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- pr. Ricardo Barbosa
Quando me convidaram para falar sobre o tema da Palavra de Deus e a guerra
espiritual, minha primeira reação foi a de não aceitar. Não é um tema que tenho
me dedicado ao estudo com o mesmo interesse que outros irmãos vem fazendo, pelo
menos, não na mesma direção com que muitos tem trabalhado.
Minha primeira tentativa foi a de apresentar uma nova proposta de leitura
bíblica, uma vez que considero que
a grande guerra espiritual que
enfrentamos hoje se dá dentro da própria igreja, e tem a ver com o
analfabetismo bíblico e teológico que tem levado muitos a naufragar nas trevas
da ignorância, da superstição e do chamado neo-paganismo.
Os reformadores acreditavam que a grande contribuição da igreja no final da
idade média era o de libertar os homens da cegueira da ignorância, e
conduzi-los, pela Palavra de Deus, à luz libertadora do evangelho de Jesus
Cristo. Enviei meu texto para o Tito Paredes que teve o trabalho de traduzi-lo
e enviá-lo aos redatores. No entanto, depois de conversar com alguns amigos,
reconheci que o que havia enviado não correspondia ao tema que me foi proposto.
Retornei à mesa para pensar numa nova tentativa. Considerando o tempo e a abrangência
do tema que hoje extrapola até mesmo os limites da Bíblia, concluí que deveria
abordá-lo dentro de um campo mais específico.
Foi aí que me lembrei de Jó.
A história de Jó é uma história de guerra espiritual que se dá, não apenas
no íntimo, mas que também tem seus reflexos na teologia, nas estruturas e nas
relações. É uma guerra onde o objetivo principal não é o de medir forças e ver
quem tem mais poder, mas de nos transformar a fim de compreendermos com maior
clareza os propósitos eternos de Deus. Não será uma abordagem voltada para a
dimensão missionária da igreja, mas sim para o processo transformador que a
luta espiritual desencadeia. É neste contexto que pretendo refletir sobre
guerra espiritual vivenciada por Jó.
A forma como ele a enfrentou e as mudanças que ela trouxe sobre sua vida,
teologia e relação com Deus e o próximo, serão o objetivo desta pequena
reflexão.
O cenário da guerra
Os primeiros dois capítulos do livro de Jó definem o campo e os personagens
deste conflito. Temos de um lado Deus que nos é apresentado como o Senhor
soberano sobre tudo o que acontece na terra e no céu. As ações dos anjos e dos
homens não lhe escapam aos olhos. Walter Wink afirma que "a fé no Israel
primitivo, na verdade não tinha lugar para Satanás. Somente Deus era o Senhor e
tudo o que acontecia, para o bem ou para o mal, era atribuído a Deus. "Eu
mato, e eu faço viver; eu firo, e eu saro; diz o Senhor" .
Para o Velho Testamento, Deus sempre era a causa primeira e última de tudo o
que acontecia no céu e na terra; ele assume total responsabilidade sobre o bem
e o mal. Este é um conceito importante que veremos na forma como Jó enfrenta
seu conflito espiritual.
De outro lado, temos o próprio Satanás, que se apresenta diante de Deus
junto com os "filhos de Deus". Ele nos é apresentado como um
acusador, expressão usada no Novo Testamento para definir seu papel. Ele
levanta
suspeitas quanto às motivações de Jó em ser tão íntegro e reto
diante de Deus. Suas dúvidas colocam sob suspeita o testemunho de Deus e,
consequentemente, as relações entre Deus e o homem. Ele não tem um poder
próprio e não age independentemente de Deus. Suas ações, Deus assume como sendo
suas próprias ações quando afirma que Satanás o havia "incitado contra ele
(Jó), para o consumir sem causa" (Jó 2:3b). Satanás também reconhece isto
ao dizer a Deus "estende, porém, a tua mão, toca-lhe nos ossos e na carne,
e verás se não blasfema contra ti na tua face!" (Jó 2:5). Embora a maldade
tenha sido proposta e executada por Satanás, ele próprio reconhece que é a mão
de Deus, em última análise, a responsável pelas aflições de Jó. Satanás não é
um ser autônomo, independente, com liberdade plena para agir e fazer o que lhe
interessa.
Por fim temos Jó, aquele sobre quem Satanás levanta suas suspeitas e que,
aos olhos de Deus, é um homem íntegro, reto, temente a Deus e que se desvia do
mal. O alvo das acusações de Satanás é o homem em sua
relação com Deus.
Ele não duvida do que Deus afirma sobre seu servo Jó. Sua dúvida repousa sobre
as motivações, as intenções secretas da devoção de Jó.
Estas suspeitas não comprometem apenas as intenções de Jó mas, sobretudo, a
aliança que Deus estabelece com seu povo. A tese levantada é a de que ninguém
adora e serve a Deus por nada. Por detrás de toda a retidão e integridade, o
homem esconde sua verdadeira motivação que é a recompensa que espera receber de
Deus.
Satanás duvida que alguém possa amar a Deus sem esperar alguma
retribuição. Se as suspeitas de Satanás forem confirmadas, ele encontra a
justificação para sua própria queda.
O centro da guerra espiritual se dá na arena do
conflito relacional e
afetivo e não no do poder.
A estratégia de Satanás
Deus aposta no poder do amor, do relacionamento que existe por causa do afeto.
Este é o poder que ele dispõe para enfrentar a aposta que Satanás propõe. Por
natureza, é um poder frágil, cuja força está em cativar o coração e obter deste
uma resposta igualmente afetiva e amorosa.
A guerra espiritual, na perspectiva de Jó, não é uma disputa de poder entre
duas forças que se digladiam buscando provar quem é maior e o mais forte.
Antes, é um conflito entre Deus, que ama gratuitamente e incondicionalmente e o
acusador que usa todos os recursos possíveis para provar a impossibilidade
deste amor. O que está em jogo na aposta entre Deus e Satanás é a relação de Jó
com seu Senhor. Numa outra cena semelhante, a da tentação no deserto, o que
está em jogo ali é também a mesma coisa. Quando Satanás se aproxima de Jesus
para tentá-lo, a primeira pergunta foi: "se és Filho de Deus, manda…"
A dúvida lançada não era em relação ao poder de Jesus de transformar pedras em
pães ou saltar do alto do templo e ordenar aos anjos que lhe socorressem. A
dúvida era em relação à voz que ele acabara de ouvir no Jordão dizendo:
"este é o meu Filho amado em quem tenho o meu prazer". A preocupação
de Satanás não está no poder de Jesus para transformar pedras ou dar qualquer
show que demonstre sua habilidade em manipular as forças cósmicas; sua preocupação
está em levantar suspeitas, colocar sob dúvidas e, por fim, arruinar a relação
única que o Filho tem com o Pai.
Durante toda a vida e missão de Jesus, sua luta espiritual foi preservar o
vínculo
amoroso, afetivo e obediente que ele tinha em relação ao Pai. Seu último
suspiro, depois de toda a vergonha e humilhação do Calvário, foi mais uma vez
afirmar seu amor ao Pai dizendo: "Pai, em tuas mãos entrego o meu
espírito". Foi esta relação de amor e afeto que venceu o pecado, que
trouxe o triunfo da cruz. A cruz é o triunfo do amor sobre o poder. A opção
pelo poder é uma opção maligna. É por isto que Jó recusa o caminho tão comum e
popular da guerra espiritual moderna, o do dualismo, que vê o mundo dividido
entre dois grandes poderes, duas grandes forças que disputam o domínio e o
controle dos homens e da história.
Recentemente, foi publicado no Brasil um livro sobre a batalha espiritual
que define a batalha espiritual com os seguintes dizeres: "Há no mundo
dois reinos em conflito, duas forças que se chocam em combate pelo destino
eterno dos seres humanos, dois poderes em confronto: O poder das trevas contra
o poder da luz". Para o editor, o mundo está literalmente dividido entre
duas grandes forças, uma do bem e outra do mal, e que precisamos urgentemente
optar por um lado, sacar as armas espirituais e partir para defender o ameaçado
reino do Senhor Jesus.
Jó não vê o mundo assim. Para ele, o Senhor reina. Logo após ter sido
violentamente afligido pelas catástrofes provocadas por Satanás, ele não diz:
"O Senhor deu e Satanás tomou, agora devo amarrar e reivindicar o que me
foi tirado"; pelo contrário, sua afirmação revela que, mesmo tendo sido
Satanás o autor de toda a desgraça que sobreveio a ele e sua família, ele
continua
colocando Deus no centro de todos os acontecimentos ao declarar: "o
Senhor deu, o Senhor tomou, bendito seja o nome do Senhor". Quando
abraçamos o dualismo, a guerra espiritual transforma-se numa disputa de poder;
temos que provar quem é mais forte, mais competente. Entramos na arena criada
pelo próprio Satanás e passamos a lutar com suas armas. Optamos pelo poder,
pelo domínio, e caímos na grande armadilha que ele nos preparou. Jesus, quando
provocado, nunca se valeu do seu poder para se auto afirmar perante Satanás ou
mesmo o mundo. Um dos ladrões que fora crucificado com ele disse-lhe: "Não
és tu o Cristo? Salva-te a ti mesmo e a nós também", no entanto, Jesus não
precisou dar nenhuma prova do seu poder para mostrar que era de fato o Cristo
de Deus, porque o seu poder fora definido na voz do Jordão.
Um dos perigos que a guerra espiritual trás é o de induzir-nos a usar as
mesmas armas de Satanás, as armas do poder. O mundo não está dividido entre
duas grandes forças. Por isto, como afirma C. S. Lewis, não há uma guerra
espiritual mas sim, uma rebelião interna e o rebelde encontra-se sob controle.
O poder que venceu o pecado foi
o poder do amor, da encarnação, da entrega,
da doação. Esta é a arma da nossa guerra. O que Satanás queria era mostrar
que ninguém ama a Deus por nada, que ninguém busca e serve a Deus simplesmente
por que Deus é Deus; que a integridade e retidão de Jó nada mais eram do que
artifícios para conquistar os favores de Deus.
É importante notar que as armas de Deus não são as mesmas de Satanás.
Enquanto Satanás se vale da violência, destruição, sofrimento e dor, mostrando
seu arsenal poderoso, Deus se vale da aliança feita pelo seu nome. Esta
compreensão dualista da guerra espiritual que tomou conta da igreja evangélica
no Brasil e na América Latina tem causado outras conseqüências previsíveis como
o surgimento da teologia da prosperidade e a ambição pelo poder político. Ambos
são reflexos de uma mesma visão espiritual que coloca os crentes dentro da
arena criada Satanás onde ele mesmo é quem distribui as armas. Na luta pelo
poder, seja ela qual for, Satanás será sempre o vencedor.
As armas de Deus são outras, seu poder transforma a vida e a alma humana,
nos livra das ambições do poder, nos tornam mais submissos e
obedientes
a ele e sua Palavra, mais
comprometidos com o seu reino e sua justiça.
As transformações em Jó
Como já vimos, o drama de Jó reflete uma aposta que Deus e Satanás fizeram
em relação às
motivações secretas que levam-no a ser íntegro e reto.
Deus aposta na resposta do amor, e Satanás na da retribuição como expressão do
egoísmo. O sofrimento imposto a Jó é para provar de que lado ele vai ficar. Os
amigos entram em cena e logo mostram que sua teologia reforça o argumento de
Satanás. Para eles a lógica é simples: Deus abençoa o justo e pune o pecador,
portanto, se Jó esta sofrendo, é porque pecou. Sendo assim, ele deveria
reconhecer seu pecado, confessá-lo, a fim de receber de volta o que lhe havia
sido tirado.
Noutras palavras, Jó deveria buscar a Deus, não por causa de Deus, mas por
causa dele mesmo. Ele era a razão da sua fé e o objeto do seu amor. Jó, no
princípio embora adepto desta teologia da retribuição, rejeita este argumento e
reafirma sua inocência. Na sua luta espiritual, ele tem uma opção em três:
reconhecer que seus amigos têm razão e que Deus é justo, o que o levaria a
negar sua inocência e a buscar a Deus por causa de si mesmo; reconhecer que
seus amigos têm razão e que ele é inocente, o que o levaria a negar a Deus, e
reconhecer que Deus é justo e que ele é inocente, o que o levaria a negar a
teologia dos amigos.
Jó opta pela última.
Esta opção o leva a experimentar uma profunda
transformação na sua linguagem que Gustavo Gutiérrez chama de
"Linguagem Profética e a Linguagem da contemplação". A linguagem
profética nasce da constatação que Jó teve de que
há outros inocentes como
ele no mundo, que sofrem a opressão daqueles que ambicionam o poder. Ele
começa a falar para os pobres e sofredores com a linguagem de quem
conhece a
dor do inocente. A linguagem da contemplação nasce da revelação de Deus
como Senhor livre e soberano, cujos atos e justiça não são determinados pelo
homem, mas pela gratuidade do seu amor. Ao reconhecer a grandeza e majestade de
Deus, Jó se curva e declara que agora seus olhos o vêem. O propósito da guerra
espiritual na experiência de Jó não foi determinada pela sua capacidade de
vencer as catástrofes, nem mostrar que o poder de Deus é maior que o de
Satanás. O propósito foi o de
render seu coração, transformar sua teologia
(uma vez que ele pensava como seus amigos) e
viver um encontro com Deus
que transformou sua linguagem sobre Deus.
A derrota de Satanás não foi medida pelo poder, mas pela rendição ao amor
gratuito e incondicional de Deus. Penso que esta foi também a guerra espiritual
vivida por Pedro quando o próprio Senhor o chamou e disse: "Simão, Simão,
eis que Satanás vos reclamou para vos peneirar como trigo. Eu, porém, roguei
por ti, para que a tua fé não desfaleça; tu, pois, quando te converteres,
fortalece os teus irmãos" (Lc. 22:31, 32). A resposta de Jesus a Satanás
que reclamou o desejo de peneirar a Pedro não foi aquela clássica de nossas
batalhas espirituais: "tá amarrado". Pelo contrário, Jesus disse
apenas que iria orar por ele para que sua fé não desfalecesse. Era necessário
que Pedro passasse pela peneira. Sua índole era por demais impulsiva. Suas
armas de guerra precisavam ser neutralizadas para que pudesse humildemente
confessar seu amor ao Senhor.
Tudo o que Jesus queria era uma declaração de
amor, e não a arrogância do poder. Pedro foi também transformado pelo poder
do amor de Deus e experimentou uma nova linguagem para falar de Deus.
A guerra espiritual e o silêncio
de Deus
A luta espiritual vivida por Jó, Jesus e Pedro, tem um elemento comum que é
o silêncio de Deus. Parece-me que em todas elas Deus permite aquilo que Jesus
afirma acerca de Pedro: deixar que Satanás o peneire.
O Silêncio de Deus não
é o silêncio da indiferença, mas o da oração e da intercessão. A resposta
final deste silêncio é a afirmação de que,
apesar do sofrimento imposto por
Satanás, nosso coração continua sendo eternamente de Deus. A afirmação do
amor que temos pelo Senhor é a resposta final de toda a luta espiritual. Não se
trata de uma disputa de poder, de demonstrar quem é mais poderoso e domina o
universo; esta tentação Jesus venceu no deserto. Deus não está preocupado em
demonstrar seu domínio e soberania porque ele é de fato o Senhor absoluto e
soberano e isto nunca foi colocado em disputa; sua glória ele não divide com ninguém,
nem mesmo com Satanás.
A razão da guerra espiritual é demonstrar
a quem nosso coração pertence.
Diante desta finalidade, Deus se faz silencioso na espera de nossa resposta. Em
algumas situações bíblicas onde Satanás impõe o
sofrimento como instrumento
de desmascaramento de nossas motivações mais secretas, vemos que Deus
guarda o silêncio esperando nossa resposta. Foi assim com Jó, com Pedro e com o
próprio Senhor. Também foi assim com Abraão quando leva seu filho Isaque para o
altar do sacrifício. O papel de "acusador dos irmãos" mostra que
Satanás desempenha um lugar importante no plano eterno de Deus: o de
denunciar
nossas máscaras e hipocrisias. É por isto que Jó, em momento algum de sua
guerra espiritual, trata com Satanás, mas com Deus. Deus é seu advogado e
justificador, é ele quem defende sua causa e é dele que Jó espera receber a
absolvição.
Conclusão
A percepção da guera espiritual como uma disputa pelo poder de domínio e
controle do homem, do mundo e da história acabou levando a igreja evangélica a
optar pelas mesmas armas de Satanás, e perder o sentido mais profundo e
verdadeiro da luta espiritual que é o de nos transformar, transformar nossos
conceitos, valores e teologias que tentam enquadrar Deus nos esquemas malignos
do poder.
Nosso chamado é para subir ao Calvário, para sofrer todas as implicações do
amor e do serviço, e resistir todas as investidas malignas que tentam nos
afastar do caminho para Jerusalém. A vitória espiritual é a resposta do
amor
incondicional e desinteressado a Deus e ao seu reino.
Enquanto permanecermos íntegros nas nossas motivações e desejos; enquanto
permanecermos no caminho do discipulado e da cruz; enquanto permanecermos
obedientes e submissos ao Senhor e sua Palavra, permaneceremos do lado de quem
é e sempre será o vencedor.
Fonte: http://www.monergismo.com/textos/vida_piedosa/guerra.htm
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