O reino de Deus e as utopias
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Jesus é o portador do reino de Deus. Já podemos experimentar os primeiros frutos da ação soberana de Deus na história e no universo
Lá se vão 500 anos desde que Thomas Morus publicou a história de um navegante português que descobriu uma ilha chamada Utopia. Desde 1516 o neologismo de Morus, “ou-topia”, o “não lugar”, do grego “ou” (não), e “topos” (lugar), figura como equivalente de uma sociedade perfeita. O historiador literário Carlos Eduardo Berriel esclarece que “na pronúncia inglesa é formada uma homofonia de ‘ou-topia’ (não-lugar) e ‘eu-topia’ (felicidade), origem da ambiguidade no significado da utopia de Morus”: uma sociedade harmoniosa, fora do tempo e do espaço, cuja capital é Amaurote (cidade fantasma), localizada à margem do rio Anidro (rio sem água).
A ilha chamada Utopia é a metáfora permanente que corresponde aos sonhos coletivos de cada sociedade em seu contexto histórico. O paraíso fictício serve não apenas para descrever o que se deseja, como também para denunciar o mal oculto de cada época, além de animar a marcha dos sonhadores. Na síntese, é do imprescindível Eduardo Galeano:
A utopia está lá no horizonte
Me aproximo dois passos,
ela se afasta dois passos
Caminho dez passos,
e o horizonte se afasta dez passos
Por mais que eu caminhe,
Jamais alcançarei
Para que serve a utopia?
Serve para isso:
Para que eu não deixe de caminhar.
Quem não tem utopia caminha sem norte. Não tem critério para julgar o que está. Não tem esboço para construir o que deve ser. Morus descreve uma utopia, fazendo o elogio do bom senso e da razão humana. Escreve sua obra na companhia de Erasmo de Roterdã, seu hóspede em Londres, que por sua vez produzia O Elogio da Loucura, criticando com ironia a corrupção da política e do clero da época. A Utopia de Morus inaugurou um gênero literário que, segundo Berriel, contava com mais de 2 mil utopias em meados do século 20. Antes de Morus, entretanto, vieram A República de Antístenes e seus seguidores, os cínicos, que pretendiam uma sociedade sem distinções de raça e nacionalidade, onde os homens seriam todos iguais entre si. A utopia do urbanista Hipódamo de Mileto inspirou A República de Platão, um modelo de cidade capaz de tornar os seres humanos perfeitamente virtuosos. Depois vieram Zenão de Cício e os estoicos, afirmando uma sociedade sem dinheiro, sem exército e sem judicialização, onde os homens viveriam como irmãos. Ainda as viagens imaginárias de Luciano de Samósata, Plutarco, Cícero e os epicuristas. E também o messianismo judaico-cristão, com sua profecia de regeneração do homem e retorno ao paraíso terrestre. Morus deu nome ao que existe no coração humano desde sempre, pois o Eclesiastes antecipou dizendo que “Deus pôs a eternidade no coração do homem”.
Prometido por Deus e anunciado pelos profetas de Israel, o reino messiânico aponta para o mundo onde a justiça e a paz se apresentam de mãos dadas. É o mundo do Shalom: fartura e abundância de tudo para todos.
As primeiras palavras públicas de Jesus foram para anunciar a chegada do reino de Deus: “Jesus foi para a Galileia, proclamando as boas novas de Deus”. “O tempo é chegado”, dizia ele. “O Reino de Deus está próximo. Arrependam-se e creiam nas boas novas!” (Mc 1.14-15). Na sinagoga de Nazaré chamou para si o cumprimento da promessa de um reino profetizado por Isaías (61.1-3; Lc 4.18-21): “O Espírito do Soberano Senhor está sobre mim porque o Senhor ungiu-me para levar boas notícias aos pobres. Enviou-me para cuidar dos que estão com o coração quebrantado, anunciar liberdade aos cativos e libertação das trevas aos prisioneiros,para proclamar o ano da graça do Senhor”.
Jesus é o portador do reino de Deus. Em sua pessoa e obra todos já podemos experimentar os primeiros frutos da ação soberana de Deus na história e no universo. A esperança cristã se processa no equilíbrio entre o já e o ainda não. Já somos filhos de Deus, mas ainda não fomos plenamente transformados à imagem de Deus (1Jo 3.2); o Diabo já está vencido, mas ainda não está impedido de atuar no mundo (Mt 12.29); já estamos em Cristo, mas a nossa condição humana ainda não foi completamente transformada (Rm 6.4-7; 7.14-25); já recebemos a vida abundante que há em Jesus, mas ainda não fomos completamente redimidos das vulnerabilidades de nosso corpo mortal (Jo 5.24; 10.10; Rm 8.18-23; 1Jo 5.11-12; 1Co 15.42-49).
O reino de Deus é o domínio e o governo de Deus. Primeiro se estabelece em nós, “dentro de nós”: “O reino de Deus não vem com visível aparência, de modo que os discípulos não devem ficar procurando onde está o reino”, pois “ele está dentro de [ou entre] vós” (Lc 17.20-24); “O reino de Deus não é comida nem bebida, mas justiça, paz e alegria no Espírito Santo” (Rm 14.17). A submissão ao reinado de Deus é pessoal e subjetiva. Mas também devemos orar para que o reino de Deus venha sobre nós, que sua vontade seja feita na terra como é feita no céu (Mt 6.9). O reinado de Deus é também coletivo e objetivo. Podemos e devemos esperar os sinais da ação de Deus na história, e a manifestação da glória de Deus não somente “em”, mas também “por meio” daqueles que o buscam: “Jesus curou muitos que tinham males, doenças graves e espíritos malignos, e concedeu visão a muitos que eram cegos” (Lc 7.18-23). O reino de Deus é uma realidade visível no mundo.
A comunidade dos discípulos de Jesus é responsável por dar continuidade ao seu ministério terreno: "Aquele que crê em mim fará também as obras que tenho realizado. Fará coisas ainda maiores do que estas” (Jo 14.12); “Assim como o Pai me enviou ao mundo, eu os envio" (Jo 17.18; 20.21).
A expressão “mundo”, na Bíblia, possui pelo menos três significados. A palavra é usada para designar o universo criado, a terra, o cosmos: “Do Senhor é a terra e tudo o que nela existe, o mundo e os que nele vivem” (Sl 24.1). Pode referir-se também a um sistema de vida, um espírito de época ou era: “Não se amoldem ao padrão deste mundo, mas transformem-se pela renovação da sua mente”; “Não amem o mundo nem o que nele há. Se alguém amar o mundo, o amor do Pai não está nele. Pois tudo o que há no mundo -- a cobiça da carne, a cobiça dos olhos e a ostentação dos bens -- não provém do Pai, mas do mundo. O mundo e a sua cobiça passam, mas aquele que faz a vontade de Deus permanece para sempre” (Rm 12.2; 1Jo 2.15-17). Finalmente, pode designar pessoas, nesse caso, “mundo humanidade”: “Deus amou o mundo” (Jo 3.16).
A igreja de Jesus Cristo é a parte do mundo-humanidade, submissa ao governo-domínio de Deus e responsável por sinalizar o reino de Deus historicamente (Ef 1.18-23). A igreja não está “implantando o reino de Deus”, pois o reino de Deus “não é deste mundo -- era, século”, será consumado apenas na eternidade, quando o Filho do Homem vier em toda a sua glória (Mt 25.31-46). A igreja, enquanto anuncia o reino de Deus e convoca todos ao arrependimento, é ela mesma um sinal de sua presença no mundo: “Vocês são sal da terra e luz do mundo” (Mt 5.13-16).
Conforme Dom Robinson Cavalcanti, “a missão da igreja é manifestar aqui e agora, como anúncio profético, a maior densidade possível do reino de Deus que será consumado ali e além”. O reino de Deus não encontra seu lugar na história. Mas na história dá os sinais.
O reino de Deus em sua dimensão pessoal anuncia o homem novo. Na dimensão coletiva, o novo homem. Os que nascem de novo (Jo 3.5-8) são nova humanidade (2Co 5.17). Em sua dimensão interior/subjetiva, “dentro de nós” (Lc 17.20-24), o reino de Deus implica a experiência mística/existencial. Na dimensão histórica/objetiva, implica o compromisso ético, a saber, a promoção da justiça e da paz no contexto da sociedade, pois seus sinais podem ser vistos e testemunhados (Lc 7.18-23). Porque inaugurado e presente no mundo, é o reino já acessível. Sua consumação escatológica, entretanto, o faz utopia animadora da fé e da esperança que mobiliza para a cooperação na “missio Dei”: “Fazer convergir em Cristo todas as coisas, celestiais ou terrenas, na dispensação da plenitude dos tempos” (Ef 1.10).
Fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/363/o-reino-de-deus-e-as-utopias
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