Talvez a escuridão seja uma forma de ver o que luz muitas vezes esconde
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- João Pereira Coutinho
Minha relação
com o cinema é cada vez mais narcísica. A obra? As propriedades objetivas da
obra? Cada vez me interessam menos. O
que me interessa é ver nela as minhas preocupações e obsessões devidamente
tratadas. Eis a minha poética: onanismo e canibalismo em partes iguais, por
favor.
Foi
isso que me levou a gostar de “Mank”, o mais recente filme de David Fincher. Sobre o roteirista Herman Mankiewicz e
sua relação com William Randolph Hearst, confesso que tenho um interesse
histórico mínimo.
Mas
quando aparece no filme a parábola do macaco e do tocador de realejo — o macaco,
deslumbrado com as suas macaquices, até pensa que é o tocador de realejo que
depende dele — sei que estou em território pessoal.
Várias
vezes me senti o macaco de vários tocadores de realejo. Várias vezes cometi o
erro de pensar que o tocador de realejo depende do macaco, e não o contrário. Mas
será mesmo um erro? Ou, na boa tradição hegeliana, não será o macaco mais
importante que o tocador de realejo?
De
William Randolph Hearst falarão os livros de história. Mas Herman Mankiewicz
e Orson Welles não serão história. Continuarão vivos
enquanto existirem literatos e cinéfilos dispostos a partilhar a vida com eles. Mais
ainda: até Hearst viverá, em parte, por causa dos macacos. “Citizen Kane” é o seu passaporte para
a eternidade e “Rosebud” a sua senha de entrada.
O
mesmo acontece com outro filme indicado ao Oscar deste ano: “O Som do Silêncio”. Deixo
os méritos estéticos da obra para quem se alimenta apenas de estética. O filme
transporta um dos meus terrores mais profundos: que será de nós quando as
fontes habituais de sentido e identidade deixarem de existir? O que será de
mim?
Penso
na velhice. Penso na doença. Penso na cegueira, por exemplo, o maior dos meus
fantasmas. Já tive em casa quem tivesse perdido a possibilidade de ler e
escrever. “Terei
sempre a música”, penso eu, que numa espécie de recuo estratégico tenho
escutado cada vez mais música e lido cada vez mais sobre música (agora que
penso nisso). Até o meu piano mandei restaurar recentemente.
Mas
será que sobrevivemos? Teremos uma vida mutilada ou uma segunda vida? Ou
nenhuma vida?
É
assim que encontramos Ruben (notável Riz Ahmed, indicado também ao Oscar), baterista de
heavy metal que perde o principal instrumento da sua existência: a audição. Como
o assunto é heavy metal, haverá quem veja no castigo o inevitável dedo divino.
Eu próprio, só com a sequência inicial, pensei em marcar consulta no
otorrino.
Mas o interesse da obra não está na catástrofe pessoal. Está na
resposta à catástrofe: recolhido por uma instituição cristã, Ruben terá de encontrar esse sentido e essa identidade perdidos.
É como retornar à infância
para aprender uma nova linguagem — no sentido literal e metafórico. Quando vemos
Ruben, um adulto, entre as crianças surdas da escola, é como se alguém tivesse
puxado o filme da sua vida até ao início, para lhe dar um outro início.
Mas
não é apenas a linguagem (gestual) que Ruben tem de aprender. É também uma
outra forma de estar e de ser. A tarefa que o chefe da instituição lhe dá é
apenas essa: todos os dias, ser capaz de se sentar numa sala vazia, apenas com
papel e lapiseira.
É
impossível não lembrar Pascal aqui, para quem todos os problemas da humanidade
se devem ao fato de os homens não conseguirem estar sozinhos no quarto. Não
há maior solidão do que o medo da solidão.
E não há maior miséria do que
agarrar ainda os destroços do passado para tentar ressuscitar esse cadáver — no
caso de Ruben, uma ilusão distorcida, ruidosa, insuportável.
Com
a primeira sequência do filme, pensamos em marcar consulta no otorrino. Com a
última, é como se um novo sentido nos tivesse sido concedido. Ou, para usar a
palavra apropriada, uma nova graça.
No
seu poema épico, John Milton retrata o inferno como uma “escuridão visível”.
Lembro sempre esse terrível oxímoro quando penso nos meus fantasmas futuros.
Mas quem sabe?
Talvez
a escuridão, às vezes, seja mesmo visível. Talvez a escuridão seja uma outra
forma de ver o que luz muitas vezes esconde.
Fonte: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2021/03/a-escuridao-talvez-seja-uma-outra-forma-de-ver-o-que-luz-muitas-vezes-esconde.shtml
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