Ser humano
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- Ed René Kivitz
O sufixo “dade” acrescido a um adjetivo gera o substantivo que indica a condição ou propriedade daquilo a que se refere. Claridade é a propriedade do que é claro, e raridade do que é raro. Maldade é o que é próprio do mal, e bondade, do que é bom.
O neologismo “serhumanidade” criado por Gregório Duvivier indica, portanto, aquilo que é próprio do ser humano. Isto é, o que faz do humano um humano; aquilo que portamos e que revela que somos seres humanos e não bichos ou coisas, ou demônios. Em termos simples, aquilo que jamais podemos perder, sob pena de perdermos a nossa condição humana.
A tradição judaica considera a unidade do povo de Deus um aspecto fundamental da identidade de cada judeu. Baal Shem Tov, fundador do chassidismo, ensinava que o povo judeu é um Sêfer Torá vivo, e que cada judeu é uma letra, cada família judia é uma palavra, cada comunidade, uma sentença, e o povo judeu é um parágrafo. Adverte que um Sêfer Torá sem uma letra é declarado inválido, defeituoso. A letra somente faz sentido no texto completo, e o texto deixa de ser completo se lhe falta uma letra.
A compreensão rabínica tem raízes nos profetas, que jamais ousaram falar do povo de Israel como se dele não fizessem parte. O profeta Daniel, por exemplo, ainda que não estivesse particular e pessoalmente implicado no pecado de Israel como nação, orou a Deus dizendo: “Oh, Senhor, pecamos, e cometemos iniquidades, e procedemos impiamente, e fomos rebeldes, apartando-nos dos teus mandamentos e dos teus juízos; e não demos ouvidos aos teus servos, os profetas, que em teu nome falaram aos nossos reis, aos nossos príncipes, e a nossos pais, como também a todo o povo da terra”. Dessa oração se depreende que, se Israel pecou, Daniel também pecou, pois não existe Daniel à parte do povo de Israel.
A relação entre cada um em particular e o povo como um todo indivisível nos remete também ao apóstolo Paulo, que diz que nós cristãos somos uma carta viva, em quem o evangelho pode ser lido. Assim como no exemplo do Sêfer Torá, o cristão que deixa de cumprir seu papel é como uma letra, uma sentença ou um parágrafo, que compromete a revelação do evangelho para o mundo.
Seguindo uma lógica semelhante, mas a partir de outra premissa, a saber, a triunidade de Deus, que é desde a eternidade a comunhão perfeita de três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo, a fé cristã considera que a característica mais fundamental da humanidade é a possibilidade de experimentar a unidade na pluralidade. O ser humano é uno ao mesmo tempo em que é muitos, ou é muitos sem deixar de ser uno: o corpo de Cristo é um só, mas é composto por muitos membros e, embora composto por muitos membros, é um corpo só.
Nesse sentido, a “serhumanidade” do ser humano consiste em ser humanidade. Isso significa que, somente quando estamos absolutamente integrados na humanidade, conseguimos experimentar e expressar a nossa “serhumanidade”. Não é plenamente humano aquele que não se compreende parte indissociável de um todo maior.
É verdadeiro que “todo homem é sozinho a casa da humanidade”, como propõe nosso artista Tom Zé. Paradoxalmente é também verdadeiro que somente integrado à humanidade o sozinho pode ser considerado homem. O filósofo judeu Emmanuel Levinas compreende que a humanidade consiste em aceitar que “ao meu lado está o outro, graças a quem sou o que sou”.
Em termos práticos, a solidariedade se sustenta na constatação de que “todos nós somos um” – resumiu Jorge Vercilo. Eu sou eu, mas também sou você, e você é você, mas também é eu. O que é seu é meu, e o que é meu é seu. Suas virtudes também são minhas, assim como seus pecados. E vice-versa. Como nos ensina o apóstolo Paulo, no corpo de Cristo, “quando um membro sofre, todos os outros sofrem com ele; quando um membro é honrado, todos os outros se alegram com ele”.
Chegamos, portanto, a outro paradoxo: sou tanto o faminto que estende a mão em minha direção, quanto a mão que se estende em favor do faminto, pois nele eu me vejo, e ele se vê em mim. Eu não existo à parte dele, e ele não existe à parte de mim. Sim, sou o homem caído à beira do caminho, mas igualmente sou o assaltante que o feriu, e o sacerdote e o levita que o evitaram. Mas, pela graça de Deus, sou também o samaritano que o tomou nos braços e o amou.
Nisso consiste minha “serhumanidade”: em ser humanidade. A humanidade toda. Eu nela e ela em mim.
E Cristo, tudo em todos.
Fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/352/serhumanidade
O paradoxo de ser “uno” e ser “muitos” ao mesmo tempo
- Ed René Kivitz
O sufixo “dade” acrescido a um adjetivo gera o substantivo que indica a condição ou propriedade daquilo a que se refere. Claridade é a propriedade do que é claro, e raridade do que é raro. Maldade é o que é próprio do mal, e bondade, do que é bom.
O neologismo “serhumanidade” criado por Gregório Duvivier indica, portanto, aquilo que é próprio do ser humano. Isto é, o que faz do humano um humano; aquilo que portamos e que revela que somos seres humanos e não bichos ou coisas, ou demônios. Em termos simples, aquilo que jamais podemos perder, sob pena de perdermos a nossa condição humana.
A tradição judaica considera a unidade do povo de Deus um aspecto fundamental da identidade de cada judeu. Baal Shem Tov, fundador do chassidismo, ensinava que o povo judeu é um Sêfer Torá vivo, e que cada judeu é uma letra, cada família judia é uma palavra, cada comunidade, uma sentença, e o povo judeu é um parágrafo. Adverte que um Sêfer Torá sem uma letra é declarado inválido, defeituoso. A letra somente faz sentido no texto completo, e o texto deixa de ser completo se lhe falta uma letra.
A compreensão rabínica tem raízes nos profetas, que jamais ousaram falar do povo de Israel como se dele não fizessem parte. O profeta Daniel, por exemplo, ainda que não estivesse particular e pessoalmente implicado no pecado de Israel como nação, orou a Deus dizendo: “Oh, Senhor, pecamos, e cometemos iniquidades, e procedemos impiamente, e fomos rebeldes, apartando-nos dos teus mandamentos e dos teus juízos; e não demos ouvidos aos teus servos, os profetas, que em teu nome falaram aos nossos reis, aos nossos príncipes, e a nossos pais, como também a todo o povo da terra”. Dessa oração se depreende que, se Israel pecou, Daniel também pecou, pois não existe Daniel à parte do povo de Israel.
A relação entre cada um em particular e o povo como um todo indivisível nos remete também ao apóstolo Paulo, que diz que nós cristãos somos uma carta viva, em quem o evangelho pode ser lido. Assim como no exemplo do Sêfer Torá, o cristão que deixa de cumprir seu papel é como uma letra, uma sentença ou um parágrafo, que compromete a revelação do evangelho para o mundo.
Seguindo uma lógica semelhante, mas a partir de outra premissa, a saber, a triunidade de Deus, que é desde a eternidade a comunhão perfeita de três pessoas: Pai, Filho e Espírito Santo, a fé cristã considera que a característica mais fundamental da humanidade é a possibilidade de experimentar a unidade na pluralidade. O ser humano é uno ao mesmo tempo em que é muitos, ou é muitos sem deixar de ser uno: o corpo de Cristo é um só, mas é composto por muitos membros e, embora composto por muitos membros, é um corpo só.
Nesse sentido, a “serhumanidade” do ser humano consiste em ser humanidade. Isso significa que, somente quando estamos absolutamente integrados na humanidade, conseguimos experimentar e expressar a nossa “serhumanidade”. Não é plenamente humano aquele que não se compreende parte indissociável de um todo maior.
É verdadeiro que “todo homem é sozinho a casa da humanidade”, como propõe nosso artista Tom Zé. Paradoxalmente é também verdadeiro que somente integrado à humanidade o sozinho pode ser considerado homem. O filósofo judeu Emmanuel Levinas compreende que a humanidade consiste em aceitar que “ao meu lado está o outro, graças a quem sou o que sou”.
Em termos práticos, a solidariedade se sustenta na constatação de que “todos nós somos um” – resumiu Jorge Vercilo. Eu sou eu, mas também sou você, e você é você, mas também é eu. O que é seu é meu, e o que é meu é seu. Suas virtudes também são minhas, assim como seus pecados. E vice-versa. Como nos ensina o apóstolo Paulo, no corpo de Cristo, “quando um membro sofre, todos os outros sofrem com ele; quando um membro é honrado, todos os outros se alegram com ele”.
Chegamos, portanto, a outro paradoxo: sou tanto o faminto que estende a mão em minha direção, quanto a mão que se estende em favor do faminto, pois nele eu me vejo, e ele se vê em mim. Eu não existo à parte dele, e ele não existe à parte de mim. Sim, sou o homem caído à beira do caminho, mas igualmente sou o assaltante que o feriu, e o sacerdote e o levita que o evitaram. Mas, pela graça de Deus, sou também o samaritano que o tomou nos braços e o amou.
Nisso consiste minha “serhumanidade”: em ser humanidade. A humanidade toda. Eu nela e ela em mim.
E Cristo, tudo em todos.
Fonte: http://www.ultimato.com.br/revista/artigos/352/serhumanidade
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