August 27, 2013

Encarando a própria vida

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Temos a tendência de repetir o tipo de relacionamento que experimentamos nos primeiros anos da infância

- Esther Carrenho

Meg tinha 35 anos e sofria com uma anemia profunda. Os médicos não entendiam direito o que se passava com seu organismo, que não reagia à medicação e muito menos a uma alimentação rica em ferro.

Recomendaram a ajuda profissional em psicologia. Meg me procurou e aos poucos foi me contando sua história. Era a caçula de três irmãos. O pai era extremamente violento; a mãe, passiva e até omissa. As cenas violentas do pai para com o irmão mais velho faziam parte do cotidiano de sua casa. Nestas situações, Meg ficava sempre na soleira da porta, tentando achar uma solução para a situação. Mas na sua tenra idade, nunca saiu dali. Se fosse buscar ajuda, levaria uma tremenda surra – afinal, era pequena demais para enfrentar o pai. Naquela agonia, o máximo que fazia era ficar ali, imóvel e paralisada, desejando que a vida não existisse, que sua história fosse outra. Algumas vezes, havia calma naquele lar, mas o alívio durava apenas até o próximo episódio de fúria e violência do pai de Meg.

O tempo passou. Meg cresceu, tornou-se adulta, saiu de casa, casou-se e teve filhos. Contudo, vivia uma dinâmica nos relacionamentos onde se percebeu impotente e sem ação diante da força de pessoas que abusavam da sua fragilidade. Foi enganada e explorada mais de uma vez, tanto no ambiente familiar como no trabalho. Ela percebia o que ocorria à sua volta, mas continuava na soleira da porta da própria existência, sem usar recursos de que não dispunha na infância, como o próprio fato de ser adulta e a possibilidade de amparo jurídico. A mensagem interna que soava alto em seus ouvidos era a mesma de outros tempos – não podia fazer nada e era melhor ficar quieta senão ia ser pior. A anemia que começara na infância tornou-se crônica, exigindo constantes cuidados médicos. A falta de energia e disposição não se limitava apenas ao seu corpo, mas corroía-lhe a alma, impedindo sua realização pessoal e tolhendo suas capacidades. E assim Meg vivia, engolindo abuso atrás de abuso.

Assim como ela, temos a tendência de repetir ao longo da vida o tipo de relacionamento que experimentamos nos primeiros anos da infância. É como se, uma vez vivida e aprendida uma situação, ficássemos indefesos e desprotegidos, presos a ela como crianças. Uma das sutilezas satânicas contra o ser humano é exatamente esta: a do medo de arriscar a sair da soleira da porta e descobrir os próprios recursos, doados por Deus a cada um desde a formação no ventre. E por causa deste medo, muitas mulheres não se posicionam, não desenvolvem seu valor e não têm forças para defender a própria dignidade.

A parábola dos talentos, contada por Jesus e registrada em Mateus 25, aborda esta questão. Um dos servos daquele homem rico preferiu esconder o talento recebido, ao invés de usufruir dele, gerando novas riquezas. Alegou, mais tarde, que ficou com medo da severidade de seu senhor e preferiu se garantir, restituindo exatamente aquilo que lhe fora confiado. Pois foi severamente repreendido – e seu talento lhe foi tirado e entregue para outro servo, que sabia administrar melhor os bens recebidos. A outra é a história de Abigail, contada no primeiro Livro de Samuel, no capítulo 25. Nabal, seu marido, cometera um grave erro contra Davi. Diante da insensatez de Nabal, que além de insensível e duro, era beberrão, Abigail não se entregou ao papel de vítima. Ela tomou providências, agindo para proteger os filhos e empregados da vingança de Davi e dos homens que o seguiam. Ela preparou uma comitiva e foi ao encontro dele, levando presentes e o pedido de desculpas, aplacando sua fúria.

Muitas mulheres com ideias e projetos brilhantes não os colocam em prática porque o medo se transforma num monstro que aniquila e bloqueia qualquer iniciativa. E a história de Abigail parece apontar para o fato de que há situações em que temos que correr os riscos e andar na contracultura, enfrentando as ameaças e os ataques que podem cair em cima daqueles que estão sob nosso cuidado e responsabilidade. Não podemos perder de vista o propósito de usarmos todas as forças e recursos disponíveis na detenção do mal e da destruição. Meg precisava sair da situação de vítima e encarar a própria vida, não se permitindo mais ficar nas mãos de pessoas egoístas e cruéis. E, com a ajuda de Deus, ela o fez. Perdeu algumas coisas e alguns relacionamentos, mas encontrou a si mesma e descobriu que tinha muito a ganhar, criar e produzir, desenvolvendo seu potencial tão especial para beneficiar pessoas e difundir a grandeza do Senhor. Até a anemia desapareceu.

Descobrir as próprias estagnações é um caminho difícil que requer muita coragem, disposição e uma boa dose de humildade. Algumas vezes, será necessário rever a própria história de vida, identificando eventuais bloqueios oriundos de episódios do passado. Na verdade, não nascemos com a capacidade de gostar de nós mesmos e acreditar no nosso próprio potencial. São os nossos educadores e treinadores que podem facilitar, ou não, a confiança que podemos ter em nós mesmos para fazermos diferença – tanto para nós, como para aqueles que nos estão próximos. Mas, quando nos tornamos adultos, podemos rejeitar toda e qualquer mensagem destrutiva que nos tenha sido direcionada e que passou a fazer parte de nossa existência, distorcendo a rota dos caminhos para os quais nascemos. Agindo assim, é possível resgatarmos a nós mesmos, refazendo o roteiro que nos é dado por Deus para nossa vida aqui neste mundo.

Fonte: http://www.lideranca.org/cgi-bin/index.cgi?action=viewnews&id=7427 .

August 26, 2013

Filho do Universo

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Nosso medo mais profundo não é o de sermos inadequados. 
Nosso medo mais profundo é sermos poderosos além de qualquer medida.

É a nossa luz, não as nossas trevas, o que mais nos apavora.

Nós nos perguntamos: quem sou eu para ser brilhante, maravilhoso, talentoso e fabuloso? Na realidade, quem é você para não ser?

Você é filho do Universo. Você se fazer de pequeno não ajuda o mundo.

Não há iluminação em se encolher para que os outros não se sintam inseguros quando estão perto de você.

Nascemos para manifestar a glória do Universo que está dentro de nós. Não está apenas em um de nós: está em todos nós.

E conforme deixamos a nossa própria luz brilhar, inconscientemente damos às outras pessoas permissão para fazer o mesmo. 

E conforme nos libertamos do nosso medo, a nossa presença automaticamente liberta os outros.

Nelson Mandela, discurso de posse, 1994.

PS- Para ouvir a trilha do dia, vai lá: http://www.youtube.com/watch?v=-VuGzjpszHQ
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Oração pelos líderes

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- por Charles Monroe

Que você tenha graça e sabedoria
para agir com gentileza, 
distinguindo entre o que é e o que não é pessoal.

Que esteja aberto à crítica
e nunca se coloque no centro das coisas.

Que suas ações não derivem da arrogância,
mas do espírito de serviço.

Que você trabalhe em si mesmo,
edificando e refinando o modo como pensa.

Que aprenda a cultivar a arte de estar presente
e possa se envolver com
aqueles que se encontram com você.

Quando alguém falhar ou desapontar você,
que a graça com a qual você o aborde,
seja para ele uma escada para renovação e aprimoramento.

Que valorize os dons do pensamento,
lendo e pensando criativamente,
para que continue a ser um servo na fronteira
onde o novo se enriquece com o que extrai do velho,
e jamais se torne um funcionário. 

Que conheça a sabedoria de saber ouvir
a cura de palavras benéficas,
o encorajamento de um olhar apreciativo,
o decoro da dignidade,
a primavera de uma questão árida. 

Que tenha uma mente que ame fronteiras,
para que possa evocar os campos luminosos
que existem por trás da visão comum.

Que você tenha bons amigos
para espelhar seus pontos cegos.

Que a liderança seja para você
uma aventura real de crescimento.     

 A Bíblia instrui: "Antes de tudo, recomendo que se façam súplicas, orações, intercessões e ações de graças por todos os homens; pelos reis e por todos os que exercem autoridade, para que tenhamos uma vida tranquila e pacífica, com toda a piedade e dignidade” (1Timóteo 2.1-2).

Esta poesia pode ser um bom guia para seguir estas instruções.

Poesia de autoria de John O’Donohue, citada por Charles Monroe, membro do CBMC em Chattanooga, Tennessee, EUA.

August 21, 2013

O mal está em todos nós

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Boa parte dos 80 anos do psicólogo americano Philip Zimbardo foi dedicada a buscar resposta a uma questão ao mesmo tempo fascinante e assustadora: - o que leva as pessoas a praticar o mal?

Seu ponto de partida foi uma revolucionária pesquisa realizada nos anos 70, na Universidade Stanford: ao isolar e dividir um grupo de jovens entre guardas e prisioneiros no ambiente imaginário de uma prisão, ele constatou que os maus-tratos de uns e a submissão de outros extrapolaram todos os limites.

Hoje, o psicólogo tem críticas ao próprio experimento. "Foi antiético porque causou sofrimento aos participantes", diz.No livro O Efeito Lúcifer (Ed. Record), lançado recentemente no Brasil, Zimbardo se debruça sobre as lições da experiência de Stanford.

De seu escritório na universidade, ele falou a VEJA sobre os padrões que levam pessoas ordinárias a cometer maldades fora do comum.

O Brasil está chocado com os indícios de que um menino de 13 anos, de comportamento considerado normal, tenha assassinado toda a família e se matado. O que poderia explicar tamanha barbárie?

Philip Zimbardo: Felizmente, casos horrendos assim, em que um suposto bom menino faz uma coisa muito má, são raros. Eles não se enquadram em nenhuma categoria-padrão da psicologia, nem se encaixam em uma análise "normal" da natureza humana. Nesse caso, poderíamos investigar se, nesse menino, a consciência da mortalidade, decorrente de sua doença degenerativa, gerou a sensação de que a vida não valia a pena. E, em vez de morrer passivamente, ele escolheu agir e ceifar a vida de pessoas que amava. Mas não conheço detalhes do episódio e, pelo que você me diz, nem mesmo se sabe se ele ocorreu dessa forma.

Onde reside a origem do mal?

Zimbardo: Freud dizia que a tendência a destruir e a praticar o mal tem suas raízes na própria natureza da mente humana e que todos nós, sem exceção, carregamos um componente que incita à maldade. Os pensadores que vieram depois reforçaram essas descobertas, ao concluir que o mal está no caráter, na personalidade. Ou seja, ele repousa dentro das pessoas - e pode vir à tona ou não. Minha contribuição foi pesquisar a fundo quais ambientes e situações estimulam de forma decisiva a expressão desse lado ruim de cada um. Sim, as circunstâncias têm um peso determinante para que o mal viceje. Submetida à forte pressão, muito pouca gente é capaz de resistir e se manter no espectro do bem.

Qualquer um de nós pode cometer uma atrocidade, então?

Zimbardo: Os estudos mostram, um após o outro, que não mais do que 10% das pessoas conseguem permanecer imunes às situações que as compelem a agir de forma má. Quando os caminhos familiares e seguros são trocados por uma situação totalmente nova, o inesperado pode despertar no ser humano reações completamente contrárias a tudo aquilo em que acredita, fazendo emergir uma face bastante cruel. É assim que surgem, muitas vezes, os regimes tiranos, violentos, usurpadores das liberdades individuais e transgressores dos limites.

Até mesmo aqueles indivíduos que todos consideram boas pessoas estão sujeitos a se converter ao mal nessas situações?

Zimbardo: Sem dúvida, e a história reforça bem isso. Os seres humanos são flexíveis em relação a seus valores e crenças. Tendem a se adaptar ao status quo. Se ele muda, as pessoas logo trocam seus padrões habituais de resposta por outros que façam mais sentido na nova ordem. Pergunte a alguém o que faria em uma situação de pleno poder sobre os outros e muito provavelmente ouvirá: "Faria o bem, claro". Mas eu questiono: se essa pessoa nunca esteve diante de uma situação de pressão extrema, como saberá ao certo? Na verdade, não há como prever. Eu mesmo, no experimento que coordenei em Stanford, percebi uma transformação assustadora nos meus alunos e em mim mesmo.

No senhor também?

Zimbardo: Eu não me preparei como deveria para uma pesquisa de tantos dias ininterruptos. Era o único especialista formado do grupo e comecei a perder a perspectiva objetiva. Relembrando a experiência: dividi 24 jovens brilhantes e saudáveis em dois grupos, um de guardas e outro de prisioneiros, com a intenção de observar seu comportamento durante quinze dias. Naquele ambiente de prisão, os "guardas" imediatamente se puseram a submeter os "presos" a abusos constantes e cada vez mais cruéis, enquanto estes afundavam na submissão e na depressão. Eu, de minha parte, fui me deixando controlar pelo papel de diretor da prisão e perdendo o distanciamento indispensável em minha posição. O processo foi tão violento que decidi encerrar o experimento em seis dias. Foi tempo suficiente para comprovar que, diante de circunstâncias favoráveis, pouquíssimos são capazes de resistir ao mal.

À luz desse experimento, o senhor interpretou o extermínio de judeus pelos nazistas...

Zimbardo: Sim. Nossa mente possui uma capacidade infinita de racionalizar e justificar nossas ações. Para os nazistas, essa justificativa era a crença de aqueles atos se faziam necessários em prol de uma causa, um "bem maior". Outros, menos idealistas, diziam apenas estar realizando seu trabalho, e isso, para eles, tornava qualquer ação razoável. O fato é que havia milhões em cumplicidade, prontas para exercer o mal em sua pior forma dentro de um sistema muito bem engendrado. Hitler corrompeu todas as esferas da sociedade - da educação ao Judiciário - criando mecanismos de controle e dominação que o tornaram, a si próprio, dispensável. A meu ver, a história não mudaria seu curso se um dos planos para assassinar Hitler tivesse prosperado. A máquina para fazer o mal já estava montada, e a maioria se juntaria a ela, como sempre faz. Repare que um ingrediente essencial dessa engrenagem foi a desumanização das vítimas - no caso, os judeus. Quando isso acontece, a disseminação do mal se trivializa.

Há pessoas que são mais propensas a praticar o mal?

Zimbardo: Sim. O grupo mais propenso a se engajar em violência e ser destrutivo é o dos psicopatas, que até têm consciência de seus atos, mas não sentem culpa, empatia ou vergonha do que fazem e desprezam o sofrimento alheio. Esses indivíduos, felizmente, representam apenas 1% da população. Outra evidência que temos é que cerca de metade das pessoas que sofreram alguma espécie de violência brutal, na infância ou mesmo na idade adulta, tende a praticar tais atos mais tarde, ainda que não necessariamente na mesma intensidade. Mas as pesquisas não forneceram até este momento uma resposta razoável sobre por que alguns conseguem superar o trauma e outros vivem enredados nele.

Algumas pessoas resistem mais à maldade do que outras?

Zimbardo:  Sim, e elas têm muito em comum. São pessoas que, segundo venho observando ao longo de décadas, repetem um mesmo padrão de comportamento: não se submetem  a um sistema que consideram injusto e se rebelam contra autoridades tiranas, ainda que quase todo mundo à sua volta seja simpático a elas.

Ao afirmar que as circunstâncias podem corromper as pessoas, o senhor não está tirando delas a responsabilidade por seu atos?

Zimbardo: Por favor, não confundam o que digo com "desculpologia". As pessoas são, sim, responsáveis por suas ações e devem responder por elas perante as instituições de direito, mesmo que o sistema as tenha empurrado para a direção errada. O julgamento de Nuremberg trouxe essa questão à tona ao tratar da carnificina nazista. Os oficiais de Hitler alegavam no tribunal: "Eu estava apenas seguindo ordens. Não tinha como fazer diferente". Queriam banalizar o mal, como a filósofa alemã Hannah Arendt bem pontuou. Mas a Justiça condenou a todos, enfatizando uma ideia essencial: se você prejudicou o próximo, ceifou vidas, disseminou o mal, as razões são absolutamente irrelevantes. Você é culpado da mesma forma.

Uma vez que alguém tenha cometido um ato de maldade, fica mais fácil repetir o gesto?

Zimbardo: Sim, todos os estudos mostram que o mal vai subindo de nível numa progressão gradativa. Se a pessoa comete um pequeno desvio, tende a considerar o seguinte só "um pouquinho pior". Então, vai-se abrindo uma fresta perigosa para que ela traia, minta ou machuque os outros cada vez mais. E o indivíduo vai encontrando razões para justificar seus atos, de forma que suas atitudes não lhe pareçam malignas, mas, ao contrário, essenciais. Como é da espécie humana acreditar que é movida pelo bem, os valores começam a se distorcer para legitimar aquela situação. Passamos a acreditar que o que costumava ser errado agora é certo, ou pelo menos apropriado para um determinado contexto.

Por que o senhor foi à corte defender um dos soldados americanos que apareceram em fotos maltratando prisioneiros iraquianos em 2004?

Zimbardo: A administração Bush dizia que soldados como aqueles eram "maçãs podres", quando, na verdade, esse tipo de conduta se disseminava por muitas outras prisões iraquianas nos mais variados escalões. No caso de Abu Ghraib, ficou claro que militares de alta patente haviam incitado os abusos, instruindo seus subordinados a fazer o que fosse preciso durante a noite para que os prisioneiros abrissem a boca nos interrogatórios da manhã. Testemunhei em favor do sargento Chip Frederick argumentando que, sim, ele era culpado, mas sua pena deveria ser calculada levando-se em conta sua responsabilidade em comparação com a dos outros. Só que nenhum desses algos oficiais foi punido. Pior ainda: alguns acabaram até promovidos, num exemplo de como o sistema protege a si mesmo. Deveriam ter ido todos para a cadeia.

A prisão consegue reabilitar quem já praticou atos de crueldade?

Zimbardo: De jeito nenhum. No mundo inteiro, o modelo de hoje só reforça o mal como um valor. Não há ali nenhum bom padrão de comportamento em que se mirar.  Um claro equívoco. Se uma pessoa vai passar anos e anos na cadeia bancada pelos impostos que cada um de nós paga, deveríamos refletir sobre como ensinar a ela algo de novo, para evitar que reincida no crime. No entanto, a maior parte das pesquisas mostra que 70% dos detentos, ao serem soltos, acabam cometendo outros atos criminosos e voltam para trás das grades. O sistema prisional precisa ser repensado - trata-se de um fracasso multibilionário. Uma de minhas ideias é criar um sistema de prêmio para o carcereiro: a cada ano que um ex-detento que esteve sob sua responsabilidade ficasse longe do crime, ele receberia um bônus. É um caminho para incentivar melhores práticas e valores na prisão.

Uma parte das suas pesquisas foi feita no Brasil, onde o senhor entrevistou torturadores que atuavam na ditadura militar. O que descobriu?

Zimbardo: Eu queria entender que tipo de gente aceita um trabalho desses. Analisamos a história de vida dessas pessoas - havia muitos policiais civis - para saber se existia algum fato no passado que as tivesse levado a isso. Não achei nada. Em geral, eram indivíduos normais, com vida comum, até assumirem a função. Não apresentavam desvios de personalidade nem eram sádicos. A triste conclusão foi que qualquer um pode ser treinado para se tornar torturador.

Há algo que se possa fazer para resistir ao poder das circunstâncias?

Zimbardo: Primeiro, temos de compreender que somos todos vulneráveis. Depois, prestar atenção ao que acontece à nossa volta, identificar discrepâncias entre o que as pessoas dizem e o que elas fazem e aprender a questionar a autoridade quando ela for injusta, amoral, antiética. Por fim, é essencial parar de justificar decisões equivocadas. A melhor vacina contra a prática do mal é o exercício permanente da autocrítica.

Fonte: Revista VEJA - Edição 2335 - Ano 46 - Nº 34 - 21 de agosto de 2013 - Págs. 15, 18 e 19.
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August 20, 2013

Compromisso, coerência e constância

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Hoje foi lançamento do documentário O que a gente faz, conta!, que traz a história do VIVA nesses 16 anos de trabalho voluntário.

Tive o privilégio de acompanhar o projeto desde o começo, então sei (porque vivi e vi com meus próprios olhos) que é tudo verdade.

O mais lindo é ver as flores dando frutos, por exemplo, uma paciente de 4 anos (hoje com 20), cuja cadeira de rodas não a impediu de sonhar e formar-se em jornalismo, e que agora é contadora de histórias.

Será que isto e tudo mais aconteceriam, se um dia o Valdir não tivesse aberto o coração e a vida, criando uma comunidade de amor em torno de si?

Não foi apenas uma ideia bonita, mas trabalho árduo de compromisso, coerência e constância para fazer o que precisava ser feito.

Um mundo melhor ; )!
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August 19, 2013

Em um mundo melhor

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- Luiz Felipe Pondé

É possível um mundo melhor? Sim e não.

Sim, é possível um mundo melhor a começar por melhores remédios, casas, escolas, hospitais, aviões, democracia (ainda acredito nela, apesar de ficar de bode às vezes).

Não, não é possível um mundo melhor porque algumas coisas não mudam, como o caráter humano, suas mentiras e vaidades, sua violência, mesmo que travestida de civilidade, nossas inseguranças, nossa miséria física e mental, nossa hipocrisia. Nossas ambivalências sem cura. Os valores são incomensuráveis. Você até pode achar que na vida vale mais a pena "ser" do que "ter", mas isso pode ser apenas um modo infantil de ver as coisas: não há "ser" sem o "ter" que sustenta tudo.

A famosa frase "que vão os anéis e fiquem os dedos" às vezes mais parece ser bem o contrário, "que vão dedos e fiquem os anéis", porque os diamantes são eternos, e os dedos, não.

Resumindo: mesmo a tecnologia e a ciência, grandes fatores positivos, podem ser elas mesmas terríveis. Não é outro o sentido de se perguntar "como educar depois de Auschwitz?", como se pergunta o filósofo Theodor Adorno. Mesmo a democracia pode virar coisa de "black blocs" ou demagogos que juram confiar na "sabedoria popular". E isso dá bode.

Recentemente revi o filme Em um Mundo Melhor, de Susanne Bier, de 2010. Trata-se de um filme bastante didático, bom para escolas. Um médico sueco trabalha em algum lugar infeliz da África, enquanto sua família derrete na Dinamarca onde mora.

Seu filho é objeto de bullying (chamam-no de "rato" pelo dentes feios que tem e esvaziam o pneu da sua bicicleta o tempo todo). Ele nunca reage. É tímido e tem medo dos mais fortes. Sabe que se reagisse apanharia mais. Muitas vezes, a essência da coragem é perder o medo de sofrer além do que já se sofre. A verdade da coragem não é querer vencer, mas perder o medo de perder tudo que se tem.

Escolas de crianças são um escândalo. Um depósito de violência de todo tipo. Um lugar especialmente indicado se quisermos duvidar da existência de Deus usando o famoso argumento a partir do mal ("argument from evil", como dizem os filósofos da religião americanos): se Deus existe e é bom e todo-poderoso, como o mundo pode ser mau como obviamente é?

Há todo tipo de resposta para isso, e elas compõem o que em teologia se chama "teodiceia". Qual é o sentido de ser bom na vida? Há garantias de que o bem compensa? Não, não há, nenhuma.

Eu concordo com o filósofo Isaiah Berlin: não há teodiceia possível. Os valores são incomensuráveis entre culturas, pessoas, épocas históricas. Qualquer utopia não passa de um surto infantil projetado sobre o mundo. Não vai mais longe do que uma história de Branca de Neve.

Voltando ao filme. O médico é contra violência física. E vive isso de modo corajoso, não se pode negar. A vida que leva na África é prova de seu caráter. Enfrenta um sujeito que bate na sua cara na Dinamarca, quando está visitando sua mulher e filhos, de modo digno, revelando a estupidez que está por trás do brutamontes idiota.

Ela quer o divórcio porque se sente sozinha, é óbvio, e, aparentemente, além de deixá-la sozinha, ele andou comendo alguém por aí... Santo, mas nem tanto... Você pode salvar o mundo enterrando sua família. Olha aí a incomensurabilidade de que fala Berlin.

Ao final, seu princípio de não violência é testado na África e ele perceberá que para tudo existe um basta, e às vezes a violência é tudo que resta. Os pacifistas são também gente infantil.

Mas onde está esse mundo melhor no filme? A vida em casa degringola. O filho humilhado encontra um amigo que o protege na escola. Um menino corajoso, decidido e violento, que se move no mundo de modo oposto aos princípios do médico.

Na verdade, o menino é um desesperado, solitário, que acaba de perder a mãe de câncer, num processo doloroso que sutilmente o filme parece indicar ter chegado à eutanásia.

O mundo melhor parece ser aquele no qual as pessoas podem errar, pedir perdão e ser perdoadas.

Um mundo melhor não é um mundo sem violência ou ambivalência, mas um mundo onde existe o perdão.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2013/08/1328370-em-um-mundo-melhor.shtml
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August 18, 2013

A persistência do amor

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Casamento é um compromisso com aquilo que você é, não um caso de amor.

Quanto maior o amor, maior o sofrimento. Onde está a sua dor, aí está a sua vida. É a pequena igreja dentro da igreja. Todo dia você ama, todo dia você perdoa. É um contínuo sacramento de amor e perdão.

Estar apaixonado é a melhor forma de viver como indivíduo e cidadão. Amor é o ato em que público e pessoal se unem de forma mais dramática, onde relacionamentos florescem e ficam à vista de maneira aconchegante e atraente.

O casamento expressa a conexão entre pessoal e público em todos os aspectos do amor. Não há nada mais pessoal do que o casamento onde duas pessoas se unem por vontade própria e se entregam à alegria da intimidade. Também não há nada mais público; a intimidade implica em responsabilidades.

Uma família que se ama, tem princípios e cria filhos responsáveis, ajuda a criar uma sociedade mais justa porque estes cidadãos farão diferença onde quer que se encontrem, seja no trabalho, na escola e no país.

Os poetas afirmam que o amor é cego, mas o ódio que é. E cegos também são o hábito, a condescendência e o cinismo. O amor abre os olhos, capacita-nos a ver o que sempre existiu, mas foi omitido por pressa ou indiferença.

O amor corrige o astigmatismo e, o que havia sido distorcido em egoísmo, agora é percebido com precisão e apreciação. Também elimina a miopia para que o borrão do outro distante agora entre em foco preciso. Cura nossa hipermetropia para que oportunidades de intimidade deixem de ser ameaças nebulosas e passem a ser convites abençoados.

O amor olha para aquele que não tinha qualquer beleza ou majestade que nos atraísse, nada havia em sua aparência para que o desejássemos (Is 53: 2) e enxerga aquele que é dos homens o mais notável (Ct 1: 16), o que foi ungido entre seus companheiros com óleo de alegria (Sl 45: 7).

A pessoa nunca será ela mesma se não crescer e, como criatura de Deus, isto significa amar. O casamento é o arquétipo da transição do ego confortável, que recebe cuidados, para o ego vigoroso, que cuida dos outros.

Deus não apenas ama cada pessoa para salvar, Ele também vai estabelecendo Seu reino. Porque o mesmo Deus que governa é o que salva a alma. O mundo e o ego são o foco duplo do amor de Deus. Ele não adota uma forma de agir com o mundo e outra com os indivíduos. O que o move é o Amor.

O casamento é o arquétipo da liberdade. Os parceiros deixam seus laços familiares naturais para se tornarem os primeiros motivadores da política da liberdade. Todo casamento introduz na sociedade uma nova energia de amor e liberdade.

Eugene Peterson afirma que sexo e espiritualidade cristã estão intrinsecamente ligados, já que se relacionam com dois elementos básicos: intimidade e êxtase.

Tudo criado por Deus (inclusive a sexualidade) é um meio de nos conduzir a uma troca pessoal de graça. Não devemos ter medo e sim, sermos ousados em nossa relação com Deus.

Este mundo não é um bom amante da graça. Buscar intimidade em qualquer nível, seja com Deus ou com as pessoas, não é uma aventura na qual se pode contar com o apoio de muita gente.

Intimidade não serve para fazer negócios. É ineficiente e não tem glamour. Se o amor a Deus puder ser reduzido a um ritual de uma hora de culto, se o amor ao outro puder se limitar a uma relação sexual, então as rotinas se tornam simples o mundo pode funcionar eficientemente.

A junção de duas pessoas criadas como seres únicos não é instintiva e automática como a cópula de animais. Sexo não é um meio de reproduzir a espécie; é uma face do conhecer. Onde existe o conhecer, existia antes aquilo que não é conhecido, regiões de ignorância e mistério tanto no corpo como no espírito.

Atingir a intimidade não é nenhuma conquista fácil. Implica em dor.

A intimidade tanto no amor quanto na fé é cheia de tensões. Quando a realização demora, o desejo se torna amargo. Entre apaixonar-se e consumar este amor, entre a promessa e o cumprimento, é tarefa da perseverança e da oração paciente manter o amor ardente e a fé zelosa.

Na busca e no anseio, o querer não pode ser despropositado nem a procura errante: existe direção, objetivo. Momentos difíceis e dolorosos de desejo não-satisfeito fazem parte da natureza das relações de intimidade. Mas se persistirmos em oração, aprenderemos a amar e sermos amados, constantemente e eternamente em Jesus.

Na oração leva-se a sério as relações que mais importam.

Na oração não se discute sobre os desejos porque eles são expressos a Deus. Na oração as dificuldades não são analisadas e estudadas, elas são trabalhadas com Deus.

Intimidade não é conquistada com terapia ou relações públicas (embora possam ser facilitadoras), mas lidando pessoalmente com aqueles que realmente contam na oração: Criador e criatura.

PS- Vai lá: http://www.youtube.com/watch?v=qfbL2H0NnMk
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August 16, 2013

Tem sentido?

August 13, 2013

Maratona

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- Drauzio Varella

Pela 1a. vez corri a maratona do Rio de Janeiro. Na concentração que a antecede, um corredor me alertou com a isenção habitual dos cariocas quando se referem à cidade:

- Doutor, você vai correr a maratona mais bonita do mundo.

Na noite anterior, Gabriel, meu enteado, decidira ir junto para correr os primeiros 21 quilômetros, mesmo estando destreinado.

No meio dos corredores à espera da partida, todas as vezes sinto um misto de excitação e medo. Terei forças e sabedoria para completar os 42 quilômetros?

Maratonas exigem planejamento racional: a cada instante é preciso auscultar o corpo, avaliar o cansaço e calcular a velocidade em função da distância que falta percorrer.

Depois de uma volta rápida pelas ruas do Recreio, a massa de camisetas coloridas chegou à avenida que beira o mar. Ao longe, o morro Dois Irmãos e a pedra da Gávea, imponentes, indiferentes às limitações da condição humana. Já alto, o sol batia de frente.

No começo da prova, é fácil identificar os principiantes: são animados, puxam conversa, dão pulos e gritos de alegria. Em contraste, os mais experientes vão calados, concentrados em cada passada.

Nessas horas, os pensamentos são fragmentados, surgem do nada, para em segundos dar lugar a outros, tão irrelevantes quanto os que substituíram e quanto os que virão em seguida. Alguns não passam de palavras de ordem que reverberam na cabeça, repetitivas como mantras.

Talvez seja esse o encantamento maior das corridas longas: uma espécie de meditação transcendental em que o cérebro passa a funcionar em modo letárgico, atento apenas aos reclamos do corpo, condição inatingível no estado sedentário.

Os quilômetros se sucedem. Meus mamilos, que esqueci de proteger com esparadrapo, começam a arder. Os prédios à esquerda, os coqueiros, a praia da Barra e o azul que se perde no horizonte, com os Dois Irmãos e a pedra da Gávea sempre no mesmo lugar. 

Já havíamos corrido 15 quilômetros e eles lá, mastodônticos, só para dar a impressão de que estamos parados.

Quando atingimos o quilômetro 18, Gabriel virou-se para mim: "Vai embora, estou muito cansado".

Respondi que não tinha pressa, e reduzimos a velocidade. No quilômetro 20, ele lamentou: "Não chega nunca mais".

O marco do quilômetro 21 foi um alívio para ele, que saiu da pista com um ar de felicidade dos tempos de criança. Para mim, nem tanto, estava apenas na metade do martírio.

Ver a Pedra da Gávea desaparecer por trás dos Dois Irmãos foi um alento. Saber que a paisagem mudaria deu ânimo para enfrentar a subida do Joá, nem tão íngreme, mas longa.

Na descida junto ao Morro do Vidigal, vem em sentido contrário um grupo de rapazes. Um deles, de bermuda, sem camisa, cordão de ouro no pescoço, latinha de cerveja na mão, reclama:

- Vocês aí na moleza da descida, enquanto eu, aqui, sofrendo nessa subida.

Depois de percorrer 30 quilômetros, a maratona chega ao Leblon, com o calçadão lotado de gente em movimento. Na plateia, ouvi o chamado de minha mulher. Um beijo na boca mesmo de passagem, numa hora dessas, revitaliza mais do que glicose na veia.

Aí começa a fase mais dura da corrida. Há que percorrer o Leblon e Ipanema, para depois correr Copacabana inteira. É preciso ser de ferro para não sentar num daqueles quiosques à beira-mar no meio de gente bonita, pedir um chope e mandar a maratona para o inferno ou para mais longe.

Ao chegar à praia de Botafogo, com o Pão de Açúcar e os barcos na enseada, minhas pernas já não me pertencem, meus mamilos sangram, o corpo é um fardo torturante. A fisionomia de meus companheiros de infortúnio é lamentável.

A praia faz uma curva sem fim, que eu nunca notara ao passar de carro. Fico com ódio dela, dos barquinhos, do Pão de Açúcar, do sol, da areia e do maldito bondinho.

Quando entramos no Aterro do Flamengo, senti que a estratégia havia dado certo: apesar dos 33 graus, terminaria a prova num tempo razoável.

Mal atravessei a linha de chegada, fui invadido por uma sensação de paz celestial, senti um tuim nos ouvidos igual a barato de droga, com vista para o Cristo Redentor.

Caminhei de volta para pegar um táxi. O Pão de Açúcar continuava lá, com o bondinho e os barcos. O rapaz tinha toda razão, foi a maratona mais bonita que já corri.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/drauziovarella/2013/08/1324118-maratona-do-rio.shtml
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August 12, 2013

Amar é para gente grande

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A noite escura de Terrence Malick

- Luiz Felipe Pondé

"Amor Pleno", novo filme de Terrence Malick, é um exemplo do que o místico espanhol do século 16 San Juan de la Cruz chamou de "noite escura da alma". Não é à toa que o padre (Javier Bardem) tem um discurso muito colado ao do místico espanhol. Ele é o personagem central da narrativa. Como sempre, sem teologia e filosofia, não se entende Terrence Malick.

Por consequência, o filme está próximo do texto bíblico "Cântico dos Cânticos", peça fundamental da literatura mística ocidental, influência marcante no místico espanhol: "Onde Te escondestes que não Te encontro, meu Deus?". No "Cânticos", o amor entre Deus e a humanidade é representado pelo amor entre um homem e uma mulher, suas agonias, prazeres e ausências. "A Noite Escura da Alma" é, como "Cânticos", um texto erótico.

"O amor de Cristo pela sua igreja é como o amor de um homem e uma mulher", diz Bardem. Eis a chave para entendermos o poema místico que é "Amor Pleno". No cristianismo, amor não é mero afeto, mas a ação que nos faz existir. Sem ele, a vida esvazia.

Nesta chave, o amor entre Ben Affleck e "suas" duas mulheres está também "sob" o véu da noite escura da alma, assim como está o amor do padre por Deus e o mundo. Ele é incapaz de amar, elas sofrem por isso.
O filme encerra com a imagem do Mont Saint-Michel, na França, local onde o casal vai no começo de seu amor. Esta abadia é símbolo da vida monástica medieval. Os filósofos vitorinos (Hugo e Ricardo da Abadia de São Vitor, século 12), em sua teoria sobre o amor, entendiam que o amor, posteriormente dito romântico, era da mesma substância do amor de Deus.

Assim como é difícil para nós mantermos o amor por Deus, é difícil sustentarmos o amor entre um homem e uma mulher. Nossa natureza "caída" não suporta o "peso" do amor. Este "peso" assume várias formas, entre elas, o compromisso com ele, principalmente no vazio que o cotidiano instaura em nosso coração e corpo sedentos.

Nossa natureza tende "para baixo", para o tédio e a insatisfação, como diz a mulher francesa no filme quando se refere às duas mulheres que existe nela: uma tende para o amor, para o alto, a outra para baixo, para a terra.

Não é à toa que ela, a francesa, após uma longa conversa com a amiga italiana, niilista e entediada, chega ao adultério, símbolo máximo do tédio e da degradação do amor. Quando nos distanciamos do amor, nos dissipamos num desejo que nos leva ao nada.

Mas, o que vem a ser esta "noite escura da alma"? Quando falamos de mística, pensamos normalmente em êxtase, em "gozo místico". Mas, a "noite escura" é o momento em que a alma, conhecedora de Deus, deixa de senti-lo no seu cotidiano, o que a leva à solidão, ao desespero e à dúvida. Uma verdadeira mística da agonia.

Neste momento, o padre lembra a máxima do Evangelho: "Você deve amar", portanto, o amor não é mero sentimento, mas sim uma ação, como é dito no filme. Agir com amor, mesmo que não sintamos o amor. Para ele, continuar cuidando dos doentes, para o casal, continuar a cuidar um do outro, porque longe do amor, somos todos doentes, umas criaturas da noite que vagam numa escuridão sem fim. No escuro, não é só o outro que desaparece, mas nós também.

O padre chega mesmo a lamentar o fato que, em seu ministério, ele deve "fingir" sentimentos que não tem, assim como um casal deve continuar a amar (esta é a condição do amor como "ação" e não mero sentimento) mesmo quando a paixão desaparece.

Quando nos sentimos longe do amor (de Deus), vemos nosso nada, isso deixa nossa alma inquieta, sedenta. Como é dito em "Árvore da Vida", filme anterior de Malick, a vida sem amor "flashes by", apenas passa. Esta é a chave para passarmos do "Árvore da Vida" ao "Amor Pleno".

A responsabilidade dos que "amam menos", como diz o padre, se referindo a ele e a Ben Affleck, é maior, porque são eles que enxergam melhor o vazio no coração da vida. Os ecos da "noite escura" atingem toda a existência, para além da teologia, adentrando a solidão nossa de cada dia.

O drama maior não é não ser amado, mas ser incapaz de amar.

Fonte: http://www1.folha.uol.com.br/colunas/luizfelipeponde/2013/08/1324946-a-noite-escura-de-terrence-malick.shtml

PS- Para ouvir a trilha do dia, vai lá: http://www.youtube.com/watch?v=529pAVbyIDs
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August 11, 2013

O que eu mais desejo

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A minha alma tem sede de ti!

Todo o meu ser anseia por ti, numa terra seca, exausta e sem água.

PS- Para ler na íntegra, vai lá: http://www.bibliaonline.com.br/acf+nvi/sl/63
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August 09, 2013

O caminho da graça

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 As freiras nos ensinaram que existem dois caminhos na vida, o caminho da natureza e o caminho da graça. 

Você precisa escolher qual deles vai seguir. 

A graça não procura satisfazer a si própria, ela aceita que a desprezem, que a esqueçam, que não gostem dela, ela aceita ser insultada e ser ferida. 

A natureza só que satisfazer a si mesma e fazer com que os outros a satisfaçam. Ela gosta de ser livre e que façam a sua vontade. Ela procura razões para ser infeliz quando o mundo todo esta feliz a seu redor e o amor está sorrindo através de  todas as coisas. 

As freiras nos ensinaram  que  quem ama  o caminho da graça jamais tem um fim triste. 

Eu serei leal a você, aconteça o que tem que acontecer.

- pr. Ed René Kivitz

Essas palavras citadas na introdução de Árvore da Vida, o deslumbrante filme de Terrence Malick, me colocaram diante de realidades antagônicas: um mundo fechado e um mundo aberto; o caminho inexorável e o caminho passível de surpresas; o determinismo e a possibilidade; o (pré)destino e a liberdade, ou sua irmã, a esperança; o previsível e o inusitado; a confirmação das probabilidades e a reversão dos prognósticos; o fatalismo e o milagre.

Penso que quem acredita que a única estrada por onde o mundo deve e pode caminhar é aquela prevista pelos sentidos da razão, vive no caminho da natureza; quem vive aberto ao mistério, no caminho da graça. Quem deseja uma ordem lógica que a tudo explica, a tudo justifica e tudo faz acontecer na perspectiva do que é justo, vive no caminho da natureza; quem prescinde de lógicas e explicações e está vulnerável a fatos que estão além ou aquém de justificativas justas e coerências racionalistas, vive no caminho da graça.

Evidentemente, não estou dizendo que a graça é irracional, ou que Deus seja incoerente ou injusto. Apenas estou intuindo que o universo é sustentado por um critério que transcende a justiça, a saber, a graça.

Quando me deparo com argumentos do tipo “Deus não pode curar uma criança pelo simples fato de que não cura todas”, sinto meus pés fincados no caminho da natureza: as coisas têm que ser assim porque somente assim  fazem sentido, têm lógica, têm critério de justiça. Deus é submetido a “tem que” ou “não pode”, isto é, seu caminho é confundido com o caminho natureza. Por outro lado, quando me deparo com fatos que não podem ser explicados, ainda que não correspondam  à equanimidade que espero e gostaria de ver no universo, tenho a estranha sensação de que algo ou alguém que não me deve satisfações – ou cujas explicações estão fora do meu alcance, está agindo no mundo independentemente de mim, do que eu acho, do que eu creio ou do que considero justo.

Toda vez que me surpreendo exigindo explicações e tentando fazer Deus caber nos limites do meu entendimento, ouço o sussurro que me faz crer estar diante de um ídolo. Isso me humilha e me devolve ao estado de criatura. Serve para me lembrar que o universo segue seu curso pelo caminho da graça, e não da natureza. Traz os meus pés para o desconhecido, vulnerável e inexplicável solo da graça e do mistério de Deus. Olho para baixo e não vejo mais o chão. E me dou conta de estar no lugar mais seguro do mundo.

Fonte: http://edrenekivitz.com/blog/2012/02/caminho-da-graca-2/

August 08, 2013

Uma palavra de encorajamento ; )

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 Devido ao aumento da maldade, o amor de muitos esfriará, 
mas aquele que perseverar até o fim será salvo.

Mateus 24:12-13

Chérie, eu sei...

... depois de receber tanta facada - uma mais, outra a menos - não faz diferença, o coração já virou um bolo de sangue, não sente mais nada.

Mas doi, eu sei que doi. E que bom que doi.

Porque você não é robô, uma máquina.

Não perca a sensibilidade.

Não anestesie a alma por causa daqueles que deixaram você para trás.

As pessoas são instáveis, mas a fidelidade de Deus dura para sempre.

NELE VOCÊ PODE CONFIAR.

E é Ele quem te sustenta e está presente, seja nos momentos bons e naqueles nem tão bons também.

Persevere.

Permaneça firme.

Deus está com você ; )!

Bjs,

KT

PS- Para ouvir a trilha do dia, vai lá: http://www.youtube.com/watch?v=WGyJ_SWp66k 
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August 07, 2013

Espaço para Deus


Portanto não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? ou: Com que nos vestiremos? Porque os gentios é que procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de todas elas; buscai, pois, em primeiro lugar o seu reino e a sua justiça, e todas estas coisas vos serão acrescentadas.
 Mt 6:31-33

- por Henri Nouwen 

INTRODUÇÃO

Neste livreto eu gostaria de explorar o que significa viver uma vida espiritual, e como se pode vivê-la. No meio das nossas vidas agitadas e turbulentas às vezes indagamos: Qual a nossa verdadeira vocação na vida? Onde podemos achar tranqüilidade de mente para poder escutar a voz de Deus que chama? Quem pode guiar-nos através do labirinto interior dos nossos pensamentos, emoções, e sentimentos? Estas e muitas outras indagações semelhantes expressam um profundo desejo de viver uma vida espiritual, mas ao mesmo tempo uma grande obscuridade sobre seu significado e prática.

Escrevi este livreto, em primeiro lugar, para os homens e mulheres que experimentam um impulso persistente para entrar mais profundamente na vida espiritual mas que estão confusos sobre a direção em que devem andar. Estas são as pessoas que conhecem a história de Cristo e têm um profundo desejo de deixar este conhecimento descer das suas mentes para seus corações. Sentem vagamente que tal "conhecimento do coração" pode não só dar-lhes um novo senso de identidade, mas também até mesmo fazer novas todas as coisas para eles. Contudo estas mesmas pessoas freqüentemente sentem uma certa hesitação e temor para começar nesta vereda sem mapa, e muitas vezes se indagam se não estão se enganando. Espero que este livreto lhes ofereça algum encorajamento e direção.

Mas quero falar também, embora indiretamente, aos muitos que consideram a história de Cristo como desconhecida ou estranha, mas que experimentam um desejo indefinido por liberdade espiritual. Espero que o que foi escrito para cristãos tenha sido escrito de tal forma que haja espaço para outros descobrirem pontos de apoio na sua própria busca por um lar espiritual. Este só pode ser um verdadeiro livreto para cristãos quando se dirige também aos que têm tantas perguntas sobre o significado da vida e que nunca acharam respostas. A autêntica vida espiritual encontra sua base na condição humana que todas as pessoas - sejam ou não cristãos têm em comum.

Como ponto de partida, escolhi as palavras de Jesus: "Não se preocupem" ("Não vos inquieteis"). A preocupação tornou-se uma parte tão integral da nossa vida cotidiana que uma vida sem preocupações não só parece ser impossível, mas até mesmo indesejável. Suspeitamos que ficar despreocupado; não ser realista e - pior ainda – é perigoso. Nossas preocupações nos motivam a trabalhar muito, a preparar-nos para o futuro, e a armar-nos contra pendentes ameaças. Entretanto, Jesus diz: "Não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? ou: Com que nos vestiremos? ... pois vosso Pai celestial sabe que necessitais de todas elas; buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino ... e todas estas cousas vos serão acrescentadas (Mt 6:31-33). Com este conselho radical e "utopista", Jesus indica a possibilidade de uma vida sem preocupações, uma vida em que todas as coisas estão se fazendo novas. Desejo, então, descrever a vida espiritual em que o Espírito de Deus pode nos recriar como pessoas verdadeiramente livres.

Dividi minhas reflexões em três partes. Na primeira parte, quero discutir os efeitos destrutivos da preocupação na nossa vida diária. Na segunda parte, pretendo mostrar como Jesus responde às nossas preocupações par alisadoras, oferecendo-nos uma nova vida, uma vida na qual o Espírito de Deus pode fazer todas as coisas novas para nós. Finalmente, na terceira parte, quero descrever algumas disciplinas específicas que podem levar nossas preocupações a perder paulatinamente sua força sobre nós, permitindo assim que o Espírito de Deus faça sua obra de recriação.

Capítulo 1: Todas Estas Coisas

INTRODUÇÃO

A vida espiritual não é uma vida antes, após, ou além da nossa existência cotidiana. Não, a vida espiritual só pode ser real quando é vivida no meio das dores e alegrias do aqui e agora. Portanto, precisamos começar com um exame cuidadoso da forma como pensamos, falamos, sentimos e agimos a cada hora, a cada dia, a cada semana, e a cada ano, a fim de ficarmos mais plenamente conscientes da nossa fome pelo Espírito.

Enquanto tivermos apenas um vago sentimento interior de insatisfação com nossa presente forma de vida, e somente um desejo indefinido por "'coisas espirituais", nossas vidas continuarão a estagnar-se em melancolia generalizada. Freqüentemente dizemos: "Não estou muito feliz. Não estou contente com o rumo da minha vida. Não tenho muita alegria ou paz, mas como não sei como as coisas poderiam ser diferentes, suponho que devo ser realista e aceitar a vida como é". É este espírito de resignação que nos impede de ativamente buscar a vida do Espírito.

Nossa primeira tarefa é expulsar este vago e obscuro sentimento de insatisfação e fazer um exame crítico da forma que estamos vivendo. Isto requer honestidade, coragem e confiança. Temos de honestamente desmascarar e corajosamente confrontar nossas numerosas brincadeiras que usamos para enganarmos a nós mesmos. Temos que confiar que nossa honestidade e coragem não nos levarão ao desespero, mas a um novo céu e a uma nova terra.

Bem mais do que o povo da época de Jesus, nós nesta "era moderna" podemos ser chamados de povo preocupador. Mas como nossa preocupação contemporânea realmente se manifesta? Depois de examinar criticamente minha própria vida e as vidas ao meu redor, duas palavras surgem como descritivas da nossa situação: cheios e não realizados.

CHEIOS

Uma das características mais óbvias das nossas vidas diárias é que estamos atarefados. Na nossa vida os dias são cheios de coisas para fazer, pessoas para encontrar, projetos para terminar, cartas para escrever, telefonemas para completar, e compromissos para guardar. Nossas vidas muitas vezes parecem malas abarrotadas rebentando nas costuras. Na realidade, quase sempre estamos cônscios de algum atraso. Há um sentimento incômodo que importunamente nos avisa que há tarefas incompletas, promessas não cumpridas, propostas não realizadas. Sempre há algo mais que deveríamos ter lembrado, feito ou dito. Sempre há pessoas com quem não falamos, a quem não escrevemos ou não visitamos. Assim, embora sejamos muito atarefados, também temos um sentimento persistente de que nunca realmente cumprimos nossas obrigações.

O estranho, porém, é que é muito difícil não estar atarefado. Estar atarefado tornou-se um símbolo de status. As pessoas esperam que estejamos ocupados e que tenhamos muitos assuntos na nossa mente. Freqüentemente nossos amigos nos dizem: "Imagino que você está ocupado como sempre", e o dizem em tom de elogio. Reafirmam a presunção generalizada que é bom estar atarefado. De fato, os que não sabem o que fazer no futuro imediato incomodam seus amigos. Estar atarefado e ser importante normalmente parecem significar a mesma coisa. Muitos telefonemas começam com a frase: "Sei que você está ocupado, mas será que poderia me dar um minuto?" Com isto, sugerem que tomar um minuto de quem tem uma agenda cheia vale mais do que tomar uma hora de quem tem pouco para fazer.

Na nossa sociedade orientada para produção, estar atarefado ou ter uma ocupação tornou-se uma das principais formas, se não a principal, de nos identificar. Sem uma ocupação, não só nossa segurança econômica, mas nossa própria identidade é ameaçada. Isto explica o grande temor com que muitas pessoas enfrentam a aposentadoria. Afinal, quem somos depois de não mais ter uma ocupação?

Mais escravizadoras do que nossas ocupações, porém, são as nossas preocupações. Estar preocupado significa encher nosso tempo e espaço muito antes de chegar lá. Isto é inquietação no sentido mais específico da palavra. É uma mente cheia de "se". Dizemos a nós iremos: "E se eu ficar gripado? Se eu perder meu emprego? Se o meu f ilho não chegar em casa na hora certa? Se não houver bastante alimento amanhã? Se eu for atacado? Se uma guerra começar? Se o mundo acabar? Se ... ?" Todas essas perguntas enchem a nossa mente com pensamentos ansiosos e fazem-nos indagar constantemente sobre o que fazer e o que dizer caso algo aconteça no futuro. Grande parte, senão a maioria, do nosso sofrimento tem ligação com estas preocupações. Possíveis mudanças de carreira, possíveis conflitos familiares, possíveis enfermidades, possíveis desastres, e um possível holocausto nuclear fazem-nos ansiosos, temerosos, desconfiados, gananciosos, nervosos e melancólicos. Impedem-nos de sentir uma verdadeira liberdade interior. Por estarmos sempre prontos para eventualidades, raramente confiamos plenamente no agora. Não é exagero dizer que grande parte da energia humana é investida nestas preocupações temerosas. Tanto nossa vida individual como coletiva estão tão profundamente moldadas por nossas preocupações com o amanhã, que dificilmente o hoje pode ser vivido.

Não somente estar ocupado mas também estar preocupado é altamente encorajado por nossa, sociedade. A forma que jornais, rádio e televisão nos comunicam suas informações cria uma atmosfera de constante emergência. As vozes excitadas dos repórteres, a preferência por acidentes repugnantes, crimes cruéis, e conduta pervertida, e a cobertura de hora em hora da miséria humana dentro e fora do país, lentamente nos engolfam num senso abrangente de iminente destruição. Além de todas essas notícias ruins existe a avalanche de anseios. Sua insistência inflexível de que perderemos alguma coisa muito importante se ficarmos sem ler este livro, sem ver este filme, sem ouvir este locutor, ou sem comprar este novo produto, intensifica nossa inquietação e acrescenta muitas preocupações fabricadas às preocupações já existentes. Às vezes parece como se nossa sociedade dependesse da manutenção dessas preocupações artificiais. Que aconteceria se parássemos de nos preocupar? Se o desejo por divertir tanto, viajar tanto, comprar tanto, e nos proteger tanto, não mais motivasse nosso comportamento, será que nossa sociedade atual ainda poderia funcionar? A tragédia é que realmente estamos presos num emaranhado de expectativas falsas e necessidades arranjadas. Nossas ocupações e preocupações enchem nossas vidas externas e internas até ao máximo. Impedem o Espírito de Deus de fluir livremente em nós e desta forma renovar nossas vidas.

NÃO REALIZADOS

Sob a preocupação das nossas vidas, contudo, algo mais está acontecendo. Ao mesmo tempo em que nossa mente e coração estão cheios com muitas coisas, levando-nos a indagar como podemos satisfazer as expectativas impostas sobre nós por nós mesmos e por outros, temos um sentimento profundo de não realização. Embora atarefados e preocupados com muitas coisas, raramente nos sentimos verdadeiramente realizados, em paz, ou em casa. Um sentimento corrosivo de não realização está sob a superfície das nossas vidas ocupadas. Refletindo um pouco mais sobre esta experiência de não realização, posso discernir diversos sentimentos. Os mais significativos são enfado, ressentimento e depressão.

Enfado é um sentimento de estar desligado. Enquanto estamos atarefados com muitas coisas, indagamos se o que fazemos realmente faz alguma diferença. A vida se apresenta como uma série aleatória de atividades e acontecimentos desconexos sobre os quais temos pouco ou nenhum controle. Estar enfadado, portanto, não significa que não temos nada para fazer, mas que questionamos o valor das coisas que estamos tão atarefados em fazer. O grande paradoxo da nossa época é que muitos de nós estamos simultaneamente atarefados e enfadados. Enquanto corremos de um acontecimento para outro, indagamos em nosso próprio íntimo se alguma coisa está realmente acontecendo. Embora dificilmente cumpramos com nossas tarefas e obrigações, não estamos tão certos se faria alguma diferença se não as cumpríssemos. Enquanto as pessoas continuam nos empurrando por todos os lados, duvidamos se alguém realmente se importa conosco. Em resumo, embora nossas vidas estejam cheias, nós nos sentimos não realizados.

Enfado muitas vezes está intimamente relacionado com ressentimentos Ao mesmo tempo em que estamos atarefados, ainda indagamos se nossa atividade significa algo para alguém. Facilmente sentimo-nos usados, manipulados, e explorados. Começamos a nos ver como vítimas mandadas e forçadas a realizar toda sorte de coisas por pessoas que realmente não nos consideram seriamente como seres humanos. A partir daí uma ira interior começa a se desenvolver, uma ira que com o tempo se instala no nosso coração como um companheiro constantemente queixoso. Nossa ira quente aos poucos se torna uma ira fria. Esta "ira congelada" é o ressentimento que causa um efeito tão mortífero em nossa sociedade.

Porém, a expressão mais debilitante de nossa não realização é depressão. Quando começamos a sentir que não somente nossa presença não faz muita diferença, mas que também nossa ausência talvez seja preferível, podemos facilmente ser enrolados por um sentimento opressivo de culpa. Esta culpa não tem ligação com nenhuma atividade particular, mas com a própria vida. Sentimo-nos culpados por estar vivos. O pensamento de que o mundo talvez fosse melhor sem refrigerante, desodorante, ou submarino nuclear, cuja produção preenche as horas de trabalho de nossa vida, pode levar-nos à desesperante pergunta: "Vale a pena viver?" Portanto, não é de se admirar que pessoas que são sempre elogiadas por seus êxitos e realizações, freqüentemente sentem muita falta de realização, até ao ponto de suicidarem-se.

Enfado, ressentimento e depressão são todos os sentimentos de desligamento. Apresentam-nos a vida como um elo quebrado. Transmitem a nós um senso de não pertencer. No caso de relacionamentos pessoais, esta desconexão é experimentada como solidão. Quando estamos solitários vemos a nós mesmos como indivíduos isolados, cercados, talvez, por muitas pessoas, mas não realmente parte de qualquer comunidade de apoio e proteção. Sem dúvida solidão é uma das doenças mais disseminadas do nosso tempo. Afeta não somente a vida dos aposentados, mas também a vida familiar, a vida comunitária, a vida escolar, e a vida profissional. Causa sofrimento não somente às pessoas idosas, mas também às crianças, aos jovens e adultos. Penetra não somente em prisões mas também em residências particulares, edifícios de escritórios e hospitais. É vista até na interação cada vez mais escassa entre pessoas nas ruas de nossas cidades. No meio de toda esta solidão impregnante muitos clamam: "Existe alguém que realmente se importa comigo? Existe alguém que pode arrancar meu sentimento interior de isolamento? Existe alguém com quem eu possa me sentir em casa?"

É este sentimento paralisante de abandono que constitui o cerne da maioria do sofrimento humano. Podemos suportar muito sofrimento físico e até mental quando sabemos que isto verdadeiramente nos torna uma parte integrante da vida que vivemos juntos neste mundo. Mas quando nos sentimos cortados da família dos seres humanos, rapidamente desfalecemos.

Enquanto acreditamos que nossos sofrimentos e lutas nos unem aos nossos companheiros e companheiras humanos, fazendo-nos assim partes da luta comum do ser humano por um futuro melhor, estamos plenamente dispostos para aceitar uma tarefa exigente. Mas quando nos consideramos espectadores passivos sem nenhuma contribuição para fazer à história da vida, nossos sofrimentos não são mais sofrimentos construtivos e nem nossas lutas servem para produzir nova vida, porque assim temos um sentimento de que nossas vidas acabam e desaparecem depois de nós, sem nos levar a destino algum. De fato, às vezes somos obrigados a dizer que a única coisa que lembramos de nosso passado recente é que estávamos muito atarefados, que todas as coisas pareciam muito urgentes e que dificilmente podíamos colocá-las em dia. O que fizemos não lembramos. Isto mostra quão isolados nos tornamos. O passado não mais nos leva para o futuro; simplesmente nos deixa preocupados sem nenhuma promessa de mudanças para o melhor.

Nosso desejo de ser livres deste isolamento pode se tornar tio forte que explode em violência. Então nossa necessidade por um relacionamento íntimo - com um amigo, um namorado, ou uma comunidade apreciativa - se transforma num apelo desesperado por alguém que nos ofereça uma satisfação imediata, relaxamento de tensão, ou um sentimento temporário de identificação. Neste caso, nossa necessidade mútua degenera e torna-se uma agressão perigosa que causa muito dano e somente intensifica nosso sentimento de solidão.

CONCLUSÃO

Espero que estas reflexões tenham nos aproximado mais do significado da palavra "preocupação" tal como foi usada por Jesus. Hoje preocupação significa estar ocupado e preocupado com muitas coisas, e ao mesmo tempo estar enfadado, ressentido, deprimido, e muito solitário. Não estou tentando dizer que todos nós em todo tempo estamos tão extremamente preocupados. Porém, há pouca dúvida em minha mente que a experiência de estar cheio porém não realizado atinge a maioria de nós em alguma medida em algum tempo da nossa vida. Em nosso mundo altamente tecnológico e competitivo, é difícil evitar completamente as forças que saturam nosso espaço interior e exterior e desligam-nos de nosso ser mais íntimo, dos nossos companheiros humanos, e do nosso Deus.

Uma das características mais notáveis da preocupação é que ela fragmenta nossas vidas. As muitas coisas que temos de fazer, considerar, e planejar, as muitas pessoas que precisamos lembrar, visitar, ou conversar, as muitas causas que devemos atacar ou defender, tudo isto despedaça-nos e nos faz perder nosso equilíbrio. Preocupação nos leva a estar "em todo lugar", mas raramente em casa. Uma forma de expressar a crise espiritual de hoje é dizer que a maioria de nós tem um endereço, mas não pode ser encontrado lá. Sabemos onde está nosso lugar, mas estamos sempre sendo arrastados em muitas direções, como se fôssemos ainda desabrigados. "Todas estas coisas" estão sempre exigindo nossa atenção. Levam-nos tão longe de casa que no fim nos esquecemos do nosso verdadeiro endereço, isto é, o lugar onde podemos ser encontrados.

Jesus reage a esta condição de estar cheio porém não realizado, muito atarefado porém desligado, em todo lugar porém nunca em casa. Ele nos quer levar ao lugar onde pertencemos. Mas seu chamado para viver uma vida espiritual só pode ser ouvido quando queremos honestamente confessar nossa existência desabrigada e preocupada e reconhecer seu efeito fragmentador em nossa vida diária. Só então um desejo por nosso verdadeiro lar pode ser desenvolvido. É a respeito deste desejo que Jesus fala quando diz: "Não vos preocupeis... buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e todas estas cousas vos serão acrescentadas".

Capítulo 2: Seu Reino em Primeiro Lugar

INTRODUÇÃO

Jesus não reage ao nosso estilo de vida cheio e preocupação dizendo que não deveríamos estar tão ocupados com afazeres terrenos. Ele não tenta nos retirar dos muitos eventos, atividades, e pessoas que compõem nossas vidas. Não nos diz que o que fazemos não tem importância, valor, ou utilidade.

Nem sugere que devemos nos afastar de nossos envolvimentos e viver vidas calmas, tranqüilas e retiradas das lutas do mundo.

A resposta de Jesus para nossas vidas cheias de preocupação é bem diferente. Ele pede de nós que substituamos nosso ponto de gravidade, relocalizemos o centro de nossa atenção, que mudemos as nossas prioridades. Jesus quer que deixemos as "muitas coisas" para a "única coisa necessária". É importante que compreendamos que Jesus não quer de forma alguma que deixemos nosso mundo de muitas facetas. Antes, quer que vivamos nele, mas firmemente arraigados no centro de todas as coisas. Jesus não fala sobre uma mudança de atividades, uma mudança de contatos, ou até uma mudança de ritmo. Ele fala sobre uma mudança de coração. Esta mudança de coração faz todas as coisas diferentes, até mesmo quando todas as coisas parecem permanecer as mesmas. Este é o significado de: "Buscai, pois em primeiro lugar, o seu reino... e todas estas coisas serão acrescentadas". O mais importante é onde estão nossos corações. Quando nos preocupamos, temos nossos corações no lugar errado. Jesus pede que coloquemos nossos corações no centro, onde todas as outras coisas irão se encaixar.

Qual é este centro? Jesus o chama de reino, o reino do Seu Pai. Para nós do século XX, isto pode não ter muito significado. Reis e reinos não exercem um papel muito importante em nossa vida diária. Mas somente quando entendemos as palavras de Jesus como um chamado urgente para colocar a vida do Espírito de Deus como nossa prioridade é que podemos ver melhor o que está envolvido. Um coração que busca o reino do Pai é também um coração que busca a vida espiritual. Buscar o reino, portanto, significa colocar a vida do Espírito, dentro de nós e entre nós como o centro de tudo que pensamos, dizemos ou fazemos.

Agora, quero explorar em mais profundidade esta vida no Espírito. Primeiro precisamos ver como o Espírito de Deus se manifesta na própria vida de Jesus. Depois precisamos discernir o que significa para nós ser chamados por Jesus para entrar com ele nesta vida do Espírito.

A VIDA DE JESUS

Não há muita dúvida de que a vida de Jesus foi uma vida muito atarefada. Ele esteve atarefado ensinando seus discípulos, pregando às multidões, curando os doentes expelindo demônios, respondendo perguntas de inimigos e amigos, e andando de um lugar para outro. Jesus estava tão envolvido em atividades que se tornava difícil ter algum tempo sozinho. Esta história nos dá uma idéia. "À tarde, ao cair do sol, trouxeram a Jesus todos os enfermos, e endemoninhados. Toda a cidade estava reunida à porta. E ele curou muitos doentes de toda sorte de enfermidades; também expeliu muitos demônios ... Tendo se levantado alta madrugada, saiu, foi para um lugar deserto, e ali orava. Procuravam-no diligentemente Simão e os que com ele estavam. Tendo-o encontrado, lhe disseram: Todos te buscam. Jesus, porém, lhes disse: Vamos a outros lugares, às povoações vizinhas, a fim de que eu pregue também ali, pois para isso é que eu vim. Então foi por toda a Galiléia, pregando nas sinagogas deles e expelindo os demônios" (Mt 1:32-39).

Está claro neste relato que Jesus tinha uma vida muito cheia e raramente, possivelmente nunca, era deixado sozinho. Pode até nos dar a impressão de um fanático impulsionado a transmitir sua mensagem por todo lado a qualquer custo. A verdade, porém, é diferente. Quanto mais nos aprofundamos nos relatos do Evangelho sobre sua vida, mais vemos que Jesus não era um zelote tentando realizar muitas coisas diferentes a fim de alcançar uma meta imposta por ele mesmo. Ao contrário, tudo o que sabemos sobre Jesus mostra que estava interessado numa coisa somente: fazer a vontade do seu Pai. Nada nos Evangelhos é tão marcante como a obediência resoluta de Jesus a seu Pai. Desde suas primeiras palavras registradas ditas no templo. "Não sabíeis que me cumpria estar na casa de meu Pai?" -(Lc 2:49), até suas ultimas palavras na cruz- "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito" (Lc.23:46), o único interesse de Jesus era fazer a vontade de seu Pai. Ele disse: "...o Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o Pai..." (Jo 5-19). As obras que Jesus fez são as obras que o Pai o enviou para fazer, e as palavras que falou são as palavras que o Pai lhe deu. Ele não deixa duvida sobre isto: "Se não faço as obras de meu Pai, não me acrediteis.." (Jo 10: 37);" ...e a palavra que estais ouvindo não é minha, mas do Pai que me enviou" (Jo 14: 24).

Jesus não e nosso Salvador simplesmente por causa do que disse ou fez para nós. É o nosso Salvador porque o que disse e fez foi dito e feito em obediência a seu Pai. Por isto Paulo pode dizer. "Porque, como pela desobediência de um só homem muitos se tornaram pecadores, assim também por meio da obediência de um só muitos se tornarão justos" (Rm 5:19). Jesus é o homem obediente. O centro da sua vida é este relacionamento de obediência com o Pai. Isto pode ser difícil para nós entendermos, porque a palavra "obediência" tem tantas conotações negativas em nossa sociedade. Faz-nos pensar em figuras autoritárias que impõem a vontade deles sobre os nossos desejos. Faz-nos lembrar de acontecimentos infelizes da infância ou tarefas difíceis executadas sob ameaças de castigo. Mas nada disto se refere à obediência de Jesus.

Sua obediência significa uma atenção total e destemida a seu Pai amoroso. Entre o Pai e o Filho há somente amor. Todas as coisas que pertencem ao Pai, ele confia ao Filho (Lc IO:22), e todas as coisas que o Filho recebe, devolve ao Pai. O Pai se abre totalmente para o Filho e coloca todas as coisas em ,suas mãos: todo conhecimento (Jo 12:50), toda glória (Jo 8:54), todo poder (Jo 5:19-21). E o Filho se abre totalmente para o Pai e desta forma devolve todas as coisas às mãos de seu Pai. "Vim do Pai e entrei no mundo; todavia deixo o mundo e vou para o Pai" (Jo 16:28).

Este amor inexaurível entre o Pai e o Filho inclui e até transcende todas as formas de amor que conhecemos. Inclui o amor de pai e mãe, irmão e irmã, esposo e esposa, professor e amigo. Mas também vai muito além das muitas limitadas e limitantes experiências humanas de amor que conhecemos. É um amor que cuida mas exige. É um amor sustentador mas severo. É um amor suave mas forte. É um amor que da vida. mas aceita a morte. Neste divino amor Jesus foi enviado ao mundo, e por este divino amor Jesus se ofereceu na cruz. Este amor envolvente, que sintetiza o relacionamento entre o Pai e o Filho, é uma Pessoa divina, co-ígual com o Pai e o Filho.. Tem um nome pessoal. É chamado Espírito Santo. O.Pai ama o Filho e se derrama no Filho. O Filho é amado pelo Pai e devolve tudo que ele é ao Pai. O Espírito é o próprio amor em si, eternamente envolvendo o Pai e o Filho.

Esta comunidade eterna de amor é o centro e fonte da vida espiritual de Jesus, uma vida de sensibilidade ininterrupta para com o Pai no Espírito de amor. É desta vida que o ministério de Jesus floresce. Comendo e jejuando, orando e agindo, viajando e descansando, pregando e ensinando, expulsando e curando, tudo foi feito neste Espírito de amor. Nunca entenderemos o pleno significado do rico e variado ministério de Jesus sem que vejamos como as muitas coisas são enraizadas em uma coisa: ouvir o Pai numa intimidade de amor perfeito.Quando virmos isto, também compreenderemos que o alvo do ministério de Jesus é nada menos que nos introduzir nesta mais intima comunidade.

NOSSAS VIDAS

Nossas vidas são destinadas a se tornarem como a vida de Jesus. Afinal, o propósito total do ministério de Jesus é levar-nos -a casa do seu Pai. Jesus não veio somente para nos libertar dos grilhões do pecado e da morte, senão também para levarmos à intimidade desta vida divina. Para nós é difícil imaginar o que isto significa. Nossa tendência a enfatizar a distancia entre Jesus e nós mesmos. Vemos Jesus como o Onisciente e Onipotente Filho de Deus, o qual é inatingível para nós seres humanos caídos e pecadores. Mas pensando desta forma, esquecemos que Jesus veio para nos dar sua própria vida. Veio para nos elevar à participação na comunidade de amor com o Pai. Somente quando reconhecemos o propósito fundamental do ministério de Jesus é que estaremos aptos a entender o significado da vida espiritual. Todas as coisas que pertencem a Jesus nos são dadas para que as recebamos. Tudo que Jesus fez nós também podemos fazer. Jesus não se refere a nós como cidadãos de segunda classe. Ele não retém nenhuma coisa de nós: " ... tudo quanto ouvi de meu Pai vos tenho dado a conhecer" (Jo 15:15); " ... aquele que crê em mim, fará também as obras que eu faço..."(Jo 14:12). Jesus quer que estejamos onde ele está. Em sua oração sacerdotal, ele não deixa duvida alguma sobre sua intenção: "... a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai, em mim e eu em ti ... Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado, para que sejam um, como nós o somos, eu neles e tu em mim, a fim de que sejam aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste, e os amaste como também amaste a mim. Pai, a minha vontade é que onde eu estou, estejam também comigo os que me deste, para que vejam a minha glória que me conferiste... Eu lhes fiz conhecer o teu nome ainda o farei conhecer, a fim de que o amor com que me amaste esteja neles e eu neles esteja" (Jo 17:21-26).

Estas palavras são uma expressão bela da natureza do ministério de Jesus. Ele se tornou como nós para que pudéssemos nos tornar como ele. Ele não se apegou a sua unidade com Deus, mas se esvaziou e se tornou como nós para, que pudéssemos nos tornar como ele e desta forma participar da sua vida divina.

Esta transformação radical de nossas vidas é a obra do Espírito Santo. Os discípulos mal conseguiam compreender o significado de Jesus.Enquanto Jesus estava presente com eles na carne, ainda não reconheciam sua presença plena no Espírito. Por isto Jesus disse: "Convém-vos que eu vá, porque se eu não for o Consolador não virá para vós outros; se, porém, eu for, eu vo-lo enviarei ... quando vier, porém, o, Espírito da verdade, ele vos guiará a toda a verdade; porque não falara por si mesmo, mas dirá tudo o que tiver ouvido, e vos anunciara as cousas que hão de vir. Ele me glorificará porque há de receber do que a meu, e vo-lo há de anunciar. Tudo quanto o Pai tem é meu; por isso é que vos disse que há de receber do que a meu e vo-lo há de anunciar" (Jo 16:7, 13-15).

Jesus envia o Espírito para nos levar à plena verdade da vida divina. Verdade não significa uma idéia, conceito, ou doutrina mas o verdadeiro relacionamento. Ser levado a participar da verdade é ser levado a participar do relacionamento que Jesus tem com o Pai; é entrar no noivado divino.

Desta forma o Pentecoste é a conclusão da missão de Jesus. No Pentecoste a plenitude do ministério de Jesus se torna visível. Quando o Espírito Santo desce sobre os discípulos e habita neles, suas vidas são transformadas em vidas semelhantes a Cristo, vidas moldadas pelo mesmo amor que existe entre o Pai e o Filho. A vida espiritual é realmente uma vida na qual somos elevados para nos tornar participantes da vida divina.

Ser elevado à vida divina do Pai, do Filho, e do Espírito Santo não significa, porém, ser tirado do mundo. Ao contrário, aqueles que entram na vida espiritual são exatamente os que são enviados ao mundo para continuar e concluir a obra que Jesus começou. A vida espiritual não nos remove do mundo mas leva-nos a nos aprofundar mais nele.

Jesus disse para seu Pai: "Assim como tu me enviaste ao mundo, também eu os enviei ao mundo" (Jo 17:18). Ele esclarece que exatamente porque seus discípulos não mais pertenciam ao mundo, podiam viver no mundo como ele vivia. "Não peço que os tires do mundo, e sim, que os guardes do mal. Eles, não são do mundo como também eu não sou" (Jo 17:15-16). Vida no Espírito de Jesus e portanto uma vida na qual a vinda de Jesus ao mundo sua encarnação, sua morte, e ressurreição demonstrada por aqueles que entraram no mesmo relacionamento de obediência ao Pai que marcou a própria vida de Jesus. Tornando-nos filhos e filhas como Jesus foi Filho, nossas vidas se tornam uma continuação da missão de Jesus.

"Estar no mundo sem ser do mundo". Estas palavras sintetizam bem a maneira que Jesus fala sobre a vida espiritual. É uma vida na qual somos totalmente transformados pelo Espírito de amor. Contudo é uma vida onde todas as coisas parecem permanecer as mesmas. Viver uma vida espiritual não significa que devemos deixar nossas famílias, abandonar nossos empregos, ou mudar nossas formas de trabalhar; não significa que temos de nos afastar de atividades políticas e sociais, ou perder interesse na literatura e na arte; não exige formas severas de ascetismo ou longas horas de oração. Mudanças como estas podem de fato vir como frutos da nossa vida espiritual, e para algumas pessoas decisões radicais podem ser necessárias. Mas a vida espiritual pode ser vivida de tantas formas quanto existem pessoas. A novidade é que nos transferimos das muitas coisas para o reino de Deus. A novidade que nos livramos das coerções do mundo e colocamos nossos corações na únlca, coisa necessária. A novidade é que não experimentamos mais as muitas coisas pessoas e acontecimentos como motivos infindáveis de preocupação, mas começamos a experimentá-los como maneiras ricas e variadas nas quais Deus manifesta sua presença para nós.

De fato, viver uma vida espiritual requer uma mudança de coração, uma conversão. Tal conversão pode ser marcada por uma mudança interior repentina, ou pode ocorrer através de um longo e suave processo de transformação. Mas sempre envolve uma experiência interior de harmonia. Compreendemos que agora estamos no centro, e que desta posição tudo que existe e ocorre pode ser visto e entendido como parte do mistério da vida de Deus conosco. Nossos conflitos e dores, nossas tarefas e compromissos, nossas famílias e amigos, nossas atividades e projetos, nossas esperanças e aspirações, não mais se nos apresentam como uma variedade de coisas fatigantes que mal conseguimos controlar, mas antes se revelam como afirmações e revelações da nova vida do Espírito em nós. "Todas estas coisas", que nos ocupavam e preocupavam ' agora vêm como dons ou desafios que fortalecem e aprofundam a nova vida que descobrimos. Isto não significa que a vida espiritual torna as coisas mais fáceis ou que abole nossos esforços e lutas. A vida dos discípulos de Jesus mostra claramente que o sofrimento não diminui por causa da conversão. Às vezes até se torna mais intenso. Mas nossa atenção não é mais dirigida para esta questão de "mais ou menos". O importante é escutar atentamente ao Espírito e ir obedientemente onde estamos sendo dirigidos quer seja um lugar alegre, quer seja doloroso.

Pobreza, dor, luta, angústia, agonia e mesmo escuridão interior podem continuar a fazer parte de nossa experiência. Podem até ser a maneira de Deus nos purificar. Mas a vida deixou de ter enfado, ressentimento, depressão, ou solidão porque aprendemos que todas as coisas que acontecem fazem parte do nosso caminho para a casa do Pai.

CONCLUSÃO

"Seu reino em primeiro lugar". Espero que estas palavras tenham adquirido um novo sentido. Elas nos chamam a seguir a Jesus em seu caminho de obediência, a entrar com ele na comunidade estabelecida pelo amor exigente do Pai, e a viver toda nossa vida daquela posição. O reino é o lugar onde Espírito de Deus nos dirige, nos cura, nos desafia, e nos renova continuamente. Quando nossos corações estão fixos naquele reino, nossas preocupações lentamente ficam para trás, porque as muitas coisas que nos faziam preocupar tanto começam a se encaixar. É importante entender que "buscar o reino" não é um método para se ganhar galardões.Neste caso a vida espiritual acabaria sendo como ganhar o sorteio num jogo de sorte. As palavras "todas as, outras coisas vos serão acrescentadas" expressam que o amor e o cuidado de Deus se estendem para todo o nosso ser. Quando buscarmos a vida no Espírito de Cristo,conseguiremos ver e entender melhor como Deus nos guarda na palma de sua mão. Chegaremos a um melhor entendimento do que realmente precisamos para nosso bem estar físico e mental, e experimentaremos a ligação íntima entre nossa vida espiritual e nossas necessidades temporais durante a nossa peregrinação no seu mundo.

Mas isto nos deixa com uma pergunta muito difícil. Há uma maneira de sair da nossa vida, "cheia de preocupação e entrar na vida do Espírito? Devemos simplesmente esperar passivamente até que o Espírito chegue e assopre para longe as nossas preocupações? Há alguma maneira pela qual podemos nos preparar para a vida do Espírito e aprofundar esta vida depois dela nos tocar? A distância entre a vida cheia e não realizada de um lado, e a vida espiritual do outro, é tão grande que pode parecer completamente irreal esperar a mudança de uma para a outra. As exigências que a vida diária nos faz são tão reais, tão imediatas, e tão urgentes que uma vida no Espírito parece além de nossa capacidade.

Minha descrição da vida cheia de preocupação e a vida espiritual como dois extremos do espectro da vida foi necessária para tornar claro o que está envolvido. Mas a maioria de nós não está nem constantemente preocupada e nem exclusivamente absorvida no Espírito. Muitas vezes há lampejos da presença do Espírito de Deus no meio de nossas preocupações, e freqüentemente preocupações surgem mesmo quando experimentamos a vida do Espírito no mais interior de nosso ser. É importante que aos poucos entendamos onde estamos e que aprendamos como podemos deixar a vida do Espírito de Deus se fortalecer dentro de nós.

Isto leva-me para a tarefa final: descrever as disciplinas principais que podem nos sustentar em nosso desejo de nos desvencilhar das garras de nossas preocupações e deixar que o Espírito nos guie para a verdadeira liberdade dos filhos de Deus.

Capítulo 3: Buscai o Reino

INTRODUÇÃO

A vida espiritual é um dom. É o dom do Espírito Santo, que nos introduz no reino do amor de Deus. Mas dizer que ser introduzido no reino de Deus é um dom divino não quer dizer que esperamos passivamente até que o dom se nos ofereça. Jesus nos fala para buscar o reino. Buscar alguma coisa envolve não somente aspiração séria mas também determinação forte. A vida espiritual requer esforço humano. As forças que sempre nos puxam de volta a uma vida cheia de preocupação não são fáceis de se vencer. "Quão dificilmente", Jesus exclama, "entrarão no reino de Deus ..." (Mc 10:23). E para nos convencer da necessidade de trabalho duro, ele diz: "Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e siga-me" (Mt 16:24)

Neste ponto tocamos a questão de disciplina na vida espiritual. A vida espiritual sem disciplina é impossível. Disciplina é o outro lado do discipulado. A prática de uma disciplina espiritual nos torna mais sensíveis à voz tranqüila e suave de Deus. O profeta Elias não encontrou Deus no vento forte nem no terremoto e nem no fogo, mas no cicio tranqüilo (1 Rs 19:11-13). Através da prática de uma disciplina espiritual tornamo-nos sensíveis a essa voz tranqüila e prontos a responder quando a ouvimos.

Em relação a tudo que eu disse sobre nossas vidas preocupadas e sobrecarregaras é claro que geralmente estamos envolvidos, interior e exterior que fica realmente difícil ouvir a voz de Deus quando Ele nos está falando. Muitas vezes tornamo-nos surdos, incapazes de saber quando Deus nos chama, incapazes de entender em que direção nos chama. Desta forma nossas vidas se tornam um absurdo. Na palavra absurdo encontramos a palavra latina surdus, que significa "surdo". A vida espiritual requer disciplina porque precisamos aprender a ouvir a Deus. que constantemente fala mas a quem raramente ouvimos. Porém, quando aprendemos a ouvir, nossas vidas se tornam vidas obedientes. A palavra obediente vem da palavra latina obaudire, que significa "ouvir". É necessário ter uma disciplina espiritual se quisermos mudar lentamente de uma vida absurda para uma vida obediente, de uma vida cheia de preocupações agitadas para uma vida em que há espaço livre no nosso interior para ouvir nosso Deus e seguir sua orientação. A vida de Jesus foi uma vida de obediência. Estava sempre escutando o Pai, sempre atento a sua voz, sempre alerta as suas direções. Jesus era "todo ouvidos". Isto é a verdadeira oração: ser todo ouvido para Deus. O cerne de toda oração é realmente ouvir, permanecer obedientemente na presença de Deus.

Uma disciplina espiritual, portanto, é um esforço concentrado para criar um pouco de espaço interior e exterior em nossas vidas, onde esta obediência pode ser praticada. Através de uma disciplina espiritual impedimos que o mundo preencha nossas vidas de tal forma que não haja mas lugar para ouvir. Uma disciplina espiritual nos liberta para orar, ou melhor dizendo, liberta o Espírito de Deus para orar em nós.

Vou apresentar agora duas disciplinas pelas quais podemos "buscar o reino". Podem ser consideradas como disciplinas de oração. São a disciplina de solidão e a disciplina de comunidade.

SOLIDÃO

Sem solidão é virtualmente impossível viver uma vida espiritual. Solidão começa com um tempo e lugar para Deus e somente para ele. Se realmente cremos que Deus não somente existe mas também está ativamente presente em nossas vidas - curando, ensinando, e dirigindo - precisamos reservar um tempo e um espaço para lhe dar nossa atenção ininterrupta. Jesus disse: "Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e fechada a porta orarás a teu Pai que está em secreto..." (Mt 6:6).

Produzir um elemento de solidão em nossas vidas é uma das disciplinas mais necessárias mas também mais difíceis. Mesmo que tenhamos um desejo profundo por solidão verdadeira, também experimentamos uma certa apreensão quando nos aproximamos deste lugar e tempo solitários. Uma vez que estamos sós, sem pessoas com quem conversar, livros para ler, TV para assistir, ou telefonemas para fazer, um caos interior se revela em nós. Este caos pode ser tão perturbador e tão confuso que não vemos a hora de nos ocuparmos novamente. Portanto, entrar num quarto à parte e fechar a porta, não significa que imediatamente excluímos todas nossas dúvidas interiores, ansiedades, medos, maus pensamentos, conflitos insolúveis, sentimentos de ira, desejos impulsivos. Ao contrário, quando nos afastamos de nossas distrações exteriores, frequentemente descobrimos que nossas distrações interiores se manifestam a nós com toda a sua força. Muitas vezes usamos as distrações exteriores para nos proteger dos barulhos interiores. Desta forma não é de se admirar que tenhamos dificuldade para ficar sozinhos. A confrontação com nossos conflitos interiores pode ser dolorosa demais para ser suportada.

Isto torna a disciplina de solidão ainda mais importante. Solidão não é uma resposta espontânea a uma vida ocupada e preocupada. Há razões de sobra para não ficar sozinho. Portanto, devemos começar planejando cuidadosamente um tempo de solidão. Cinco ou dez minutos por dia pode ser o máximo que toleramos. Talvez estejamos prontos para uma hora todo o dia, uma tarde toda semana, um dia todo mês, ou uma semana todo ano. A quantidade de tempo vai variar para cada pessoa de acordo com o temperamento, idade, trabalho, estilo de vida e maturidade. Mas não estamos levando a vida espiritual a sério se não reservamos algum tempo para estar com Deus e ouvi-lo. Talvez tenhamos que escrever isto em preto e branco em nossa agenda diária para que mais ninguém possa nos roubar este período de tempo. Então poderemos dizer aos nossos amigos, vizinhos, alunos, fregueses, clientes, ou pacientes: "Desculpe, mas já fiz um compromisso neste horário que não pode ser mudado".

Uma vez que nos comprometemos a gastar tempo em solidão, desenvolvemos uma sensibilidade à voz de Deus em nós. No início, durante os primeiros dias, semanas, ou até meses, podemos ter o sentimento de que estamos simplesmente perdendo tempo. Tempo em solidão no início pode parecer nada mais que um tempo no qual somos bombardeados por milhares de pensamentos e sentimentos que emergem das áreas escondidas de nossa mente. Um dos mais antigos escritores cristãos descreve o primeiro estágio de oração solitária como a experiência de um homem que, depois de viver anos com as portas abertas, de repente decidiu fechá-las. Os visitantes que costumavam vir e entrar em sua casa começam a bater nas suas portas, indagando porque não se lhes permite a entrada. Somente quando compreendem que não são bem vindos, aos poucos param de vir. Esta é a experiência de alguém que decide entrar em solidão depois de uma vida sem muita disciplina espiritual. No início, as muitas distrações continuam se apresentando. Depois, à medida que recebem menos e menos atenção, lentamente se retiram.

É claro que o importante é a fidelidade à disciplina. No início, solidão parece tão contrária aos nossos desejos que somos constantemente tentados a nos esquivar disso. Uma maneira de se esquivar é divagar na mente ou simplesmente cair no sono. Mas quando nos dedicamos à nossa disciplina, na convicção que Deus está conosco mesmo quando ainda não o escutamos, lentamente descobrimos que não queremos perder nosso tempo a sós com Deus. Apesar de não experimentarmos muita satisfação em nossa solidão, compreendemos que um dia sem solidão é menos "espiritual" do que um dia com solidão.

Intuitivamente, compreendemos que é importante gastar tempo em solidão. Até começamos a aguardar com expectativa este estranho período de inutilidade. Este desejo por solidão muitas vezes é o primeiro sinal de oração, a primeira indicação de que a presença do Espírito Deus não despercebida. Quando nos esvaziamos de nossas muitas preocupações conseguimos entender não somente com nossa mente mas também com nosso coração que nunca estivemos realmente sós, que o Espírito de Deus estava sempre conosco. Desta forma conseguimos compreender o que Paulo escreve aos Romanos: "... a tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência, esperança. Ora, a esperança não confunde, porque o amor de Deus é derramado em nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado" (Rm 5:3-5). Em solidão, chegamos a conhecer o Espírito que já nos foi outorgado. As dores e as lutas que encontramos em nossa solidão se tornam desta forma o caminho de esperança, porque nossa esperança não é baseada em alguma coisa que acontecerá depois que nossos sofrimentos terminarem, mas na presença real do Espírito de Deus que nos cura no meio destes sofrimentos. A disciplina de solidão nos permite gradativamente entrar em contato com a presença esperançosa de Deus em nossas vidas, e também nos permite experimentar mesmo agora as primícias de gozo e paz que pertencem ao novo céu e à nova terra.

A disciplina de solidão como tenho descrito aqui é uma das mais poderosas disciplinas para desenvolver uma vida de oração. É um caminho simples, embora difícil, para nos libertar da escravidão de nossas ocupações e preocupações e começar a ouvir a voz que faz novas todas as coisas.

Deixe-me dar uma descrição mais concreta de como a disciplina de solidão pode ser praticada. É uma grande vantagem ter um quarto ou um canto de quarto ou um quartinho! - reservado à disciplina de solidão. Tal lugar "arrumadinho" ajuda-nos a buscar o reino sem gastar tempo com preparativos. Algumas pessoas gostam de decorar este lugar, mas o importante é que o lugar de solidão seja um lugar simples e ordenado. Lá ficamos na presença do Senhor. "Nossa tentação é fazer alguma coisa útil: ler algo estimulante, pensar sobre uma coisa interessante, ou experimentar algo extraordinário. Mas nosso momento de solidão é exatamente um momento em que queremos estar na presença de nosso Senhor de mãos vazias, nus, vulneráveis, inúteis, sem nada para apresentar, provar, ou defender. É assim que, lentamente, aprendemos a ouvir a voz tranqüila de Deus. Mas o que fazer com nossas muitas distrações? Devemos lutar contra estas distrações e esperar que desta forma nos tornemos mais atentos à voz de Deus? Isto não parece ser a maneira de se entrar em oração. Criar um espaço vazio onde podemos ouvir o Espírito de Deus não é fácil quando colocamos toda nossa energia na luta contra as distrações. Se confrontamos as distrações de maneira tão direta, acabamos lhes dedicando mais atenção que merecem. Temos porém, as palavras das Escrituras para dedicar nossa atenção.

Um salmo, uma parábola, uma editoria bíblica, uma declaração de Jesus, ou uma palavra de Paulo, Pedro,Tiago, Judas ou João, pode nos ajudar a focalizar nossa atenção à presença de Deus . Desta forma impedimos "todas estas coisas" de Ter poder sobre nós. Quando colocamos as palavras das Escrituras no centro de nossa solidão, tais palavras seja uma pequena expressão, umas poucas sentenças ou um texto mais longo - podem funcionar com ponto ao qual retornamos quando nos desviamos para diferentes direções. Formam um ancoradouro seguro num mar tempestuoso. No fim de tal período na presença tranqüila de Deus podemos, através de oração intercessora, levar todas as pessoas que fazem parte de nossa vida, tanto amigos como também inimigos à sua presença restauradora. E por que não concluir com as palavras que o próprio Jesus nos ensinou: O Pai Nosso?

Isto é somente uma das formas especificas nas quais a disciplina de solidão pode ser praticada. Infinitas variações são possíveis. Passeios no campo, a repetição de orações curtas tais como a oração de Jesus, formas simples de canto chãos, certos movimentos ou posturas - estes e muitos outros elementos podem se tornar uma parte útil da disciplina de solidão. Mas temos de decidir que forma especifica desta disciplina melhor nos convém, e na qual podemos perseverar. É melhor ter uma prática diária de dez minutos em solidão do que ter uma hora completa de vez em quando. É melhor se tornar familiar com uma postura do que ficar sempre experimentando novas posturas. Simplicidade e regularidade são os melhores guias para achar nosso caminho. Permitem-nos fazer da disciplina de solidão outra parte da nossa vida diária tanto quanto comer ou dormir. Quando isto acontece, nossas preocupações barulhentas perderão lentamente seu poder sobre nós e a atividade renovadora do Espírito de Deus aos poucos se manifestará.

Embora a disciplina de solidão exija que separemos para isso tempo e espaço, no final de tudo o importante é que nossos corações se tornem aposentos tranqüilos e que Deus possa habitar, onde quer que vamos e o que quer que façamos. Quanto mais nos treinarmos a gastar tempo com Deus e unicamente com ele, mais descobriremos que em todo o tempo e em todo o lugar Deus está conosco . Então poderemos reconhecê-lo mesmo no meio de uma vida atarefada e ativa. Depois que a solidão de tempo e espaço se torna solidão de coração, nunca haveremos de deixar aquela solidão. Poderemos viver a vida espiritual de qualquer lugar e em qualquer tempo. Desta forma a disciplina da solidão capacita-nos a viver uma vida ativa no mundo, enquanto permanecemos constantemente na presença do Deus vivo.

COMUNIDADE

A disciplina de solidão não se mantém sozinha. Está intimamente relacionada com a disciplina de comunidade. Comunidade como disciplina é o esforço de criar um espaço livre e vazio entre pessoas, onde juntos possamos praticar verdadeira obediência. Através da disciplina de comunidade nos prevenimos de nos apegar um ao outro com sentimentos de medo e isolamento, e criamos um espaço livre para ouvir a voz libertadora de Deus.
Pode parecer estranho falar de comunidade como disciplina mas sem disciplina comunidade se torna uma palavra "mole", referindo-se mais a um lugar seguro, aconchegante e exclusivo do que ao espaço onde se pode receber vida nova e desenvolvê-la à sua plenitude. Em qualquer lugar onde se acha verdadeira comunidade, disciplina é decisivo. É decisivo não somente nas muitas velhas e novas formas de vida em comum, mas também nos relacionamentos sustentadores de amizade, casamento, e família. Criar espaço para Deus entre nós requer o constante reconhecimento do Espírito de Deus um no outro. Depois de ter conhecido o Espírito vivificante de Deus no centro de nossa solidão, tornando-nos capazes desta forma a afirmar nossa verdadeira identidade, passamos a ver também o mesmo Espírito vivificante falando-nos através de nossos companheiros humanos. E quando chegamos a reconhecer o Espírito vivificante de Deus como, a fonte de nossa vida em conjunto, mais facilmente também ouviremos sua voz em nossa solidão.

Amizade, casamento família, vida religiosa e toda outra forma de comunidade é solidão saudando solidão, espírito falando a espírito, coração chamando coração. É o grato reconhecimento do chamado de Deus para compartilhar a vida juntos e o alegre oferecimento de um espaço hospitaleiro onde o poder recriador do Espírito de Deus pode se manifestar. Desta maneira todas as formas de vida em conjunto podem se tornar maneiras de manifestar um ao outro a presença real de Deus em nosso meio.

Comunidade não tem muito a ver com compatibilidade mútua. Semelhanças em "background" educacional, constituição psicológica, ou posição social, podem nos atrair um ao outro, mas nunca podem ser a base para comunidade. Comunidade é fundamentada em Deus, que nos chama a viver juntos, e não na atratividade mútua das pessoas. Há muitos grupos que se constituíram a fim de proteger seus próprios interesses, defender sua própria posição, ou promover suas próprias causas, mas nenhum destes é uma comunidade cristã. Ao invés de romper os muros de medo e criar novo espaço para Deus, fecham-se a intrusos reais ou imaginários. O ministério da comunidade é exatamente seu envolvimento de todas as pessoas, quaisquer que sejam suas diferenças individuais, permitindo-lhes viver juntas como irmãos e irmãs de Cristo e filhos e filhas do seu Pai celeste.

Eu gostaria de descrever uma forma concreta desta disciplina de comunidade. É a prática de ouvir juntos. Em nosso mundo prolixo geralmente gastamos nosso tempo juntos falando. Sentimo-nos mais confortáveis compartilhando experiências, discutindo assuntos interessantes, ou argumentando problemas sociais. É através de uma troca verbal muito ativa que tentamos nos descobrir um ao outro. Mas muitas vezes descobrimos que as palavras funcionam mais como muros do que como portões, mais como formas de manter a distância do que para se aproximar. Muitas vezes - até contra nossa vontade - percebemo-nos competindo mutuamente. Tentamos provar um ao outro que merecemos atenção, que o que temos para mostrar nos torna especiais- A disciplina de comunidade ajuda-nos a ficar em silêncio juntos. Este silêncio disciplinado não é um silêncio embaraçador, mas um silêncio no qual prestamos atenção juntos ao Senhor que nos chamou juntos. Desta forma chegamos a nos conhecer mutuamente não como pessoas que se apegam ansiosamente a sua auto-instituída identidade, mas como pessoas que são amadas pelo mesmo Deus de uma forma muito íntima e singular.

Aqui - como ocorre com a disciplina de solidão - muitas vezes são as palavras das Escrituras que podem nos levar a este silêncio comunal. A fé, como Paulo diz, vem pelo ouvir. Temos que ouvir a palavra um do outro. Quando nos reunimos de diferentes contextos geográficos, históricos, psicológicos, e religiosos, ouvir a mesma palavra falada por pessoas diferentes pode criar em nós uma abertura e vulnerabilidade comuns que nos permitem reconhecer que estamos seguros juntos naquela palavra. Desta forma podemos descobrir nossa verdadeira identidade como comunidade, desta forma podemos experimentar o que significa ser chamados juntos, e desta forma podemos reconhecer que o mesmo Senhor que descobrimos em nossa solidão também fala na solidão do nosso próximo, seja qual for sua linguagem, denominação, ou caráter. Através de ouvir juntos a palavra de Deus, um silêncio realmente criativo pode se desenvolver, Este silêncio é um silêncio impregnado com a presença amorosa de Deus. Desta forma ouvir juntos a palavra de Deus pode libertar-nos da competição e rivalidade e permitir-nos reconhecer nossa verdadeira identidade como filhos e filhas do mesmo Pai amoroso, irmãos e irmãs do nosso Senhor Jesus Cristo, e conseqüentemente um do outro.

Este exemplo de disciplina de comunidade é um dentre muitos. Celebrar juntos, trabalhar juntos, brincar juntos, todas estas são maneiras pelas quais a disciplina de comunidade pode ser praticada. Mas seja qual for seu tipo ou forma concreta, a disciplina de comunidade sempre leva-nos além dos limites de raça, sexo, nacionalidade, caráter, ou idade, e sempre nos revela quem realmente somos diante de Deus e do nosso próximo.

Através da disciplina de comunidade nos tornamos pessoas; isto é, pessoas que estão soando uma à outra (a palavra latina personare significa "soar") uma verdade, uma beleza, e um amor que é maior, mais profundo e mais rico do que nós mesmos podemos compreender individualmente. Em comunidade verdadeira somos janelas oferecendo constantemente um a outros novos panoramas do mistério da presença de Deus em nossas vidas. Desta forma a disciplina de comunidade é uma verdadeira disciplina de oração. Faz-nos alertas à presença do Espírito que clama "Aba", Pai, entre nós, orando assim do centro de nossa vida em comum. Comunidade desta forma é obediência praticada juntos. A questão não é simplesmente. "Para onde Deus me leva como um indivíduo tentando fazer sua vontade?" Mais básica e mais significante é a questão, "Para onde Deus nos leva como um povo?" Esta questão requer que prestemos cuidadosa atenção à direção de Deus em nossa vida coletiva e que juntos procuremos uma resposta criativa. Aqui podemos ver como oração e ação são realmente unidas, porque o que quer que façamos como comunidade somente pode ser um ato de verdadeira obediência quando é uma resposta àquilo que ouvimos da voz de Deus em nosso meio.

Finalmente, temos de lembrar que comunidade, como solidão, é principalmente uma qualidade do coração. Embora seja verdade que nunca conheceremos o que é comunidade se não nos unirmos em um lugar, comunidade não significa necessariamente estar fisicamente juntos. Podemos muito bem viver em comunidade mesmo estando fisicamente sozinhos. Em tal situação podemos agir livremente, falar honestamente, e sofrer pacientemente por causa do vínculo íntimo de amor que nos une com outros, mesmo quando tempo e espaço nos separam deles. A comunidade de amor não só se estende além dos limites de países e continentes mas também além dos limites de décadas e séculos. Não somente a consciência daqueles que estão longe mas também a memória dos que viveram no passado podem levar-nos a uma comunidade que nos cura, sustenta e dirige. O espaço para Deus na comunidade transcende todos os limites de tempo e lugar.

Desta forma a disciplina de comunidade libera-nos a ir aonde quer que o Espírito nos guie, mesmo a lugares onde preferiríamos não ir. Isto é a verdadeira experiência pentecostal. Quando o Espírito desceu sobre os discípulos que estavam trancados juntos com medo, eles foram libertos para sair do seu quarto fechado para o mundo. Enquanto estavam reunidos com medo ainda não se constituíam uma comunidade. Mas quando receberam o Espírito, tornaram-se um corpo de pessoas livres que podiam permanecer em comunhão um com o outro mesmo quando estavam tão longe um do outro quanto Roma está de Jerusalém. Desta forma, quando é o Espírito de Deus e não o medo que nos une em comunidade, nenhuma distância de tempo ou lugar nos pode separar.

CONCLUSÃO

Através da disciplina de solidão descobrimos espaço para Deus no mais íntimo de nosso ser. Através da disciplina de comunidade descobrimos um lugar para Deus em nossa vida em conjunto. Ambas as disciplinas se complementam, exatamente porque o espaço dentro de nós e o espaço entre nós são o mesmo espaço.

É neste espaço divino que o Espírito de Deus ora em nós. Oração é primeira e principalmente a presença ativa do Espírito Santo em nossa vida pessoal, e comunitária. Através das disciplinas de solidão e comunidade tentamos remover - lentamente, mas persistentemente - os muitos obstáculos que nos impedem de ouvir a voz de Deus dentro de nós. Deus nos fala não somente de vez em quando mas sempre. Dia e noite, durante o trabalho e durante o lazer, na alegria e na dor, o Espírito de Deus está ativamente presente em nós.

Nossa tarefa é permitir que esta presença se torne real para nós em tudo que fazemos, dizemos ou pensamos. Solidão e comunidade são as disciplinas pelas quais o espaço se torna livre para percebermos a presença do Espírito de Deus e respondermos destemidamente e generosamente. Quando ouvirmos a voz de Deus em nossa solidão também a ouviremos em nossa vida juntos. Quando ouvirmos a Deus em nossos companheiros humanos, também o ouviremos quando estivermos com ele sozinhos.

Quer em solidão quer em comunidade, quer sozinhos quer com outros, somos chamados para viver vidas obedientes isto é, vidas de oração incessante - "incessante" não por causa das muitas orações que fazemos, mas por causa de nossa sensibilidade à oração incessante do Espírito de Deus dentro de nós e entre nós.

Fonte: http://ichtus.com.br/publix/ichtus/mensagem/

PS- Para ouvir a trilha do dia, vai lá: http://www.youtube.com/watch?v=dPk2ZAr8ejI
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