motiva, um poder que encoraja e a moderação que não permite agir como insensatos.
 
Dra. Rettie, assim como Lutero. experimentaram a desolação, solidão e angústia. Lutero chegou a sofrer uma profunda depressão e enfermidades que o debilitaram. Não foram heróis. A cultura moderna, dominada pelo medo e insegurança, precisa criar seus heróis, sejam eles reais ou imaginários. Os profissionais que se dedicam ao serviço sacrificial para cuidar de enfermos nesta pandemia, também não são heróis. São pessoas comuns, como qualquer um de nós, sofrem com a insegurança, falta de recursos, incertezas e depressão, apenas não permitiram que o medo os intimidasse e consideraram os outros mais importantes do que eles.
 
Quando vejo profissionais de saúde sendo aplaudidos como heróis, sinto alegria e tristeza. Alegria porque merecem ser reconhecidos por seu trabalho e dedicação. Tristeza porque muitos daqueles que os aplaudem, o fazem apenas porque eles garantem sua segurança e não porque reconhecem a coragem e o serviço abnegado e sacrificial como virtudes a serem imitadas. Muitos não trocariam o conforto e a segurança do seu isolamento para participarem, ainda que como simples voluntários, no cuidado dos outros. É triste quando um povo precisa de heróis.
 
Deus não nos tem dado espírito de covardia, mas de poder, amor e moderação. Combinar estas três virtudes é o caminho para uma vida de entrega, dedicação e serviço sacrificial, que é o chamado de Cristo. O mundo não precisa de heróis, precisa de homens e mulheres prudentes e corajosos, dispostos a viver o autêntico altruísmo, cujas vidas inspiram e nos tornam mais verdadeiramente humanos e a fé cheia de compaixão.   

Fonte: https://www.ultimato.com.br/conteudo/medo-prudencia-e-coragem-em-tempos-de-pandemia