O que pensamos sobre Deus determina como vivemos nossa fé
.
Como nossa compreensão a respeito da presença de Deus afeta nossa
autopercepção e nossa vida e ação na sociedade?
Acredito que a vida
humana é muito mais uma questão teológica do que antropológica ou
sociológica. Explico. Nossa vida tem muito mais a ver com a compreensão a
respeito de Deus e, particularmente, de sua presença no mundo e em
nossa vida do que com nossa natureza, escolhas, desejos, vontades,
personalidade etc.
Reconheço que isso se choca com os valores
materiais e físicos da cultura moderna e já foi amplamente desafiado por
filósofos iluministas. O filósofo alemão do século 19, Ludwig
Feuerbach, por exemplo, em sua crítica à religião, dizia que Deus nada
mais é do que a projeção aperfeiçoada dos anseios humanos, portanto, na
sua compreensão, a teologia se reduz à antropologia. Por outro lado,
ainda que a fé cristã tenha sobrevivido à toda crítica racional e
existencial da era moderna e demonstre vigor ainda hoje, é verdade que
muitas vezes parece que Feuerbach está correto. A fé, em muitos casos,
tem se tornado um meio de autossatisfação, autopreenchimento e
autodescoberta. Nesse sentido, Deus nada mais é do que a satisfação de
meus anseios. Apesar de não concordarmos com a descrição existencialista
de Deus, muitas vezes a praticamos ou, como alguns sugerem, na nossa
profunda religiosidade vivemos um ateísmo prático.
A fé cristã no
Deus presente se contrapõe à visão cultural moderna justamente por
compreender que o ser humano não se define unicamente pela natureza, mas
por sua relação com o Deus transcendente, criador e Senhor de todas as
coisas.
Uma vez que aceitamos esse fato, outra coisa é
compreender como Deus se manifesta e faz presente entre nós. Jesus
prometeu aos discípulos “estarei convosco todos os dias até a consumação
do século” (Mt 28.20). Mas ele também disse na última Ceia, “de agora
em diante, não beberei deste fruto da videira até aquele dia em que
beberei o vinho novo com vocês no Reino de meu Pai” (Mt 26.29). O Jesus
que se ausenta “até aquele dia” é o mesmo que está presente “todos os
dias”. Como entender isso? A tradição cristã tem entendido a presença de
Deus, Cristo e o Espírito de diversos modos. Deus está presente na
história, regendo todos os acontecimentos. Deus se faz presente em nós
por meio do Consolador/Conselheiro. Deus se manifesta por suas obras de
poder. Deus se faz presente por meio de atos de justiça. Como o autor de
Hebreus declara, “Há muito tempo Deus falou muitas vezes e de muitas
maneiras aos nossos antepassados [...] mas nestes últimos dias falou-nos
por meio do Filho” (Hb 1.1,2). Como tenho dito, nossa compreensão da
presença de Deus molda nossa vida e ação (ou missão).
Uma das
maneiras de Deus se fazer presente é por meio da encarnação do Filho.
João diz que “aquele que é a Palavra tornou-se carne e viveu entre nós.
Vimos sua glória como do Unigênito vindo do Pai, cheio de graça e de
verdade” (Jo 1.14). Jesus é a manifestação visível em carne da glória do
Pai que viveu entre nós. Isso significa não só que Deus estava “em
Cristo reconciliando consigo o mundo” (2Co 5.19), mas também que em
Cristo o próprio Deus se torna humano, semelhante a nós, para nos
reconciliar com ele. Entretanto, significa ainda que embora essa
presença tenha ocorrido historicamente na pessoa de Jesus na Palestina
nas primeiras décadas da era cristã, ela serve de paradigma da presença
de Deus hoje. Jesus não está presente como homem, mas está presente por
meio de seu corpo a igreja. A igreja, então, é a presença do Filho que
se fez carne e vive entre nós, o Cristo presente. Deus está presente por
meio do corpo de Cristo.
Essa compreensão da presença de Deus
deve refletir no modo de vivermos como indivíduos e como igreja. Paulo
muito bem declara isso quando diz aos filipenses:
“Seja a
atitude de vocês a mesma de Cristo Jesus, que embora sendo Deus, não
considerou que o ser igual a Deus era algo a que devia apegar-se; mas
esvaziou-se a si mesmo [...] e, sendo encontrado em forma humana,
humilhou-se a si mesmo” (Fp 2.5-8).
A encarnação é o paradigma pelo qual o cristão deve viver. Por isso Paulo diz também:
“Nada
façam por ambição egoísta ou por vaidade, mas humildemente considerem
os outros superiores a si mesmos. Cada um cuide, não somente de seus
interesses, mas também dos interesses dos outros” (Fp 2.3, 4).
Crer
no Deus encarnado determina o modo como proclamamos a presença desse
Deus e como exercitamos a espiritualidade. Isso se contrasta com uma
parte da espiritualidade evangélica contemporânea, muitas vezes,
desencarnada, uma espiritualidade da glorificação, exaltação e
autoprojeção. A espiritualidade encarnacional se reflete no esvaziamento
da ambição, no considerar o outro superior, estender a mão ao próximo,
em outras palavras, seguir o modelo do Cristo que se fez carne.
O
Deus encarnado se esvaziou, tomou forma de servo. Se, como seres
humanos, somos imagem desse Deus e, como cristão, somos a imagem de
Cristo, e, como igreja, somos o corpo de Cristo na terra, nossa
espiritualidade precisa refletir esse Deus encarnado.
Fonte: http://www.ultimato.com.br/conteudo/o-que-pensamos-sobre-deus-determina-como-vivemos-nossa-fe
0 Comments:
Post a Comment
Note: Only a member of this blog may post a comment.
<< Home