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Portanto não vos inquieteis, dizendo: Que
comeremos? Que beberemos? ou: Com que nos vestiremos? Porque os gentios é que
procuram todas estas coisas; pois vosso Pai celeste sabe que necessitais de
todas elas; buscai, pois, em primeiro lugar o seu reino e a sua justiça, e
todas estas coisas vos serão acrescentadas.
Mt 6:31-33
- por Henri Nouwen
INTRODUÇÃO
Neste livreto eu gostaria de explorar o que significa viver uma vida
espiritual, e como se pode vivê-la. No meio das nossas vidas agitadas e
turbulentas às vezes indagamos: Qual a nossa verdadeira vocação na vida?
Onde podemos achar tranqüilidade de mente para poder escutar a voz de
Deus que chama? Quem pode guiar-nos através do labirinto interior dos
nossos pensamentos, emoções, e sentimentos? Estas e muitas outras
indagações semelhantes expressam um profundo desejo de viver uma vida
espiritual, mas ao mesmo tempo uma grande obscuridade sobre seu
significado e prática.
Escrevi este livreto, em primeiro lugar, para os homens e
mulheres que experimentam um impulso persistente para entrar mais profundamente
na vida espiritual mas que estão confusos sobre a direção em que devem andar.
Estas são as pessoas que conhecem a história de Cristo e têm um profundo desejo
de deixar este conhecimento descer das suas mentes para seus corações. Sentem
vagamente que tal "conhecimento do coração" pode não só dar-lhes um
novo senso de identidade, mas também até mesmo fazer novas todas as coisas para
eles.
Contudo estas mesmas pessoas freqüentemente sentem uma certa hesitação e
temor para começar nesta vereda sem mapa, e muitas vezes se indagam se não
estão se enganando. Espero que este livreto lhes ofereça algum encorajamento e
direção.
Mas quero falar também, embora indiretamente, aos muitos
que consideram a história de Cristo como desconhecida ou estranha, mas que
experimentam um desejo indefinido por liberdade espiritual. Espero que o que
foi escrito para cristãos tenha sido escrito de tal forma que haja espaço para
outros descobrirem pontos de apoio na sua própria busca por um lar espiritual.
Este só pode ser um verdadeiro livreto para cristãos quando se dirige também
aos que têm tantas perguntas sobre o significado da vida e que nunca acharam
respostas. A autêntica vida espiritual encontra sua base na condição humana que
todas as pessoas - sejam ou não cristãos têm em comum.
Como ponto de partida, escolhi as palavras de Jesus:
"Não se preocupem" ("Não vos inquieteis"). A preocupação
tornou-se uma parte tão integral da nossa vida cotidiana que uma vida sem
preocupações não só parece ser impossível, mas até mesmo indesejável.
Suspeitamos que ficar despreocupado; não ser realista e - pior ainda – é
perigoso. Nossas preocupações nos motivam a trabalhar muito, a preparar-nos
para o futuro, e a armar-nos contra pendentes ameaças.
Entretanto, Jesus diz:
"Não vos inquieteis, dizendo: Que comeremos? Que beberemos? ou: Com que
nos vestiremos? ... pois vosso Pai celestial sabe que necessitais de todas
elas; buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino ... e todas estas cousas vos
serão acrescentadas (Mt 6:31-33).
Com este conselho radical e
"utopista", Jesus indica a possibilidade de uma vida sem
preocupações, uma vida em que todas as coisas estão se fazendo novas. Desejo,
então, descrever a vida espiritual em que o Espírito de Deus pode nos recriar
como pessoas verdadeiramente livres.
Dividi minhas reflexões em três partes. Na primeira
parte, quero discutir os efeitos destrutivos da preocupação na nossa vida
diária. Na segunda parte, pretendo mostrar como Jesus responde às nossas preocupações
par alisadoras, oferecendo-nos uma nova vida, uma vida na qual o Espírito de
Deus pode fazer todas as coisas novas para nós. Finalmente, na terceira parte,
quero descrever algumas disciplinas específicas que podem levar nossas
preocupações a perder paulatinamente sua força sobre nós, permitindo assim que
o Espírito de Deus faça sua obra de recriação.
Capítulo 1: Todas Estas Coisas
INTRODUÇÃO
A vida espiritual não é uma vida antes, após, ou além da
nossa existência cotidiana. Não, a vida espiritual só pode ser real quando é
vivida no meio das dores e alegrias do aqui e agora. Portanto, precisamos
começar com um exame cuidadoso da forma como pensamos, falamos, sentimos e
agimos a cada hora, a cada dia, a cada semana, e a cada ano, a fim de ficarmos
mais plenamente conscientes da nossa fome pelo Espírito.
Enquanto tivermos apenas um vago sentimento interior de
insatisfação com nossa presente forma de vida, e somente um desejo indefinido
por "'coisas espirituais", nossas vidas continuarão a estagnar-se em
melancolia generalizada.
Freqüentemente dizemos: "Não estou muito feliz.
Não estou contente com o rumo da minha vida. Não tenho muita alegria ou paz,
mas como não sei como as coisas poderiam ser diferentes, suponho que devo ser
realista e aceitar a vida como é".
É este espírito de resignação que nos
impede de ativamente buscar a vida do Espírito.
Nossa primeira tarefa é expulsar este vago e obscuro
sentimento de insatisfação e fazer um exame crítico da forma que estamos
vivendo. Isto requer honestidade, coragem e confiança. Temos de honestamente
desmascarar e corajosamente confrontar nossas numerosas brincadeiras que usamos
para enganarmos a nós mesmos. Temos que confiar que nossa honestidade e coragem
não nos levarão ao desespero, mas a um novo céu e a uma nova terra.
Bem mais do que o povo da época de Jesus, nós nesta
"era moderna" podemos ser chamados de povo preocupador. Mas como
nossa preocupação contemporânea realmente se manifesta? Depois de examinar
criticamente minha própria vida e as vidas ao meu redor, duas palavras surgem
como descritivas da nossa situação: cheios e não realizados.
CHEIOS
Uma das características mais óbvias das nossas vidas
diárias é que estamos atarefados. Na nossa vida os dias são cheios de coisas
para fazer, pessoas para encontrar, projetos para terminar, cartas para
escrever, telefonemas para completar, e compromissos para guardar. Nossas vidas
muitas vezes parecem malas abarrotadas rebentando nas costuras.
Na realidade,
quase sempre estamos cônscios de algum atraso. Há um sentimento incômodo que
importunamente nos avisa que há tarefas incompletas, promessas não cumpridas,
propostas não realizadas. Sempre há algo mais que deveríamos ter lembrado,
feito ou dito.
Sempre há pessoas com quem não falamos, a quem não escrevemos ou
não visitamos. Assim, embora sejamos muito atarefados, também temos um
sentimento persistente de que nunca realmente cumprimos nossas obrigações.
O estranho, porém, é que é muito difícil não estar
atarefado. Estar atarefado tornou-se um símbolo de status. As pessoas esperam
que estejamos ocupados e que tenhamos muitos assuntos na nossa mente.
Freqüentemente nossos amigos nos dizem: "Imagino que você está ocupado
como sempre", e o dizem em tom de elogio. Reafirmam a presunção
generalizada que é bom estar atarefado. De fato, os que não sabem o que fazer
no futuro imediato incomodam seus amigos.
Estar atarefado e ser importante
normalmente parecem significar a mesma coisa. Muitos telefonemas começam com a
frase: "Sei que você está ocupado, mas será que poderia me dar um
minuto?" Com isto, sugerem que tomar um minuto de quem tem uma agenda
cheia vale mais do que tomar uma hora de quem tem pouco para fazer.
Na nossa sociedade orientada para produção, estar
atarefado ou ter uma ocupação tornou-se uma das principais formas, se não a
principal, de nos identificar. Sem uma ocupação, não só nossa segurança
econômica, mas nossa própria identidade é ameaçada. Isto explica o grande temor
com que muitas pessoas enfrentam a aposentadoria. Afinal, quem somos depois de
não mais ter uma ocupação?
Mais escravizadoras do que nossas ocupações, porém, são
as nossas preocupações. Estar preocupado significa encher nosso tempo e espaço
muito antes de chegar lá. Isto é inquietação no sentido mais específico da
palavra. É uma mente cheia de "se".
Dizemos a nós iremos: "E se
eu ficar gripado? Se eu perder meu emprego? Se o meu f ilho não chegar em casa
na hora certa? Se não houver bastante alimento amanhã? Se eu for atacado? Se
uma guerra começar? Se o mundo acabar? Se ... ?".
Todas essas perguntas
enchem a nossa mente com pensamentos ansiosos e fazem-nos indagar
constantemente sobre o que fazer e o que dizer caso algo aconteça no futuro.
Grande parte, senão a maioria, do nosso sofrimento tem ligação com estas
preocupações.
Possíveis mudanças de carreira, possíveis conflitos familiares,
possíveis enfermidades, possíveis desastres, e um possível holocausto nuclear
fazem-nos ansiosos, temerosos, desconfiados, gananciosos, nervosos e
melancólicos. Impedem-nos de sentir uma verdadeira liberdade interior.
Por
estarmos sempre prontos para eventualidades, raramente confiamos plenamente no
agora. Não é exagero dizer que grande parte da energia humana é investida
nestas preocupações temerosas. Tanto nossa vida individual como coletiva estão
tão profundamente moldadas por nossas preocupações com o amanhã, que
dificilmente o hoje pode ser vivido.
Não somente estar ocupado mas também estar preocupado é
altamente encorajado por nossa, sociedade. A forma que jornais, rádio e
televisão nos comunicam suas informações cria uma atmosfera de constante
emergência. As vozes excitadas dos repórteres, a preferência por acidentes
repugnantes, crimes cruéis, e conduta pervertida, e a cobertura de hora em hora
da miséria humana dentro e fora do país, lentamente nos engolfam num senso
abrangente de iminente destruição.
Além de todas essas notícias ruins existe a
avalanche de anseios. Sua insistência inflexível de que perderemos alguma coisa
muito importante se ficarmos sem ler este livro, sem ver este filme, sem ouvir
este locutor, ou sem comprar este novo produto, intensifica nossa inquietação e
acrescenta muitas preocupações fabricadas às preocupações já existentes. Às
vezes parece como se nossa sociedade dependesse da manutenção dessas
preocupações artificiais.
Que aconteceria se parássemos de nos preocupar? Se o
desejo por divertir tanto, viajar tanto, comprar tanto, e nos proteger tanto,
não mais motivasse nosso comportamento, será que nossa sociedade atual ainda
poderia funcionar? A tragédia é que realmente estamos presos num emaranhado de
expectativas falsas e necessidades arranjadas. Nossas ocupações e preocupações
enchem nossas vidas externas e internas até ao máximo. Impedem o Espírito de
Deus de fluir livremente em nós e desta forma renovar nossas vidas.
NÃO REALIZADOS
Sob a preocupação das nossas vidas, contudo, algo mais
está acontecendo. Ao mesmo tempo em que nossa mente e coração estão cheios com
muitas coisas, levando-nos a indagar como podemos satisfazer as expectativas
impostas sobre nós por nós mesmos e por outros, temos um sentimento profundo de
não realização.
Embora atarefados e preocupados com muitas coisas, raramente
nos sentimos verdadeiramente realizados, em paz, ou em casa. Um sentimento
corrosivo de não realização está sob a superfície das nossas vidas ocupadas.
Refletindo um pouco mais sobre esta experiência de não realização, posso
discernir diversos sentimentos. Os mais significativos são enfado,
ressentimento e depressão.
Enfado é um sentimento de estar desligado. Enquanto
estamos atarefados com muitas coisas, indagamos se o que fazemos realmente faz
alguma diferença. A vida se apresenta como uma série aleatória de atividades e
acontecimentos desconexos sobre os quais temos pouco ou nenhum controle. Estar
enfadado, portanto, não significa que não temos nada para fazer, mas que
questionamos o valor das coisas que estamos tão atarefados em fazer.
O grande
paradoxo da nossa época é que muitos de nós estamos simultaneamente atarefados
e enfadados. Enquanto corremos de um acontecimento para outro, indagamos em
nosso próprio íntimo se alguma coisa está realmente acontecendo. Embora
dificilmente cumpramos com nossas tarefas e obrigações, não estamos tão certos
se faria alguma diferença se não as cumpríssemos. Enquanto as pessoas continuam
nos empurrando por todos os lados, duvidamos se alguém realmente se importa
conosco.
Em resumo, embora nossas vidas estejam cheias, nós nos sentimos não
realizados.
Enfado muitas vezes está intimamente relacionado com
ressentimentos Ao mesmo tempo em que estamos atarefados, ainda indagamos se
nossa atividade significa algo para alguém. Facilmente sentimo-nos usados,
manipulados, e explorados. Começamos a nos ver como vítimas mandadas e forçadas
a realizar toda sorte de coisas por pessoas que realmente não nos consideram
seriamente como seres humanos.
A partir daí uma ira interior começa a se
desenvolver, uma ira que com o tempo se instala no nosso coração como um
companheiro constantemente queixoso. Nossa ira quente aos poucos se torna uma
ira fria. Esta "ira congelada" é o ressentimento que causa um efeito
tão mortífero em nossa sociedade.
Porém, a expressão mais debilitante de nossa não
realização é depressão. Quando começamos a sentir que não somente nossa
presença não faz muita diferença, mas que também nossa ausência talvez seja
preferível, podemos facilmente ser enrolados por um sentimento opressivo de
culpa.
Esta culpa não tem ligação com nenhuma atividade particular, mas com a
própria vida. Sentimo-nos culpados por estar vivos. O pensamento de que o mundo
talvez fosse melhor sem refrigerante, desodorante, ou submarino nuclear, cuja
produção preenche as horas de trabalho de nossa vida, pode levar-nos à
desesperante pergunta: "Vale a pena viver?"
Portanto, não é de se
admirar que pessoas que são sempre elogiadas por seus êxitos e realizações,
freqüentemente sentem muita falta de realização, até ao ponto de suicidarem-se.
Enfado, ressentimento e depressão são todos os
sentimentos de desligamento. Apresentam-nos a vida como um elo quebrado.
Transmitem a nós um senso de não pertencer. No caso de relacionamentos
pessoais, esta desconexão é experimentada como solidão.
Quando estamos
solitários vemos a nós mesmos como indivíduos isolados, cercados, talvez, por
muitas pessoas, mas não realmente parte de qualquer comunidade de apoio e
proteção.
Sem dúvida solidão é uma das doenças mais disseminadas do nosso
tempo. Afeta não somente a vida dos aposentados, mas também a vida familiar, a
vida comunitária, a vida escolar, e a vida profissional. Causa sofrimento não
somente às pessoas idosas, mas também às crianças, aos jovens e adultos.
Penetra não somente em prisões mas também em residências particulares,
edifícios de escritórios e hospitais. É vista até na interação cada vez mais
escassa entre pessoas nas ruas de nossas cidades.
No meio de toda esta solidão
impregnante muitos clamam: "Existe alguém que realmente se importa comigo?
Existe alguém que pode arrancar meu sentimento interior de isolamento? Existe
alguém com quem eu possa me sentir em casa?"
É este sentimento paralisante de abandono que constitui o
cerne da maioria do sofrimento humano. Podemos suportar muito sofrimento físico
e até mental quando sabemos que isto verdadeiramente nos torna uma parte
integrante da vida que vivemos juntos neste mundo. Mas quando nos sentimos
cortados da família dos seres humanos, rapidamente desfalecemos.
Enquanto acreditamos que nossos sofrimentos e lutas nos
unem aos nossos companheiros e companheiras humanos, fazendo-nos assim partes
da luta comum do ser humano por um futuro melhor, estamos plenamente dispostos
para aceitar uma tarefa exigente.
Mas quando nos consideramos espectadores
passivos sem nenhuma contribuição para fazer à história da vida, nossos
sofrimentos não são mais sofrimentos construtivos e nem nossas lutas servem
para produzir nova vida, porque assim temos um sentimento de que nossas vidas
acabam e desaparecem depois de nós, sem nos levar a destino algum.
De fato, às
vezes somos obrigados a dizer que a única coisa que lembramos de nosso passado
recente é que estávamos muito atarefados, que todas as coisas pareciam muito
urgentes e que dificilmente podíamos colocá-las em dia. O que fizemos não
lembramos. Isto mostra quão isolados nos tornamos. O passado não mais nos leva
para o futuro; simplesmente nos deixa preocupados sem nenhuma promessa de
mudanças para o melhor.
Nosso desejo de ser livres deste isolamento pode se
tornar tio forte que explode em violência. Então nossa necessidade por um
relacionamento íntimo - com um amigo, um namorado, ou uma comunidade apreciativa
- se transforma num apelo desesperado por alguém que nos ofereça uma satisfação
imediata, relaxamento de tensão, ou um sentimento temporário de identificação.
Neste caso, nossa necessidade mútua degenera e torna-se uma agressão perigosa
que causa muito dano e somente intensifica nosso sentimento de solidão.
CONCLUSÃO
Espero que estas reflexões tenham nos aproximado mais do
significado da palavra "preocupação" tal como foi usada por Jesus.
Hoje preocupação significa estar ocupado e preocupado com muitas coisas, e ao
mesmo tempo estar enfadado, ressentido, deprimido, e muito solitário. Não estou
tentando dizer que todos nós em todo tempo estamos tão extremamente
preocupados.
Porém, há pouca dúvida em minha mente que a experiência de estar
cheio porém não realizado atinge a maioria de nós em alguma medida em algum
tempo da nossa vida. Em nosso mundo altamente tecnológico e competitivo, é
difícil evitar completamente as forças que saturam nosso espaço interior e
exterior e desligam-nos de nosso ser mais íntimo, dos nossos companheiros
humanos, e do nosso Deus.
Uma das características mais notáveis da preocupação é
que ela fragmenta nossas vidas. As muitas coisas que temos de fazer,
considerar, e planejar, as muitas pessoas que precisamos lembrar, visitar, ou
conversar, as muitas causas que devemos atacar ou defender, tudo isto
despedaça-nos e nos faz perder nosso equilíbrio. Preocupação nos leva a estar
"em todo lugar", mas raramente em casa.
Uma forma de expressar a
crise espiritual de hoje é dizer que a maioria de nós tem um endereço, mas não
pode ser encontrado lá. Sabemos onde está nosso lugar, mas estamos sempre sendo
arrastados em muitas direções, como se fôssemos ainda desabrigados. "Todas
estas coisas" estão sempre exigindo nossa atenção. Levam-nos tão longe de
casa que no fim nos esquecemos do nosso verdadeiro endereço, isto é, o lugar
onde podemos ser encontrados.
Jesus reage a esta condição de estar cheio porém não
realizado, muito atarefado porém desligado, em todo lugar porém nunca em casa.
Ele nos quer levar ao lugar onde pertencemos.
Mas seu chamado para viver uma
vida espiritual só pode ser ouvido quando queremos honestamente confessar nossa
existência desabrigada e preocupada e reconhecer seu efeito fragmentador em
nossa vida diária.
Só então um desejo por nosso verdadeiro lar pode ser
desenvolvido. É a respeito deste desejo que Jesus fala quando diz: "Não
vos preocupeis... buscai, pois, em primeiro lugar, o seu reino e todas estas
cousas vos serão acrescentadas".
Capítulo 2: Seu Reino em Primeiro Lugar
INTRODUÇÃO
Jesus não reage ao nosso estilo de vida cheio e
preocupação dizendo que não deveríamos estar tão ocupados com afazeres
terrenos. Ele não tenta nos retirar dos muitos eventos, atividades, e pessoas
que compõem nossas vidas. Não nos diz que o que fazemos não tem importância,
valor, ou utilidade.
Nem sugere que devemos nos afastar de nossos
envolvimentos e viver vidas calmas, tranqüilas e retiradas das lutas do mundo.
A resposta de Jesus para nossas vidas cheias de
preocupação é bem diferente. Ele pede de nós que substituamos nosso ponto de
gravidade, relocalizemos o centro de nossa atenção, que mudemos as nossas
prioridades. Jesus quer que deixemos as "muitas coisas" para a
"única coisa necessária".
É importante que compreendamos que Jesus
não quer de forma alguma que deixemos nosso mundo de muitas facetas. Antes,
quer que vivamos nele, mas firmemente arraigados no centro de todas as coisas.
Jesus não fala sobre uma mudança de atividades, uma mudança de contatos, ou até
uma mudança de ritmo. Ele fala sobre uma mudança de coração. Esta mudança de
coração faz todas as coisas diferentes, até mesmo quando todas as coisas
parecem permanecer as mesmas. Este é o significado de: "Buscai, pois em
primeiro lugar, o seu reino... e todas estas coisas serão acrescentadas".
O mais importante é onde estão nossos corações. Quando nos preocupamos, temos
nossos corações no lugar errado. Jesus pede que coloquemos nossos corações no
centro, onde todas as outras coisas irão se encaixar.
Qual é este centro? Jesus o chama de reino, o reino do
Seu Pai. Para nós do século XX, isto pode não ter muito significado. Reis e
reinos não exercem um papel muito importante em nossa vida diária. Mas somente
quando entendemos as palavras de Jesus como um chamado urgente para colocar a
vida do Espírito de Deus como nossa prioridade é que podemos ver melhor o que
está envolvido.
Um coração que busca o reino do Pai é também um coração que
busca a vida espiritual. Buscar o reino, portanto, significa colocar a vida do
Espírito, dentro de nós e entre nós como o centro de tudo que pensamos, dizemos
ou fazemos.
Agora, quero explorar em mais profundidade esta vida no
Espírito. Primeiro precisamos ver como o Espírito de Deus se manifesta na
própria vida de Jesus. Depois precisamos discernir o que significa para nós ser
chamados por Jesus para entrar com ele nesta vida do Espírito.
A VIDA DE JESUS
Não há muita dúvida de que a vida de Jesus foi uma vida
muito atarefada. Ele esteve atarefado ensinando seus discípulos, pregando às
multidões, curando os doentes expelindo demônios, respondendo perguntas de
inimigos e amigos, e andando de um lugar para outro.
Jesus estava tão envolvido
em atividades que se tornava difícil ter algum tempo sozinho. Esta história nos
dá uma idéia. "À tarde, ao cair do sol, trouxeram a Jesus todos os
enfermos, e endemoninhados. Toda a cidade estava reunida à porta. E ele curou
muitos doentes de toda sorte de enfermidades; também expeliu muitos demônios
... Tendo se levantado alta madrugada, saiu, foi para um lugar deserto, e ali
orava. Procuravam-no diligentemente Simão e os que com ele estavam. Tendo-o
encontrado, lhe disseram: Todos te buscam. Jesus, porém, lhes disse: Vamos a
outros lugares, às povoações vizinhas, a fim de que eu pregue também ali, pois
para isso é que eu vim. Então foi por toda a Galiléia, pregando nas sinagogas
deles e expelindo os demônios" (Mt 1:32-39).
Está claro neste relato que Jesus tinha uma vida muito
cheia e raramente, possivelmente nunca, era deixado sozinho. Pode até nos dar a
impressão de um fanático impulsionado a transmitir sua mensagem por todo lado a
qualquer custo. A verdade, porém, é diferente.
Quanto mais nos aprofundamos nos
relatos do Evangelho sobre sua vida, mais vemos que Jesus não era um zelote
tentando realizar muitas coisas diferentes a fim de alcançar uma meta imposta
por ele mesmo.
Ao contrário, tudo o que sabemos sobre Jesus mostra que estava
interessado numa coisa somente: fazer a vontade do seu Pai. Nada nos Evangelhos
é tão marcante como a obediência resoluta de Jesus a seu Pai.
Desde suas
primeiras palavras registradas ditas no templo. "Não sabíeis que me
cumpria estar na casa de meu Pai?" -(Lc 2:49), até suas ultimas palavras
na cruz- "Pai, nas tuas mãos entrego o meu espírito" (Lc.23:46), o
único interesse de Jesus era fazer a vontade de seu Pai. Ele disse: "...o
Filho nada pode fazer de si mesmo, senão somente aquilo que vir fazer o
Pai..." (Jo 5-19).
As obras que Jesus fez são as obras que o Pai o enviou
para fazer, e as palavras que falou são as palavras que o Pai lhe deu. Ele não
deixa duvida sobre isto: "Se não faço as obras de meu Pai, não me
acrediteis.." (Jo 10: 37);" ...e a palavra que estais ouvindo não é
minha, mas do Pai que me enviou" (Jo 14: 24).
Jesus não e nosso Salvador simplesmente por causa do que
disse ou fez para nós. É o nosso Salvador porque o que disse e fez foi dito e
feito em obediência a seu Pai. Por isto Paulo pode dizer. "Porque, como
pela desobediência de um só homem muitos se tornaram pecadores, assim também
por meio da obediência de um só muitos se tornarão justos" (Rm 5:19).
Jesus é o homem obediente.
O centro da sua vida é este relacionamento de
obediência com o Pai. Isto pode ser difícil para nós entendermos, porque a
palavra "obediência" tem tantas conotações negativas em nossa
sociedade. Faz-nos pensar em figuras autoritárias que impõem a vontade deles
sobre os nossos desejos. Faz-nos lembrar de acontecimentos infelizes da
infância ou tarefas difíceis executadas sob ameaças de castigo. Mas nada disto
se refere à obediência de Jesus.
Sua obediência significa uma atenção total e destemida a
seu Pai amoroso. Entre o Pai e o Filho há somente amor. Todas as coisas que
pertencem ao Pai, ele confia ao Filho (Lc IO:22), e todas as coisas que o Filho
recebe, devolve ao Pai. O Pai se abre totalmente para o Filho e coloca todas as
coisas em ,suas mãos: todo conhecimento (Jo 12:50), toda glória (Jo 8:54), todo
poder (Jo 5:19-21).
E o Filho se abre totalmente para o Pai e desta forma
devolve todas as coisas às mãos de seu Pai. "Vim do Pai e entrei no mundo;
todavia deixo o mundo e vou para o Pai" (Jo 16:28). Este amor inexaurível entre o Pai e o Filho inclui e até
transcende todas as formas de amor que conhecemos. Inclui o amor de pai e mãe,
irmão e irmã, esposo e esposa, professor e amigo. Mas também vai muito além das
muitas limitadas e limitantes experiências humanas de amor que conhecemos.
É um
amor que cuida mas exige. É um amor sustentador mas severo. É um amor suave mas
forte. É um amor que da vida. mas aceita a morte. Neste divino amor Jesus foi
enviado ao mundo, e por este divino amor Jesus se ofereceu na cruz.
Este amor
envolvente, que sintetiza o relacionamento entre o Pai e o Filho, é uma Pessoa
divina, co-ígual com o Pai e o Filho.. Tem um nome pessoal. É chamado Espírito
Santo. O Pai ama o Filho e se derrama no Filho. O Filho é amado pelo Pai e
devolve tudo que ele é ao Pai. O Espírito é o próprio amor em si, eternamente
envolvendo o Pai e o Filho.
Esta comunidade eterna de amor é o centro e fonte da vida
espiritual de Jesus, uma vida de sensibilidade ininterrupta para com o Pai no
Espírito de amor. É desta vida que o ministério de Jesus floresce. Comendo e
jejuando, orando e agindo, viajando e descansando, pregando e ensinando,
expulsando e curando, tudo foi feito neste Espírito de amor.
Nunca entenderemos
o pleno significado do rico e variado ministério de Jesus sem que vejamos como
as muitas coisas são enraizadas em uma coisa: ouvir o Pai numa intimidade de
amor perfeito.
Quando virmos isto, também compreenderemos que o alvo do
ministério de Jesus é nada menos que nos introduzir nesta mais intima
comunidade.
NOSSAS VIDAS
Nossas vidas são destinadas a se tornarem como a vida de
Jesus. Afinal, o propósito total do ministério de Jesus é levar-nos -a casa do
seu Pai. Jesus não veio somente para nos libertar dos grilhões do pecado e da
morte, senão também para levarmos à intimidade desta vida divina. Para nós é
difícil imaginar o que isto significa.
Nossa tendência a enfatizar a distancia
entre Jesus e nós mesmos. Vemos Jesus como o Onisciente e Onipotente Filho de
Deus, o qual é inatingível para nós seres humanos caídos e pecadores. Mas
pensando desta forma, esquecemos que Jesus veio para nos dar sua própria vida.
Veio para nos elevar à participação na comunidade de amor com o Pai.
Somente
quando reconhecemos o propósito fundamental do ministério de Jesus é que
estaremos aptos a entender o significado da vida espiritual. Todas as coisas
que pertencem a Jesus nos são dadas para que as recebamos.
Tudo que Jesus fez
nós também podemos fazer. Jesus não se refere a nós como cidadãos de segunda
classe. Ele não retém nenhuma coisa de nós: " ... tudo quanto ouvi de meu
Pai vos tenho dado a conhecer" (Jo 15:15); " ... aquele que crê em
mim, fará também as obras que eu faço..."(Jo 14:12). Jesus quer que
estejamos onde ele está.
Em sua oração sacerdotal, ele não deixa duvida alguma
sobre sua intenção: "... a fim de que todos sejam um; e como és tu, ó Pai,
em mim e eu em ti ... Eu lhes tenho transmitido a glória que me tens dado, para
que sejam um, como nós o somos, eu neles e tu em mim, a fim de que sejam
aperfeiçoados na unidade, para que o mundo conheça que tu me enviaste, e os
amaste como também amaste a mim. Pai, a minha vontade é que onde eu estou,
estejam também comigo os que me deste, para que vejam a minha glória que me
conferiste... Eu lhes fiz conhecer o teu nome ainda o farei conhecer, a fim de
que o amor com que me amaste esteja neles e eu neles esteja" (Jo
17:21-26).
Estas palavras são uma expressão bela da natureza do
ministério de Jesus. Ele se tornou como nós para que pudéssemos nos tornar como
ele. Ele não se apegou a sua unidade com Deus, mas se esvaziou e se tornou como
nós para, que pudéssemos nos tornar como ele e desta forma participar da sua
vida divina.
Esta transformação radical de nossas vidas é a obra do
Espírito Santo. Os discípulos mal conseguiam compreender o significado de
Jesus.Enquanto Jesus estava presente com eles na carne, ainda não reconheciam
sua presença plena no Espírito.
Por isto Jesus disse: "Convém-vos que eu
vá, porque se eu não for o Consolador não virá para vós outros; se, porém, eu
for, eu vo-lo enviarei ... quando vier, porém, o, Espírito da verdade, ele vos
guiará a toda a verdade; porque não falara por si mesmo, mas dirá tudo o que
tiver ouvido, e vos anunciara as cousas que hão de vir. Ele me glorificará
porque há de receber do que a meu, e vo-lo há de anunciar. Tudo quanto o Pai
tem é meu; por isso é que vos disse que há de receber do que a meu e vo-lo há
de anunciar" (Jo 16:7, 13-15).
Jesus envia o Espírito para nos levar à plena verdade da
vida divina. Verdade não significa uma idéia, conceito, ou doutrina mas o
verdadeiro relacionamento. Ser levado a participar da verdade é ser levado a
participar do relacionamento que Jesus tem com o Pai; é entrar no noivado
divino.
Desta forma o Pentecoste é a conclusão da missão de
Jesus. No Pentecoste a plenitude do ministério de Jesus se torna visível.
Quando o Espírito Santo desce sobre os discípulos e habita neles, suas vidas
são transformadas em vidas semelhantes a Cristo, vidas moldadas pelo mesmo amor
que existe entre o Pai e o Filho. A vida espiritual é realmente uma vida na
qual somos elevados para nos tornar participantes da vida divina.
Ser elevado à vida divina do Pai, do Filho, e do Espírito
Santo não significa, porém, ser tirado do mundo. Ao contrário, aqueles que
entram na vida espiritual são exatamente os que são enviados ao mundo para
continuar e concluir a obra que Jesus começou. A vida espiritual não nos remove
do mundo mas leva-nos a nos aprofundar mais nele.
Jesus disse para seu Pai: "Assim como tu me enviaste
ao mundo, também eu os enviei ao mundo" (Jo 17:18). Ele esclarece que
exatamente porque seus discípulos não mais pertenciam ao mundo, podiam viver no
mundo como ele vivia. "Não peço que os tires do mundo, e sim, que os
guardes do mal. Eles, não são do mundo como também eu não sou" (Jo
17:15-16).
Vida no Espírito de Jesus e portanto uma vida na qual a vinda de
Jesus ao mundo sua encarnação, sua morte, e ressurreição demonstrada por
aqueles que entraram no mesmo relacionamento de obediência ao Pai que marcou a
própria vida de Jesus. Tornando-nos filhos e filhas como Jesus foi Filho,
nossas vidas se tornam uma continuação da missão de Jesus.
"Estar no mundo sem ser do mundo". Estas
palavras sintetizam bem a maneira que Jesus fala sobre a vida espiritual. É uma
vida na qual somos totalmente transformados pelo Espírito de amor. Contudo é
uma vida onde todas as coisas parecem permanecer as mesmas.
Viver uma vida
espiritual não significa que devemos deixar nossas famílias, abandonar nossos
empregos, ou mudar nossas formas de trabalhar; não significa que temos de nos
afastar de atividades políticas e sociais, ou perder interesse na literatura e
na arte; não exige formas severas de ascetismo ou longas horas de oração.
Mudanças como estas podem de fato vir como frutos da nossa vida espiritual, e
para algumas pessoas decisões radicais podem ser necessárias.
Mas a vida
espiritual pode ser vivida de tantas formas quanto existem pessoas. A novidade
é que nos transferimos das muitas coisas para o reino de Deus. A novidade que
nos livramos das coerções do mundo e colocamos nossos corações na única, coisa
necessária.
A novidade é que não experimentamos mais as muitas coisas pessoas e
acontecimentos como motivos infindáveis de preocupação, mas começamos a
experimentá-los como maneiras ricas e variadas nas quais Deus manifesta sua
presença para nós.
De fato, viver uma vida espiritual requer uma mudança de
coração, uma conversão. Tal conversão pode ser marcada por uma mudança interior
repentina, ou pode ocorrer através de um longo e suave processo de
transformação.
Mas sempre envolve uma experiência interior de harmonia.
Compreendemos que agora estamos no centro, e que desta posição tudo que existe
e ocorre pode ser visto e entendido como parte do mistério da vida de Deus
conosco.
Nossos conflitos e dores, nossas tarefas e compromissos, nossas
famílias e amigos, nossas atividades e projetos, nossas esperanças e
aspirações, não mais se nos apresentam como uma variedade de coisas fatigantes
que mal conseguimos controlar, mas antes se revelam como afirmações e
revelações da nova vida do Espírito em nós. "Todas estas coisas", que
nos ocupavam e preocupavam ' agora vêm como dons ou desafios que fortalecem e
aprofundam a nova vida que descobrimos.
Isto não significa que a vida
espiritual torna as coisas mais fáceis ou que abole nossos esforços e lutas. A
vida dos discípulos de Jesus mostra claramente que o sofrimento não diminui por
causa da conversão. Às vezes até se torna mais intenso.
Mas nossa atenção não é
mais dirigida para esta questão de "mais ou menos". O importante é
escutar atentamente ao Espírito e ir obedientemente onde estamos sendo
dirigidos quer seja um lugar alegre, quer seja doloroso.
Pobreza, dor, luta, angústia, agonia e mesmo escuridão
interior podem continuar a fazer parte de nossa experiência. Podem até ser a
maneira de Deus nos purificar. Mas a vida deixou de ter enfado, ressentimento,
depressão, ou solidão porque aprendemos que todas as coisas que acontecem fazem
parte do nosso caminho para a casa do Pai.
CONCLUSÃO
"Seu reino em primeiro lugar". Espero que estas
palavras tenham adquirido um novo sentido. Elas nos chamam a seguir a Jesus em
seu caminho de obediência, a entrar com ele na comunidade estabelecida pelo
amor exigente do Pai, e a viver toda nossa vida daquela posição.
O reino é o
lugar onde Espírito de Deus nos dirige, nos cura, nos desafia, e nos renova
continuamente. Quando nossos corações estão fixos naquele reino, nossas preocupações
lentamente ficam para trás, porque as muitas coisas que nos faziam preocupar
tanto começam a se encaixar. É importante entender que "buscar o
reino" não é um método para se ganhar galardões.
Neste caso a vida
espiritual acabaria sendo como ganhar o sorteio num jogo de sorte. As palavras
"todas as, outras coisas vos serão acrescentadas" expressam que o
amor e o cuidado de Deus se estendem para todo o nosso ser.
Quando buscarmos a
vida no Espírito de Cristo,conseguiremos ver e entender melhor como Deus nos
guarda na palma de sua mão. Chegaremos a um melhor entendimento do que
realmente precisamos para nosso bem estar físico e mental, e experimentaremos a
ligação íntima entre nossa vida espiritual e nossas necessidades temporais
durante a nossa peregrinação no seu mundo.
Mas isto nos deixa com uma pergunta muito difícil. Há uma
maneira de sair da nossa vida, "cheia de preocupação e entrar na vida do
Espírito? Devemos simplesmente esperar passivamente até que o Espírito chegue e
assopre para longe as nossas preocupações? Há alguma maneira pela qual podemos
nos preparar para a vida do Espírito e aprofundar esta vida depois dela nos
tocar?
A distância entre a vida cheia e não realizada de um lado, e a vida
espiritual do outro, é tão grande que pode parecer completamente irreal esperar
a mudança de uma para a outra. As exigências que a vida diária nos faz são tão
reais, tão imediatas, e tão urgentes que uma vida no Espírito parece além de
nossa capacidade.
Minha descrição da vida cheia de preocupação e a vida
espiritual como dois extremos do espectro da vida foi necessária para tornar
claro o que está envolvido. Mas a maioria de nós não está nem constantemente
preocupada e nem exclusivamente absorvida no Espírito.
Muitas vezes há lampejos
da presença do Espírito de Deus no meio de nossas preocupações, e
freqüentemente preocupações surgem mesmo quando experimentamos a vida do
Espírito no mais interior de nosso ser. É importante que aos poucos entendamos
onde estamos e que aprendamos como podemos deixar a vida do Espírito de Deus se
fortalecer dentro de nós.
Isto leva-me para a tarefa final: descrever as
disciplinas principais que podem nos sustentar em nosso desejo de nos
desvencilhar das garras de nossas preocupações e deixar que o Espírito nos guie
para a verdadeira liberdade dos filhos de Deus.
Capítulo 3: Buscai o Reino
INTRODUÇÃO
A vida espiritual é um dom. É o dom do Espírito Santo,
que nos introduz no reino do amor de Deus. Mas dizer que ser introduzido no
reino de Deus é um dom divino não quer dizer que esperamos passivamente até que
o dom se nos ofereça.
Jesus nos fala para buscar o reino. Buscar alguma coisa
envolve não somente aspiração séria mas também determinação forte. A vida
espiritual requer esforço humano.
As forças que sempre nos puxam de volta a uma
vida cheia de preocupação não são fáceis de se vencer. "Quão
dificilmente", Jesus exclama, "entrarão no reino de Deus ..."
(Mc 10:23). E para nos convencer da necessidade de trabalho duro, ele diz:
"Se alguém quer vir após mim, a si mesmo se negue, tome a sua cruz e
siga-me" (Mt 16:24)
Neste ponto tocamos a questão de disciplina na vida
espiritual. A vida espiritual sem disciplina é impossível. Disciplina é o outro
lado do discipulado. A prática de uma disciplina espiritual nos torna mais sensíveis
à voz tranqüila e suave de Deus.
O profeta Elias não encontrou Deus no vento
forte nem no terremoto e nem no fogo, mas no cicio tranqüilo (1 Rs 19:11-13).
Através da prática de uma disciplina espiritual tornamo-nos sensíveis a essa
voz tranqüila e prontos a responder quando a ouvimos.
Em relação a tudo que eu disse sobre nossas vidas
preocupadas e sobrecarregaras é claro que geralmente estamos envolvidos,
interior e exterior que fica realmente difícil ouvir a voz de Deus quando Ele
nos está falando.
Muitas vezes tornamo-nos surdos, incapazes de saber quando
Deus nos chama, incapazes de entender em que direção nos chama. Desta forma
nossas vidas se tornam um absurdo. Na palavra absurdo encontramos a palavra
latina surdus, que significa "surdo".
A vida espiritual requer
disciplina porque precisamos aprender a ouvir a Deus. que constantemente fala
mas a quem raramente ouvimos. Porém, quando aprendemos a ouvir, nossas vidas se
tornam vidas obedientes. A palavra obediente vem da palavra latina obaudire, que
significa "ouvir".
É necessário ter uma disciplina espiritual se
quisermos mudar lentamente de uma vida absurda para uma vida obediente, de uma
vida cheia de preocupações agitadas para uma vida em que há espaço livre no
nosso interior para ouvir nosso Deus e seguir sua orientação.
A vida de Jesus
foi uma vida de obediência. Estava sempre escutando o Pai, sempre atento a sua
voz, sempre alerta as suas direções. Jesus era "todo ouvidos".
Isto é
a verdadeira oração: ser todo ouvido para Deus. O cerne de toda oração é
realmente ouvir, permanecer obedientemente na presença de Deus.
Uma disciplina espiritual, portanto, é um esforço
concentrado para criar um pouco de espaço interior e exterior em nossas vidas,
onde esta obediência pode ser praticada. Através de uma disciplina espiritual
impedimos que o mundo preencha nossas vidas de tal forma que não haja mas lugar
para ouvir. Uma disciplina espiritual nos liberta para orar, ou melhor dizendo,
liberta o Espírito de Deus para orar em nós.
Vou apresentar agora duas disciplinas pelas quais podemos
"buscar o reino". Podem ser consideradas como disciplinas de oração.
São a disciplina de solidão e a disciplina de comunidade.
SOLIDÃO
Sem solidão é virtualmente impossível viver uma vida
espiritual. Solidão começa com um tempo e lugar para Deus e somente para ele.
Se realmente cremos que Deus não somente existe mas também está ativamente
presente em nossas vidas - curando, ensinando, e dirigindo - precisamos
reservar um tempo e um espaço para lhe dar nossa atenção ininterrupta. Jesus
disse: "Tu, porém, quando orares, entra no teu quarto, e fechada a porta
orarás a teu Pai que está em secreto..." (Mt 6:6).
Produzir um elemento de solidão em nossas vidas é uma das
disciplinas mais necessárias mas também mais difíceis. Mesmo que tenhamos um
desejo profundo por solidão verdadeira, também experimentamos uma certa
apreensão quando nos aproximamos deste lugar e tempo solitários. Uma vez que
estamos sós, sem pessoas com quem conversar, livros para ler, TV para assistir,
ou telefonemas para fazer, um caos interior se revela em nós.
Este caos pode
ser tão perturbador e tão confuso que não vemos a hora de nos ocuparmos
novamente. Portanto, entrar num quarto à parte e fechar a porta, não significa
que imediatamente excluímos todas nossas dúvidas interiores, ansiedades, medos,
maus pensamentos, conflitos insolúveis, sentimentos de ira, desejos impulsivos.
Ao contrário, quando nos afastamos de nossas distrações exteriores,
frequentemente descobrimos que nossas distrações interiores se manifestam a nós
com toda a sua força. Muitas vezes usamos as distrações exteriores para nos
proteger dos barulhos interiores.
Desta forma não é de se admirar que tenhamos
dificuldade para ficar sozinhos. A confrontação com nossos conflitos interiores
pode ser dolorosa demais para ser suportada.
Isto torna a disciplina de solidão ainda mais importante.
Solidão não é uma resposta espontânea a uma vida ocupada e preocupada. Há
razões de sobra para não ficar sozinho. Portanto, devemos começar planejando
cuidadosamente um tempo de solidão. Cinco ou dez minutos por dia pode ser o
máximo que toleramos.
Talvez estejamos prontos para uma hora todo o dia, uma
tarde toda semana, um dia todo mês, ou uma semana todo ano.
A quantidade de
tempo vai variar para cada pessoa de acordo com o temperamento, idade,
trabalho, estilo de vida e maturidade. Mas não estamos levando a vida
espiritual a sério se não reservamos algum tempo para estar com Deus e ouvi-lo.
Talvez tenhamos que escrever isto em preto e branco em nossa agenda diária para
que mais ninguém possa nos roubar este período de tempo. Então poderemos dizer
aos nossos amigos, vizinhos, alunos, fregueses, clientes, ou pacientes:
"Desculpe, mas já fiz um compromisso neste horário que não pode ser
mudado".
Uma vez que nos comprometemos a gastar tempo em solidão,
desenvolvemos uma sensibilidade à voz de Deus em nós. No início, durante os
primeiros dias, semanas, ou até meses, podemos ter o sentimento de que estamos
simplesmente perdendo tempo.
Tempo em solidão no início pode parecer nada mais
que um tempo no qual somos bombardeados por milhares de pensamentos e
sentimentos que emergem das áreas escondidas de nossa mente. Um dos mais
antigos escritores cristãos descreve o primeiro estágio de oração solitária
como a experiência de um homem que, depois de viver anos com as portas abertas,
de repente decidiu fechá-las.
Os visitantes que costumavam vir e entrar em sua
casa começam a bater nas suas portas, indagando porque não se lhes permite a
entrada. Somente quando compreendem que não são bem vindos, aos poucos param de
vir. Esta é a experiência de alguém que decide entrar em solidão depois de uma
vida sem muita disciplina espiritual.
No início, as muitas distrações continuam
se apresentando. Depois, à medida que recebem menos e menos atenção, lentamente
se retiram.
É claro que o importante é a fidelidade à disciplina. No
início, solidão parece tão contrária aos nossos desejos que somos
constantemente tentados a nos esquivar disso. Uma maneira de se esquivar é
divagar na mente ou simplesmente cair no sono.
Mas quando nos dedicamos à nossa
disciplina, na convicção que Deus está conosco mesmo quando ainda não o
escutamos, lentamente descobrimos que não queremos perder nosso tempo a sós com
Deus. Apesar de não experimentarmos muita satisfação em nossa solidão,
compreendemos que um dia sem solidão é menos "espiritual" do que um
dia com solidão.
Intuitivamente, compreendemos que é importante gastar
tempo em solidão. Até começamos a aguardar com expectativa este estranho
período de inutilidade. Este desejo por solidão muitas vezes é o primeiro sinal
de oração, a primeira indicação de que a presença do Espírito Deus não
despercebida.
Quando nos esvaziamos de nossas muitas preocupações conseguimos
entender não somente com nossa mente mas também com nosso coração que nunca
estivemos realmente sós, que o Espírito de Deus estava sempre conosco.
Desta
forma conseguimos compreender o que Paulo escreve aos Romanos: "... a
tribulação produz perseverança; e a perseverança, experiência; e a experiência,
esperança. Ora, a esperança não confunde, porque o amor de Deus é derramado em
nossos corações pelo Espírito Santo, que nos foi outorgado" (Rm 5:3-5).
Em
solidão, chegamos a conhecer o Espírito que já nos foi outorgado. As dores e as
lutas que encontramos em nossa solidão se tornam desta forma o caminho de
esperança, porque nossa esperança não é baseada em alguma coisa que acontecerá
depois que nossos sofrimentos terminarem, mas na presença real do Espírito de
Deus que nos cura no meio destes sofrimentos.
A disciplina de solidão nos
permite gradativamente entrar em contato com a presença esperançosa de Deus em
nossas vidas, e também nos permite experimentar mesmo agora as primícias de
gozo e paz que pertencem ao novo céu e à nova terra.
A disciplina de solidão como tenho descrito aqui é uma
das mais poderosas disciplinas para desenvolver uma vida de oração. É um
caminho simples, embora difícil, para nos libertar da escravidão de nossas
ocupações e preocupações e começar a ouvir a voz que faz novas todas as coisas.
Deixe-me dar uma descrição mais concreta de como a
disciplina de solidão pode ser praticada. É uma grande vantagem ter um quarto
ou um canto de quarto ou um quartinho! - reservado à disciplina de solidão. Tal
lugar "arrumadinho" ajuda-nos a buscar o reino sem gastar tempo com
preparativos.
Algumas pessoas gostam de decorar este lugar, mas o importante é
que o lugar de solidão seja um lugar simples e ordenado. Lá ficamos na presença
do Senhor. "Nossa tentação é fazer alguma coisa útil: ler algo estimulante,
pensar sobre uma coisa interessante, ou experimentar algo extraordinário.
Mas
nosso momento de solidão é exatamente um momento em que queremos estar na
presença de nosso Senhor de mãos vazias, nus, vulneráveis, inúteis, sem nada
para apresentar, provar, ou defender. É assim que, lentamente, aprendemos a
ouvir a voz tranqüila de Deus.
Mas o que fazer com nossas muitas distrações?
Devemos lutar contra estas distrações e esperar que desta forma nos tornemos
mais atentos à voz de Deus? Isto não parece ser a maneira de se entrar em
oração.
Criar um espaço vazio onde podemos ouvir o Espírito de Deus não é fácil
quando colocamos toda nossa energia na luta contra as distrações. Se
confrontamos as distrações de maneira tão direta, acabamos lhes dedicando mais
atenção que merecem. Temos porém, as palavras das Escrituras para dedicar nossa
atenção.
Um salmo, uma parábola, uma editoria bíblica, uma
declaração de Jesus, ou uma palavra de Paulo, Pedro,Tiago, Judas ou João, pode
nos ajudar a focalizar nossa atenção à presença de Deus . Desta forma impedimos
"todas estas coisas" de ter poder sobre nós.
Quando colocamos as
palavras das Escrituras no centro de nossa solidão, tais palavras seja uma
pequena expressão, umas poucas sentenças ou um texto mais longo - podem
funcionar com ponto ao qual retornamos quando nos desviamos para diferentes
direções.
Formam um ancoradouro seguro num mar tempestuoso. No fim de tal
período na presença tranqüila de Deus podemos, através de oração intercessora,
levar todas as pessoas que fazem parte de nossa vida, tanto amigos como também
inimigos à sua presença restauradora.
E por que não concluir com as palavras
que o próprio Jesus nos ensinou: O Pai Nosso?
Isto é somente uma das formas especificas nas quais a
disciplina de solidão pode ser praticada. Infinitas variações são possíveis.
Passeios no campo, a repetição de orações curtas tais como a oração de Jesus,
formas simples de canto, certos movimentos ou posturas - estes e muitos
outros elementos podem se tornar uma parte útil da disciplina de solidão.
Mas
temos de decidir que forma especifica desta disciplina melhor nos convém, e na
qual podemos perseverar. É melhor ter uma prática diária de dez minutos em
solidão do que ter uma hora completa de vez em quando. É melhor se tornar
familiar com uma postura do que ficar sempre experimentando novas posturas.
Simplicidade e regularidade são os melhores guias para achar nosso caminho.
Permitem-nos fazer da disciplina de solidão outra parte da nossa vida diária
tanto quanto comer ou dormir. Quando isto acontece, nossas preocupações
barulhentas perderão lentamente seu poder sobre nós e a atividade renovadora do
Espírito de Deus aos poucos se manifestará.
Embora a disciplina de solidão exija que separemos para
isso tempo e espaço, no final de tudo o importante é que nossos corações se
tornem aposentos tranqüilos e que Deus possa habitar, onde quer que vamos e o
que quer que façamos. Quanto mais nos treinarmos a gastar tempo com Deus e
unicamente com ele, mais descobriremos que em todo o tempo e em todo o lugar
Deus está conosco.
Então poderemos reconhecê-lo mesmo no meio de uma vida
atarefada e ativa.
Depois que a solidão de tempo e espaço se torna solidão de
coração, nunca haveremos de deixar aquela solidão. Poderemos viver a vida espiritual
de qualquer lugar e em qualquer tempo. Desta forma a disciplina da solidão
capacita-nos a viver uma vida ativa no mundo, enquanto permanecemos
constantemente na presença do Deus vivo.
COMUNIDADE
A disciplina de solidão não se mantém sozinha. Está
intimamente relacionada com a disciplina de comunidade. Comunidade como
disciplina é o esforço de criar um espaço livre e vazio entre pessoas, onde
juntos possamos praticar verdadeira obediência. Através da disciplina de
comunidade nos prevenimos de nos apegar um ao outro com sentimentos de medo e
isolamento, e criamos um espaço livre para ouvir a voz libertadora de Deus.
Pode parecer estranho falar de comunidade como disciplina
mas sem disciplina comunidade se torna uma palavra "mole",
referindo-se mais a um lugar seguro, aconchegante e exclusivo do que ao espaço
onde se pode receber vida nova e desenvolvê-la à sua plenitude.
Em qualquer
lugar onde se acha verdadeira comunidade, disciplina é decisivo. É decisivo não
somente nas muitas velhas e novas formas de vida em comum, mas também nos
relacionamentos sustentadores de amizade, casamento, e família. Criar espaço
para Deus entre nós requer o constante reconhecimento do Espírito de Deus um no
outro.
Depois de ter conhecido o Espírito vivificante de Deus no centro de
nossa solidão, tornando-nos capazes desta forma a afirmar nossa verdadeira
identidade, passamos a ver também o mesmo Espírito vivificante falando-nos
através de nossos companheiros humanos. E quando chegamos a reconhecer o
Espírito vivificante de Deus como, a fonte de nossa vida em conjunto, mais
facilmente também ouviremos sua voz em nossa solidão.
Amizade, casamento família, vida religiosa e toda outra
forma de comunidade é solidão saudando solidão, espírito falando a espírito,
coração chamando coração. É o grato reconhecimento do chamado de Deus para
compartilhar a vida juntos e o alegre oferecimento de um espaço hospitaleiro
onde o poder recriador do Espírito de Deus pode se manifestar. Desta maneira
todas as formas de vida em conjunto podem se tornar maneiras de manifestar um
ao outro a presença real de Deus em nosso meio.
Comunidade não tem muito a ver com compatibilidade mútua.
Semelhanças em "background" educacional, constituição psicológica, ou
posição social, podem nos atrair um ao outro, mas nunca podem ser a base para
comunidade. Comunidade é fundamentada em Deus, que nos chama a viver juntos, e
não na atratividade mútua das pessoas.
Há muitos grupos que se constituíram a
fim de proteger seus próprios interesses, defender sua própria posição, ou
promover suas próprias causas, mas nenhum destes é uma comunidade cristã. Ao
invés de romper os muros de medo e criar novo espaço para Deus, fecham-se a
intrusos reais ou imaginários.
O ministério da comunidade é exatamente seu
envolvimento de todas as pessoas, quaisquer que sejam suas diferenças
individuais, permitindo-lhes viver juntas como irmãos e irmãs de Cristo e
filhos e filhas do seu Pai celeste.
Eu gostaria de descrever uma forma concreta desta
disciplina de comunidade. É a prática de ouvir juntos. Em nosso mundo prolixo
geralmente gastamos nosso tempo juntos falando.
Sentimo-nos mais confortáveis
compartilhando experiências, discutindo assuntos interessantes, ou argumentando
problemas sociais. É através de uma troca verbal muito ativa que tentamos nos
descobrir um ao outro.
Mas muitas vezes descobrimos que as palavras funcionam
mais como muros do que como portões, mais como formas de manter a distância do
que para se aproximar. Muitas vezes - até contra nossa vontade - percebemo-nos
competindo mutuamente.
Tentamos provar um ao outro que merecemos atenção, que o
que temos para mostrar nos torna especiais. A disciplina de comunidade
ajuda-nos a ficar em silêncio juntos. Este silêncio disciplinado não é um
silêncio embaraçador, mas um silêncio no qual prestamos atenção juntos ao
Senhor que nos chamou juntos.
Desta forma chegamos a nos conhecer mutuamente
não como pessoas que se apegam ansiosamente a sua autoinstituída identidade,
mas como pessoas que são amadas pelo mesmo Deus de uma forma muito íntima e
singular.
Aqui - como ocorre com a disciplina de solidão - muitas
vezes são as palavras das Escrituras que podem nos levar a este silêncio
comunal. A fé, como Paulo diz, vem pelo ouvir. Temos que ouvir a palavra um do
outro.
Quando nos reunimos de diferentes contextos geográficos, históricos,
psicológicos, e religiosos, ouvir a mesma palavra falada por pessoas diferentes
pode criar em nós uma abertura e vulnerabilidade comuns que nos permitem
reconhecer que estamos seguros juntos naquela palavra.
Desta forma podemos
descobrir nossa verdadeira identidade como comunidade, desta forma podemos
experimentar o que significa ser chamados juntos, e desta forma podemos
reconhecer que o mesmo Senhor que descobrimos em nossa solidão também fala na
solidão do nosso próximo, seja qual for sua linguagem, denominação, ou caráter.
Através de ouvir juntos a palavra de Deus, um silêncio realmente criativo pode
se desenvolver.
Este silêncio é um silêncio impregnado com a presença amorosa
de Deus. Desta forma ouvir juntos a palavra de Deus pode libertar-nos da
competição e rivalidade e permitir-nos reconhecer nossa verdadeira identidade
como filhos e filhas do mesmo Pai amoroso, irmãos e irmãs do nosso Senhor Jesus
Cristo, e conseqüentemente um do outro.
Este exemplo de disciplina de comunidade é um dentre
muitos. Celebrar juntos, trabalhar juntos, brincar juntos, todas estas são
maneiras pelas quais a disciplina de comunidade pode ser praticada. Mas seja
qual for seu tipo ou forma concreta, a disciplina de comunidade sempre leva-nos
além dos limites de raça, sexo, nacionalidade, caráter, ou idade, e sempre nos
revela quem realmente somos diante de Deus e do nosso próximo.
Através da disciplina de comunidade nos tornamos pessoas;
isto é, pessoas que estão soando uma à outra (a palavra latina personare
significa "soar") uma verdade, uma beleza, e um amor que é maior,
mais profundo e mais rico do que nós mesmos podemos compreender
individualmente.
Em comunidade verdadeira somos janelas oferecendo constantemente
um a outros novos panoramas do mistério da presença de Deus em nossas vidas.
Desta forma a disciplina de comunidade é uma verdadeira disciplina de oração.
Faz-nos alertas à presença do Espírito que clama "Aba", Pai, entre
nós, orando assim do centro de nossa vida em comum.
Comunidade desta forma é
obediência praticada juntos. A questão não é simplesmente. "Para onde Deus
me leva como um indivíduo tentando fazer sua vontade?"
Mais básica e mais
significante é a questão, "Para onde Deus nos leva como um povo?"
Esta questão requer que prestemos cuidadosa atenção à direção de Deus em nossa
vida coletiva e que juntos procuremos uma resposta criativa.
Aqui podemos ver
como oração e ação são realmente unidas, porque o que quer que façamos como
comunidade somente pode ser um ato de verdadeira obediência quando é uma
resposta àquilo que ouvimos da voz de Deus em nosso meio.
Finalmente, temos de lembrar que comunidade, como
solidão, é principalmente uma qualidade do coração. Embora seja verdade que
nunca conheceremos o que é comunidade se não nos unirmos em um lugar,
comunidade não significa necessariamente estar fisicamente juntos.
Podemos
muito bem viver em comunidade mesmo estando fisicamente sozinhos. Em tal
situação podemos agir livremente, falar honestamente, e sofrer pacientemente
por causa do vínculo íntimo de amor que nos une com outros, mesmo quando tempo
e espaço nos separam deles.
A comunidade de amor não só se estende além dos
limites de países e continentes mas também além dos limites de décadas e
séculos. Não somente a consciência daqueles que estão longe mas também a
memória dos que viveram no passado podem levar-nos a uma comunidade que nos
cura, sustenta e dirige. O espaço para Deus na comunidade transcende todos os
limites de tempo e lugar.
Desta forma a disciplina de comunidade libera-nos a ir
aonde quer que o Espírito nos guie, mesmo a lugares onde preferiríamos não ir.
Isto é a verdadeira experiência pentecostal. Quando o Espírito desceu sobre os
discípulos que estavam trancados juntos com medo, eles foram libertos para sair
do seu quarto fechado para o mundo. Enquanto estavam reunidos com medo ainda
não se constituíam uma comunidade.
Mas quando receberam o Espírito, tornaram-se
um corpo de pessoas livres que podiam permanecer em comunhão um com o outro mesmo
quando estavam tão longe um do outro quanto Roma está de Jerusalém. Desta
forma, quando é o Espírito de Deus e não o medo que nos une em comunidade,
nenhuma distância de tempo ou lugar nos pode separar.
CONCLUSÃO
Através da disciplina de solidão descobrimos espaço para
Deus no mais íntimo de nosso ser. Através da disciplina de comunidade
descobrimos um lugar para Deus em nossa vida em conjunto. Ambas as disciplinas
se complementam, exatamente porque o espaço dentro de nós e o espaço entre nós
são o mesmo espaço.
É neste espaço divino que o Espírito de Deus ora em nós.
Oração é primeira e principalmente a presença ativa do Espírito Santo em nossa
vida pessoal, e comunitária. Através das disciplinas de solidão e comunidade
tentamos remover - lentamente, mas persistentemente - os muitos obstáculos que
nos impedem de ouvir a voz de Deus dentro de nós.
Deus nos fala não somente de
vez em quando mas sempre. Dia e noite, durante o trabalho e durante o lazer, na
alegria e na dor, o Espírito de Deus está ativamente presente em nós.
Nossa
tarefa é permitir que esta presença se torne real para nós em tudo que fazemos,
dizemos ou pensamos. Solidão e comunidade são as disciplinas pelas quais o
espaço se torna livre para percebermos a presença do Espírito de Deus e respondermos
destemidamente e generosamente. Quando ouvirmos a voz de Deus em nossa solidão
também a ouviremos em nossa vida juntos. Quando ouvirmos a Deus em nossos
companheiros humanos, também o ouviremos quando estivermos com ele sozinhos.
Quer em solidão quer em comunidade, quer sozinhos quer com outros, somos
chamados para viver vidas obedientes isto é, vidas de oração incessante -
"incessante" não por causa das muitas orações que fazemos, mas por
causa de nossa sensibilidade à oração incessante do Espírito de Deus dentro de
nós e entre nós.
Fonte:
http://ichtus.com.br/publix/ichtus/mensagem/
PS- Para ouvir a trilha do dia, vai lá: http://www.youtube.com/watch?v=dPk2ZAr8ejI