Entrega
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Fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/336/entrega
Deixe pra lá! Releve! Perdoe!
Tenho percebido que essas são palavras difíceis para algumas pessoas, e
fáceis para outras. E o que está por trás dessas atitudes me
intriga.
Parece que algumas pessoas têm uma grande capacidade de “deixar pra lá”, de
relevar uma ofensa, de esquecer um agravo. É como se não se apegassem às coisas.
Na hora da perda, não sofrem muito. Porém, não lutam tanto pelo que acham
importante. Sem luta, não há vitória.
Outras parecem incapazes de abrir mão. Então, tudo o que a vida lhes tira,
produz a dor de um assalto, de uma violência.
Entre estas últimas, as que mais me chamam atenção são aquelas que não
“abrem mão” de suas razões. Seja em uma simples conversa, que acaba em
discussão, seja em uma questão de direito, apegam-se às suas razões até às
lágrimas. E se, após muitas lutas, essas coisas lhes são “tomadas”, entram em
desespero de morte.
As pessoas do primeiro grupo sofrem menos, por não se apegarem
demasiadamente. Não lutam tanto, não retêm tanto. Não perdem muito, mesmo quando
são abusadas.
Entretanto, conheço gente que é capaz de se lembrar de todas as violências
sofridas ao longo da vida. Coisas que lhes foram tiradas, batalhas perdidas,
conversas encerradas, desconsiderações, injustiças, votos vencidos, estão todos
lá, no depósito de passivos, de haveres, aguardando ressarcimento.
Sim, a vida (que acaba assumindo nomes de pessoas) lhes deve. Se algo nunca
foi entregue, então lhes foi tomado. Se nunca foi perdoado, ainda é “dívida
ativa”. Se nunca foi esquecido, está registrado para oportuna
cobrança.
Talvez uma pessoa assim considere aquele que “deixa pra lá” um leviano. E
talvez o que releva e esquece considere aquele que não “abre mão” um infeliz
briguento.
Lembro-me de ter “deixado pra lá” direitos de consumidor, só para não
arranjar briga. Porém, lembro-me de ter “pendurado” ofensas, aguardando o pedido
de desculpas. Recordo-me de ter dado razão a quem não a tinha, para preservar a
amizade, e de ter “aberto mão” da amizade por não achar justo “deixar
barato”.
Certa vez, deparei-me com uma frase usada em um curso para noivos: “O que
você prefere: ter razão ou ser feliz?” - como que a dizer que, se eu quisesse
ter sempre razão, seria infeliz! Será que essa pergunta não nos ajudaria a
definir melhor a qual grupo pertencemos?
Eu confesso: naquele exato momento me descobri preferindo ter razão. E
argumentei para mim mesmo que a felicidade, à custa do que é certo, não vale a
pena. Senti-me como a formiga invejosa, criticando a alegria “irresponsável” da
cigarra.
Nesse momento, ouvi a palavra de Paulo aos coríntios conflagrados: “[...]
por que não sofreis, antes, a injustiça? Por que não sofreis, antes, o dano?”
(1Co 6.7).
Ocorre-me então que talvez a atitude correta não seja o “deixar pra lá”,
mas a entrega. Em vez de esquecer, entrego meus direitos, bens e razões ao reto
Juiz. Assim, as coisas não ficarão sem consequência, sem julgamento, sem
resposta.
Contudo, estarei “deixando pra lá”, em um ato de fé, para ser
feliz.
Imagino que, por esse caminho, Deus me acrescentará o orar pelos meus
inimigos e me alegrará ao vê-los abençoados.
- Rubem Amorese
- Rubem Amorese
Fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/336/entrega
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